Somos todas as Covas da Moura

Nacional

Entrei no bairro pela primeira vez. Com a sensação de estar a conhecer uma realidade bem diferente de tudo o que já conheci.

Fico em frente à varanda onde Jailza foi baleada. Vejo onde as carrinhas costumam – costumam – bloquear o bairro. Ele chega e conta o que aconteceu. Onde estava, como foi agarrado e o que lhe disseram. Todo o tempo apenas sou capaz de fazer um esgar de incredulidade.

Esperamos. Chegam mais pessoas.

– Quantos anos tens?
– 18.
– E tu?
– 19.
-…
– 24.
– Então mas tens os dentes partidos?
– Sim, ele até disse que tinha que se portar bem com a namorada porque está muito feio.

A conversa decorre enquanto eles têm os olhos baixos. Ninguém poderia fazer prever o que aconteceu naquela noite. Ninguém branco.

Para eles é normal. Já sabem que porque nasceram e toda a vida viveram na Cova da Moura podem ser espancados, baleados. Já sabem que ninguém vai acreditar neles. Já sabem que vão ser insultados. É tão normal que quando contam saem expressões como «estávamos a tomar café enquanto levavam o T. e o espancavam», «as carrinhas cortam o trânsito aqui e aqui», «costumam vir por aqui», «este foi o mesmo que me tentou prender naquele dia», «no outro processo…».

De repente entendo mesmo que somos de dois mundos absolutamente diferentes. Ali, de nada me adianta dizer que as provas e a lei os protegem porque não protegem. De nada me adianta dizer que depois deste julgamento será diferente. Porque eu não sei o que é ser algemada e ser metida numa carrinha, de joelhos, enquanto o polícia pára e arranca para que eu bata com a cabeça. Eu não sei o que é ser deitada no chão com o os pés em cima do meu pescoço e sem conseguir respirar. Eu não sei o que é ser insultada por ser escumalha branca que merece ser exterminada. E de nada me adianta dizer que sei.

O que sei é que isto não pode acontecer. O que sei é que me sentei no meio de dezenas de pessoas que vivem no bairro da Cova da Moura e uma delas me ofereceu um prato de cachupa porque ainda tinha que ir para casa e assim não tinha que me preocupar. O que sei é que nenhuma destas pessoas pode continuar a viver no meio do medo e da ausência de direitos.

Depois de ouvir aqueles relatos, mais do que choque, cresceu-me a raiva nas veias de saber que há muitas mais Covas da Moura, muitas mais esquadras da Amadora, muitas mais entradas nos hospitais por «quedas» e permanecem impunes no silêncio e aceitação da sociedade.

Não que não lesse, ouvisse e visse, mas foi a primeira vez que ouvi o relato na primeira pessoa.

Amanhã, dia 12 de Fevereiro, pelas 17 horas, em frente à Assembleia da República, não serei Cova da Moura. Mas serei e sou contra a violência policial, contra a barbárie, contra o racismo. Serei e sou companheira de luta de todas as Covas da Moura. De todos os que são agredidos e torturados. De todos os que já morreram às mãos da polícia. De todos os que resistem, todos os dias, porque a sua pele dita que são diferentes. De todos os que fazem frente.

Amanhã, venham também. Venham «em paz».