Ucrânia, uma coboiada em três actos

Internacional

Acto I

Dos mitos às verdades

Da nacionalidade ucraniana há muito que se lhe diga, mais ainda que se lhe escreva. Nenhuma consideração actual está dissociada dos interesses dos interlocutores que lhe dão voz, e, quanto mais se adensa e aprofunda a “tensão” (façamos para já o favor de lhe chamar assim) entre a Rússia e a Ucrânia maior é a manipulação na definição da historicidade do país. Em boa verdade a Ucrânia enquanto nação, de modelo administrativo sólido e de configuração institucional reconhecida pela comunidade internacional data do recente dia de 25 de Dezembro de 1991, nunca antes, em consequência da desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Antes desse momento é certo que se vai definindo de forma esparsa a nacionalidade ucraniana (através sobretudo do desenvolvimento da nacionalidade eslava como um todo), que aliás conta com o contributo soviético nessa matéria; lá iremos.

Comecemos, breves e ligeiros. Turbulência é a palavra que melhor definirá a região de forma constante, e, não obstante os relatos da cultura Kiev (em que não se associe desde já à Ucrânia, mas antes às primeiras organizações dos povos eslavos e nunca sob civilização ou sociedade organizada) datarem do século III, a região não conheceu uma estrutura de nação antes do século IX; neste hiato a região esteve antes sob influência imperial romana, foi casa de outros povos nómadas, esteve a saque pelos hunos, ou ainda sob o domínio do povo bulgha (protobúlgaros). Surge então uma confederação de povos tribais que começam por iniciar os processos de nacionalidade eslava de forma conjunta, que ficou então conhecida pelo nome Rus de Kiev e de dispersão geográfica de norte a sul do leste europeu. Ainda hoje bielorrussos, russos e ucranianos chamam a si o ancestral histórico do Rus de Kiev na definição da sua nacionalidade, esquecendo-se da questão unitária da questão.

Com a desintegração do Rus de Kiev começa um longo período de domínio polaco-lituano (salvaguardando desde já a complexidade do processo e de outros domínios como o do Canato da Crimeia, mas simplifiquemos que serve o mesmo propósito, o da verdade), a que se seguirá uma sublevação popular com apoio militar cossaco resultante de uma imposta polonização, de âmbito sobretudo cultural e religioso, sobre estes territórios eslavos. Deste levantamento surge o Tratado de Pereiaslav que determina o domínio do império russo sobre a região, que o vem a alargar através da conquista do Canato da Crimeia aos turcomanos e mais tarde o aumento da influência e anexação dos territórios eslavos mais a oeste, em detrimento do domínio polaco.

Com o aproximar do fim da primeira guerra mundial, o ocidente tenta por todos os meios a desintegração do território russo, da sua influência e poderio, aproveitando os conturbados momentos gerados pela revolução em curso; sendo comum o objectivo à Tríplice Aliança e à Tríplice Entente (agora dúplice, excluída que estava o Império Russo), primeiro com o tratado Brest-Litovski ou logo depois com o Armistício, que define sem consulta que a Rússia abra mão de grandes franjas territoriais por toda a faixa norte-sul do leste europeu e com ela um terço da população russa e grande parte da força industrial e mineira do país. Face à resiliência soviética, que apelida a resolução como injusta e vergonhosa, é mesmo promovida, com ajuda externa militar e económica, a guerra-civil russa (1917-1923) e quase em simultâneo a guerra polaco-soviética (1919-1921); a primeira com intenção de derrotar a revolução bolchevique, por motivos ideológicos e de manutenção do status quo das classes oprimidas (bem sabiam que o mundo nunca mais tocaria a um só ritmo) e a última com a intenção de repor o domínio confederativo polaco sobre as regiões eslavas. Prevaleceu a força revolucionária de base popular e é em larga medida durante o período soviético que os povos eslavos (alvo de secundarização racial no período nazi), ucranianos em particular, gozam de protecção e desenvolvimento cultural, linguístico e económico com adopção da política soviética de nacionalidades em 1922.

Acto II

Das chantagens aos golpes

Mudaram-se os palcos e os intervenientes, mas a sanha imperialista e belicista manteve-se insaciável. Com a desintegração da União Soviética surgiu uma nova configuração geográfica do leste europeu e a essa nova configuração atirou-se com unhas, dentes e tudo os novos capatazes do mundo, que parece que sem um o mundo não anda. Com a criação da NATO em 1949 e um mundo americanizado idealizado como baluarte da “democracia”, o globo tornou-se tabuleiro para os lóbis económicos, políticos, militares e culturais dos Estados Unidos, com canina lealdade demonstrada pelos parceiros europeus. A Rússia e a Ucrânia não são excepções, claro que reconhecendo desde já à Rússia a provocação tremenda de ter colocado o seu país mesmo no meio das bases militares da NATO, da Estónia à Turquia, da Turquia ao Afeganistão.

A NATO tem servido fielmente os sectores mais reaccionários e agressivos do imperialismo e conta com trinta países aderentes ao momento, avançando com firmeza para o leste europeu nos últimos anos, República Checa (1999), Hungria (1999), Polónia (1999), Bulgária (2004), Eslováquia (2004), Eslovénia (2004), Estónia (2004), Letónia (2004), Lituânia (2004), Roménia (2004), Albânia (2009), Croácia (2009), Montenegro (2017) e Macedónia do Norte (2020), procurando uma hegemonia de pensamento político e militar em toda a região, assente numa atitude belicista e intimidatória, numa oratória de bloco político-militar agressivo, promovendo a corrida ao armamento e usando uma estratégia de confrontação e guerra permanente. Uma posição que vai contra o definido aquando do final da Guerra Fria, e, definido a bem de uma estabilidade geopolítica mundial. Bem-vindos, então ao palco ucraniano, actual alvo da política belicista capitalista internacional.

A Ucrânia desde a desintegração soviética assumiu-se como estado eslavo multiétnico, com vincadas diferenças territoriais. Os seus processos democráticos foram caminhando com as vontades populares definindo as políticas mais ou menos pró-russas ou pró-europeias, entenda-se ou leia-se pró-união-europeia, que foram determinando do mesmo modo a sua coesão territorial, com mais ou menos dificuldade. Em 2004, após manifestações anticorrupção no país, começa a ter lugar uma política de colaboração e abertura com os dois blocos políticos, União Europeia e Rússia, onde a primeira reconhece a oportunidade de implementar a sua influência federalista, preparando-se para integrar a Ucrânia na união, fornecendo largos contributos monetários, desde que (como tanto temos visto antes e por aí) houvesse vontade de reformas profundas e relativização da soberania económica, social e política da Ucrânia. A segunda não quer perder a influência política e económica na região, pretendendo manter a NATO longe das suas fronteiras. Começa-se então a bipolarizar a opinião pública com a intervenção dos sectores mais conservadores da sociedade ucraniana, com uma ou duas mãos americanas pelo caminho abrindo caminho e compactuando com o surgimento de grupos extremistas, exigindo o afastamento do país da esfera russa e integração na União Europeia, sem nunca, no entanto, conseguirem concretizarem em eleição democrática essa vontade. Viktor Yanukovytch (primeiro-ministro em 2004) e presidente eleito em 2010 afasta-se da federalização europeia e aposta no caminho de cooperação com a Rússia. Esta posição levantou preocupações no bloco da NATO e nos Estados Unidos, com a União Europeia gentilmente ajoelhada a seu lado e das suas preocupações. Como noutros tantos teatros por esse mundo fora, se a política pretendida não é a linha política executada pelos países-alvo soberanos, dá-se início a violentas campanhas de propaganda sobre a legitimidade de quem governa e abrem-se caminho às convulsões sociais necessárias para que se cumpram os desígnios dos senhores do dinheiro, das armas e da guerra. O final do ano de 2013 e o início do de 2014 afiguram-se determinantes com o aumento da contestação estudantil que rapidamente extrapola para outros grupos que assumem com mais ou menos desfaçatez a sua caracterização neonazi; as manifestações são reprimidas e a violência escala. Perante o agravamento da situação, Yanukovytch recebe uma delegação da União Europeia em Fevereiro de 2014 e em apenas 24 horas, chega-se a um acordo entre o governo, a oposição e a União Europeia. Viktor Yanukovytch, temendo que o país estivesse à beira de uma guerra civil, anuncia que o acordo incluiria a formação de um governo de coligação provisório, o agendamento de eleições antecipadas e a retoma do caminho de 2004 face à aproximação de integração europeia. Mas a sanha da reacção estava em velocidade cruzeiro e nada a faria parar agora, abertas as portas que estavam e legitimadas pelas democracias ocidentais; a “oposição” aproveitando uma viagem de representação política de Viktor Yanukovytch a Kharkiv, na Ucrânia, promovem a sua destituição na Verkhovna Rada (o equivalente ao parlamento), e tomam conta das instituições governamentais na capital. A coisa escala de forma irreversível, os preceitos constitucionais para a destituição do presidente não se cumprem, nomeadamente na criação de uma comissão de inquérito, os governadores regionais do leste e sul do país falam em golpe, e, a resposta que lhes é dada é a revogação da lei sobre as línguas minoritárias, que prejudica fortemente as comunidades russófonas destas zonas, mas não só, búlgaros e romenos também; a Rússia suporta também ela a tese de golpe, enquanto as democracias ocidentais não olham a meios de consolidar o novo poder, independentemente das portas que abrem à legitimação das forças que lhe dão sustento, aliás contam com elas para solidificar o golpe. Milhares de milicianos neonazis marcham impunes em Kiev e o mundo “livre” aplaude.

Acto III

Das lutas populares à guerra

A resposta das regiões de forte influência russa é quase imediata. A região autónoma da Crimeia realiza um referendo sobre o seu futuro que aponta com uma larga maioria para um caminho de integração na federação russa; segue-lhe o mesmo trilho a cidade-federação de Sebastopol. Kiev não aceita, e, ninguém equaciona o direito de autodeterminação destes povos face ao novo posicionamento de hostilização por parte do poder central. Coisa velha essa também de não reconhecer processos referendários – País Basco, Catalunha, Escócia – não se esperaria agora outra coisa, e a comunidade internacional declara ilegal a “anexação” por parte da Rússia, o termo colocado é intencional para o aumento das tensões, dando a entender uma unilateralidade inexistente; no que toca às populações a taxa de aceitação actualmente de pertença à federação russa é superior a 90% em ambos os territórios, similar aos valores referendados à altura. Se pelo seu grau de autonomia a Crimeia e Sebastopol evitam conflitos e conseguem de forma institucional através dos seus representantes políticos a independência da “nova” Ucrânia, vida mais difícil têm os enclaves de Lugansk e Donetsk, na região de Donbass, que convocam também um referendo, onde por decisão popular são autoproclamadas formalmente as Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk. Kiev volta a negar a pretensão.

Escala a carnificina fascista com o aval do novo governo ucraniano e a cumplicidade das democracias ocidentais, a tiro executam-se dois manifestantes pró-russos em Kharkiv, e mais três em Donetsk. Em Odessa centenas de neonazis incendeiam o prédio dos sindicatos causando a morte de 43 russos que ficaram encurralados. Em Mariupol as forças ucranianas lançam uma operação no Dia da Vitória (dia evocativo da derrota do nazifascismo na segunda guerra mundial), provocando inúmeras mortes. Novas marchas neonazis em estilo miliciano ocorrem e de novo aplaude-se o feito. Do lado da resistência, acontecem manifestações em várias regiões, que comprovam a desintegração do território ucraniano, protestos que ocorreram em pelo menos 11 cidades como: Donetsk, Kharkiv, Odessa, Lugansk, Mikolayiv, Dnipropetrovsk, Mariupol, Melitopol e Kherson.

Com a eleição de Petro Poroshenko, magnata protofascista começa a guerra aberta a leste, liderada pelas forças armadas ucranianas e um pouco por todo país por milícias neonazis que lançam perseguição a comunistas, russófonos, etnias e minorias, que se solidarizam com as populações de Donbass. O governo avalizando a nazificação do país, proíbe o Partido Comunista Ucraniano em 2015, que em 2012 havia sido a quarta força política com 32 deputados eleitos. A Ucrânia acompanhará a partir de agora os Estados Unidos sendo os únicos países a votarem contra a resolução na ONU pelo fim da glorificação ao nazismo. A NATO “alerta” convenientemente para o perigo de uma invasão militar russa, não obstante não acontecer; as Repúblicas de Lugansk e Donetsk resistiram e após milhares de mortos, civis incluídos, a guerra entra num impasse. O governo ucraniano denuncia que milhares de voluntários de vários países se alistam para combater ao lado dos “separatistas”, esquece-se de noticiar do viveiro neonazi, de treino, formação e combate que se tornou o lado oeste da Ucrânia. Nesse ano firma-se um cessar-fogo precário que durará à excepção de confrontos esporádicos (2016, 2017, 2018), a cifra da guerra fica nos 3 mil mortos e mais de um milhão de deslocados.

Com o impasse, em 2019 surge uma tentativa de apaziguar o cenário e surge por iniciativa internacional da Alemanha e com apoio da Rússia: a “Fórmula Steinmeier” (nome do presidente alemão, que sugere a solução); que prevê a consulta popular para a reintegração no território ucraniano com um status autónomo e com eleições para os seus legítimos representantes. Apesar da desconfiança das populações de Lugansk e Donetsk o processo atrasa-se por manifestações contra de veteranos ucranianos e da raiva que alimentam aos separatistas; rumores correm que os Estados Unidos não estão satisfeitos com a secundarização do seu papel bem como do da NATO na questão, no entanto, a pandemia atira para mais tarde a questão das Repúblicas Populares da região de Donbass e da Ucrânia.

Em 2021 sai um tresloucado da Casa Branca, com um mandato absolutamente terrível para o povo americano, mas aparentemente mais inócuo para o resto do mundo quando comparado com outras administrações americanas. Apresenta-se ao serviço uma dupla, que aquilo é que é pluralidade democrática, celebrada da direita à esquerda: Biden-Harris; os comunistas do mundo e democratas mais conscientes e avisados fazem notar: a sanha imperialista e belicista está de volta com mais força e chega sedenta de sangue, não existem motivos para celebrar.

Não existiram. A Síria volta a sentir a democratização à bomba, o povo afegão entregue à sua sorte, o Iémen de novo sob o jugo do fogo saudita e o do aliado Yankee, pelo continente centro e sul-americano avisa-se outra vez que eleições sim, desde que não sirvam para eleger à esquerda. É preciso retomar velhos hábitos de cowboy assassino e há ainda trabalho por fazer na Ucrânia. Meses antes voltam a marchar por Kiev 30 mil neonazis, muitos do batalhão Azov, que torturam, saqueiam, violam e matam, de preferência se tiverem a “sorte” de encontrar homossexuais, judeus, comunistas e russos; alguns destes vêm integrados de várias organizações de extrema-direita da europa; a União Europeia, na febre capitalista e de ver a sua influência alargada, semicerra os olhos, é este o preço a pagar e parece ser feito com gosto, rumores falam de financiamento por parte da CIA a estes grupos, John Brennan o seu director esteve efectivamente em Kiev, e centenas de mercenários de empresas privadas americanas estão no terreno, afinal é um preço pequeno e não é a primeira vez que se associam a nazis em busca de um bem maior: o domínio do mundo.

O governo ucraniano permite o treino de milícias neonazis nas ruas e incentiva o sentimento anti russo como base da sua linha política. A integridade do território ucraniano está em causa, promovida pelos próprios que a juram querer manter. A NATO estabelece novas bases militares e programa exercícios ao longo da fronteira, os russos respondem na mesma moeda, mas quando a resposta é idêntica do lado de lá, grita-se que a invasão da Ucrânia está próxima novamente, gritam todos e cada vez mais alto, afinal se houver medo pode ser mesmo que haja guerra, e, se houver guerra que interessam as suas razões e motivos, se há tanto euro e dólar por fazer e ganhar, tanto mundo e terra por dominar, tantos recursos e homens por explorar.

À falta de escalada de violência há que empurrar e dar uma ajuda, e, se não fizeram grande falta na Normandia, aqui estão outra vez na europa, três mil americanos desta feita em solo ucraniano. Atira-se ao ar que os EUA sabem que a Rússia já mobilizou cerca de 70% da sua capacidade militar, que interessa ser mentira. Agita-se a bandeira do medo e de uma guerra nuclear. Acenam-se com sanções económicas, a bem das nações ocidentais e a mal dos povos. A NATO volta a insistir, é preciso armar e rearmar o exército ucraniano, treinar e preparar as milícias “civis” (neonazis), ninguém entende porquê, mas pelo sim, pelo não, os estados-membros lá vão enviando armamento, capacetes e coisas que mais para fazer a guerra; sempre pode ser que de um tiro disparado ao ar se ganh… perdão, se justifique mais e melhor, e, olhem, senão acontecer nada já muito se lucrou. Foram poucos os que ganharam e muitos que morreram, sim, mas que importa isso?

São estes os carrascos do mundo moderno, que tanto se repetem nos modos e tanto ainda enganam os que não atentam. Mas sejamos sinceros, já sabemos por esta altura que a NATO, EUA e UE, não definem a sua acção por nenhuma análise do que dizem estar a acontecer, é pelo que pretendem que aconteça: Domínio e Guerra.

4 Comments

  • Renata

    16 Fevereiro, 2022 às

    Não fazem tradução dos artigos para Inglês? Eu vivo no Reino Unido e dava muito jeito poder partilhar com malta de cá.

  • Teresa. PRETO

    15 Fevereiro, 2022 às

    Excelente!

  • antonio pereira

    9 Fevereiro, 2022 às

    Obrigado por isto. É um óptimo artigo. Eu acrescentaria ( desculpe a sugestão) que, na sua perseguição aos russófonos e no seu fanatismo o governo ucraniano chegou ao ponto de criar uma nova igreja sem ligações aos ortodoxos russos. O tiro parece que saiu pela culatra e a oposição reforçou-se. Mas não faz mal…Ao fim e ao cabo a ” democracia” ucraniana resolve o assunto prendendo os dirigentes oposicionistas. Mais uma vez obrigado.

  • Luís Pestana

    8 Fevereiro, 2022 às

    Para entender, factos actuais há que entender e estudar o passado. Este artigo faz isso mesmo. Pena é que a maior parte do mundo ocidental (povos), habituado ao facilitismo e a não pensar muito para além do culto do indevidualismo, bradam as razões sem razão do que é vendido hoje como verdade. Bem haja artigos assim para repor a verdade.

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