Tambores de Guerra

Internacional

Este ano comemoram-se os 100 anos sobre o início da Primeira Guerra Mundial (WWI). Esta guerra, a Grande Guerra, marcou toda a história subsequente. Eric Hobsbawn usou o início da WWI para assinalar o início da Era dos Extremos (1914-1991). Depois desta guerra, desapareceram os impérios Austro-Húngaro e Ottomano, caiu o império czarista na Rússia e deu-se a Revolução de Outubro, o Império Britânico começou o seu declínio e os EUA começaram a afirmaram-se como poder imperial além da sua região, as fronteiras da Europa, África e Ásia foram redesenhadas, e foi plantada a semente da Segunda Guerra Mundial (que haveria de expandir ainda mais os horrores oferecidos por guerras).

Houve frentes de guerra na Europa, na Ásia e em África, e envolveu tropas de todo o mundo. Soldados da Austrália e Nova Zelândia combateram em Galipoli, na actual Turquía, onde foram massacradas. Nesses países, ainda hoje se comemora o dia ANZAC (a 25 de Abril, dia que as tropas desembarcaram) para lembrar os caídos. Nunca os países mais directamente envolvidos haviam tido uma guerra com tantos mortos e feridos. Em Inglaterra, aliciavam-se voluntários com poderem ir combater juntamente com os seus amigos; e amigos e familiares morreram juntos em ataques tacticamente ignóbeis. Só no primeiro dia da Batalha do Somme (Julho a Novembro de 1916) morreram 57 mil ingleses. Ao todo, entre ingleses, franceses e alemães, tombaram 623,907 soldados nessa batalha, e 9 milhões durante a WWI. E dizia-se em 1914, que as tropas estariam de volta para comemorar o natal.

A WWI foi um momento de transição na lógica de guerra. Viram-se os primeiros usos da aviação, de tanques, de submarinos, e de armas químicas. O importância da comunicação entre as frentes e o quartel general tornou-se patente. As velhas tácticas na frente fracassaram e, à custa de centenas de milhares de vidas, levou anos até os generais conseguirem sair das suas trincheiras mentais. A falta de preparação para a guerra moderna pode ser ilustrada com o uniforme das tropas francesas. Enquanto os alemães tinha já fardas de tons térreos, os franceses exibiam ainda as três vivas cores da sua bandeira. Bastou algum tempo nas trincheiras para se aperceberem do seu erro.

Mas os tambores da guerra ecoavam muito antes de 28 Julho de 1914, ou de 28 de Junho, quando o nacionalista Gavrilo Princip assassinou o Arquiduque Ferdinando da Áustria durante a sua visita a Sarajevo. Há meses que toda a Europa se mobilizava para uma guerra. Há meses que por todas as partes na Europa se falava e discutia em guerra, uma atmosfera muito bem retratada no livro Les Thibault, de Roger Martin du Gard. Haver uma guerra era dado como certo. A questão debatida era o quando, onde começaria. No movimento dos trabalhadores, reconhecia-se que o capitalismo iria inexoravelmente conduzir a Europa a uma guerra entre impérios, e afirmava-se que apenas o internacionalismo proletário poderia travar a hecatombe. Aproximando-se a hora, porém, muitos dos partidos acabaram por render-se aos apelos nacionais. Na Europa existia um emaranhado de tratados que trariam para uma guerra todo o continente, tendo esta começado numa ponta da meada. Face a este contexto, o assassinato de Ferdinando tem o mesmo poder explicativo que a ante-penúltima gota de água que fez transbordar o copo.

Recordo estes elementos não apenas devido à efeméride, mas por sentir que atravessamos um momento semelhante. Há anos que há preparativos para uma nova guerra de grande alcance, entre grandes potências, envolvendo muitos países e frentes. Várias tem sido as guerras nas últimas décadas, envolvendo as grandes potências, mas longe das suas fronteiras. Mas a par e passo, as zonas fronteiriças entre os grandes blocos têm acumulado tropas e bases. Tensões tem vindo à superfície entre a Rússia, por um lado, e os EUA, UE e países da NATO, por outro, à medida que ex-países socialistas se têm aglomerado ao “projecto europeu” virando as costas a Leste, à medida que a NATO monta a sua rede de “defesa anti-míssil” na Europa, à medida que os EUA expandem a sua rede de bases no Médio Oriente, no Cáucaso e países como o Afeganistão (e outros -tão’s). Lentamente, mas consistentemente, tem sido montado um cerco à Rússia que não lhe tem passado desapercebido, e para o qual esta se tem preparado. A situação na Ucrânia pode bem ser o acender do rastilho. Mas o referendo na Crimeia é apenas uma das gotas de água.

Não se trata aqui de escolher um lado, mas principalmente de velar pela paz, evitar uma escalada de guerra, e simultaneamente defender direitos internacionalmente reconhecidos, como o direito de autonomia e auto-determinação. Como podem os UE e os EUA recusarem o direito aos cidadãos da Crimeia se em referendo decidirem o seu destino, sobretudo num momento onde têm razões legítimas para temerem pela sua autonomia, pelo uso da sua língua, pelos seus poderes políticos após um golpe de Estado que envolve elementos fascistas presentes em sectores estratégicos do novo governo?

Afirmam que a Rússia invadiu a Crimeia, quando a sua presença na região está ao abrigo de tratados entre a Rússia e a Ucrânia. Alegam que a Rússia está a manipular os eventos na Crimeia, como se os eventos na Praça Maiden não tivessem o dedo do Ocidente. Os manifestantes nessa praça receberam todo o apoio do Ocidente, foram pintados de revolucionários, defensores da liberdade. Mas os que na Crimeia se manifestam em defesa dos seus interesses são fantoches do Putin, e os seus votos na urna desvalorizados porque o processo não teve observadores e não recebeu o aval do Ocidente.

O referendo é qualificado como inconstitucional, quando a Constituição foi revista recentemente para retirar autonomia à Crimeia. E desde quando é que o direito à auto-determinação passa pelo seu reconhecimento na constituição nacional? É ou não é um direito reconhecido pelas Nações Unidas? Deviam os habitantes da Crimeia esperar pela organização de um referendo pela NU, tal como os Sarauís?

O Departamento de Estado dos EUA multiplica-se em acusações. Ora já houve uma invasão Russa, ou está há uma ameaça de invasão, ou há ingerência nos eventos, ou (mais recentemente) a Rússia está a violar o Memorando de Budapeste, firmado pelos EUA, Grã-Bretanha e Rússia em 1994, assegurando a integridade e soberania da Ucrânia de forma que esta se desfizesse do então 3º maior arsenal de armas nucleares do mundo. Como pode estar a Rússia a infringir o memorando, se o referendo na Crimeia foi promovido pela sua população e foi esta que esmagadormente optou por se juntar à Rússia?

Mas na Crimeia, o Ocidente mostra agora grande preocupação com a população tártara da Crimeia, com ligação à Turquia, por sinal membro da NATO. À situação na Crimeia junta-se a situação de outras regiões, não tão bem delimitadas geograficamente, onde também existem maiorias russas assustadas com o rumo dos acontecimentos em Kiev. No passado fim de semana, em Donestk, manifestantes arrombaram a Procuradoria Geral e outros edifícios públicos para substituírem a bandeira Ucraniana pela Russa. Também nesta região se fala em referendos. O barril de pólvora incluiu ainda as comunidades fronteiriças de maioria húngara na Transcarpátia e de romenos na Bucovina.

Espero bem estar enganado. Que as tensões sejam dissipadas. Até lá, acompanho os acontecimentos com grande preocupação. Uma guerra civil na Ucrânia, pode rapidamente transformar-se num guerra regional, e esta numa guerra mundial. Guerra mundial, com armas nucleares.

* Autor Convidado
André Levy