Torniquetes e Barreiras

Nacional

É sempre o mesmo espectáculo. O saltar metálico das rodas do comboio, os corpos apertados «com licença…» a evitar inevitavelmente tocar nos outros. E eis que «Senhores passageiros!» grita aos altifalantes uma voz respeitosamente agastada «É favor não forçar as portas do comboio!». Quando os travões chiam, o sol ainda vai alto na estação de Queluz-Belas, uma enorme barraca de alumínio no meio dos prédios. «Vai sair? Com licença». Depois, a multidão transborda como uma bebida gasosa agitada durante toda a viagem, arrastando consigo os que ficaram presos ao varão central e que só queriam sair na próxima.

Somos sempre os mesmos, nos mesmos subúrbios, às mesmas horas e na mesma carruagem, porque dá mais jeito sair só lá mais à frente. Sim, podíamos aprender a dizer «bom dia» de manhazinha, quando estamos em bando à espera, pendurados no beiral da plataforma com os olhos pousados no telemóvel ou no lixo que jaz na linha, a contar as beatas salpicadas entre as pedras ou o número de dedos que falta aos pombos. Mas se isso não acontece de manhã, como é que havia de acontecer agora à tarde, quando temos tanta pressa de ir para casa?

E primeiro temos que provar a uma máquina que não somos uma fraude. Então, em linhas de montagem, avançamos mecanicamente para uma boca de plástico que nos abocanha um a um, a tragos velozes e implacáveis. É assim que a CP nos sorteia e seria entre pobres e ricos; entre «fraudes» e «clientes», como gado para abate. E se há alguém que não passe a tempo, as barreiras não perdoam a velhice, nem a lentidão, nem a pobreza e entalam-nos os ombros e trincam-nos os braços. Prendem-nos. Ora não nos deixam sair, ora não nos deixam entrar.

Não tenho duvidas de nos pequeninos corações dos administradores da CP viva um amor platónico pelo Apartheid. Porque só falta mesmo que inscrevam por cima de uns torniquetes «BRANCOS» e por cima de outros «NEGROS». E o Apartheid com que sonham não é só social. Também nos segrega por cores: amontoados às dúzias nas “passagens especiais” praticamente só há negros. E quem não vê isto é cego.

E eu, sinto-me cada vez mais apertado. Porque as carruagens encolheram, porque os preços subiram e porque agora há um par de olhos azuis que me persegue inquisidor, a exigir que eu denuncie os pobres, que esses não têm lugar aqui: são uma fraude que está a destruir a CP e o país.

«Abra os olhos e combata a fraude», dizem-te. E se fores pobre e não puderes pagar cinquenta euros por mês para ir trabalhar, só te resta a humilhação de ter que passar muito rápido, colado atrás de alguém. «Olhe, desculpe lá…». Para sua segurança, claro.

Para nossa segurança, reduziram tudo menos a fiscalização, os preços e a altura das barreiras. Para nossa segurança, proíbem os pobres de andar de comboio e de metro. E para nossa segurança, quando 1755 regressar a Lisboa, hão-de nos prender aqui dentro, para nos atropelarmos uns aos outros como bichos. Mas ao menos não haverá fraude.

Mas o que está a acontecer à CP e ao Metro é o modelo que os patrões e o governo têm para Lisboa: uma cidade cartão-postal, para inglês ver e consumir rapidamente, onde os pobres não entram com os seus carros velhos e feios, onde as livrarias deram lugar aos hostels com nomes bimbos num inglês mal amarfanhado. A cidade que pretendem criar é uma Disneylândia sórdida e trágica, onde os lisboetas não são mais que figurantes vestidos de Mickey Mouse a vender «fado music» e «custard pies».

E o que está a acontecer à CP e ao Metro é também o modelo que os patrões e o governo têm para Portugal: submeter toda a actividade humana aos interesses do capital. E para lograr o propósito de oferecer o público à avidez dos privados, degrada-se, subfinancia-se, endivida-se, encarece-se e encurta-se. Pelo caminho, ficam populações aprisionadas nos subúrbios onde vivem (uma visita a Lisboa de comboio e metro fica em 7€) e vamo-nos achando cada vez mais tempo à espera e cada vez menos tempo com as nossas famílias.

Dizer que o problema são os pobres impedidos pela miséria de comprar o passe é o mesmo que atirar a culpa da degradação da CP às pessoas que não sabem andar de escada rolante (e param na faixa esquerda a bloquear a da direita com uma enorme mala de senhora). E não, o problema também não são só as barreiras e os torniquetes. O problema é a privatização. Mas barreiras e torniquetes corporizam o que há de pior na privatização dos serviços públicos: o elitismo, a segregação, a humilhação e a desumanização das nossas vidas. As barreiras são o sintoma; a privatização é a doença.

Essa é a verdadeira fraude em curso. E se as administrações da CP e do Metro estivessem preocupadas com a fraude, entregavam-se à polícia.

Por isso, «senhores administradores da CP e do Metro, é favor não forçar as portas que Abril abriu». As vossas barreiras ofendem-nos diariamente. E se por acaso, numa manhã excepcionalmente luminosa, elas aparecerem em cacos no chão, eu hei-de sentir-me um bocadinho mais livre outra vez.