Um dia na Luta que é contínua

Nacional

Ontem já sabia que o dia seria longo e que as costas se iam queixar. E a perna esquerda, que me dói desde os piquetes da última Greve Geral, não sei se por causa do muito tempo em pé, ou do muito tempo sentado, mas é uma dor da Luta, custa menos a suportar. Acordei atrasado, tomei o pequeno almoço atrasado, cheguei ao Camões atrasado e não encontrei ninguém. Será que me tinha enganado nas horas? Será que todos os outros estavam mais atrasados que eu? Ao longe ouço um clamor quase imperceptível mas que me dizia que tinha de dar corda aos pedais, a manifestação em direcção à Assembleia da República já tinha partido. Quando cheguei à sua cauda o horizonte apresentava um mar de cores, maior do que eu esperava, a exigir a demissão do governo e a reprovação do Orçamento do Estado. Nesse momento percebi que para além de longo, o 26 de Novembro de 2013 ia cravar de pesadelos o sono dos soldados da austeridade.

Dentro da AR aprovava-se o OE com os votos de uma maioria socialmente isolada, cá fora estava com aqueles que levantavam folhas onde um cravo vermelho do nosso Abril ilustrava os pedidos de demissão, de eleições e de alteração de políticas. O largo de S.Bento estava demasiado cheio para a faixa do Manifesto em Defesa da Cultura se aproximar das famosas escadas, furámos o possível e colocámos a faixa entre os táxis que ontem quiseram associar as bandeiradas ao protesto.

Primeira etapa do meu dia de Luta ultrapassada, hora de revigorar o corpo e principalmente o estômago para suportar o que ainda estava para vir e o frio que já se adivinhava. Almoço perto de S.Bento num restaurante cheio de camaradas que ansiavam por saber o que se passava no resto do país. E apesar de as televisões do restaurante estarem sem som e do cliente sentado ao meu lado mostrar cada vez mais desconforto por estar rodeado pela gente da acção, as imagens que vimos rasgaram as nossas caras com os sorrisos de ver um país inteiro em Luta.
Exemplares do OE foram queimados de norte a sul, os CTT de Coimbra foram ocupados, a Cidade Invicta saiu à rua, Castelo Branco e Évora seguiram-lhe o exemplo, trouxeram Faro e Viseu para junto deles, e Braga e o Funchal esqueceram o Atlântico e uniram-se em protesto (quem quiser completar este texto, deve colocar a ligação de outras notícias importantes do dia 26 de Novembro nos comentários, de certeza que várias acções me escaparam)

A tarde de sol dava ânimo ao espírito e, em forma de sussurro, diziam-me que alguns ministérios seriam ocupados. Tinha outras tarefas, não podia participar nestas ocupações. O nervoso miudinho de estar longe daqueles camaradas nestas importantes acções trouxe a ansiedade de querer saber o seu desfecho. As notícias agora correm rápido, às vezes rápido demais, e pouco depois das 15h recebo uma mensagem dizendo que ocupámos as Finanças, o Ambiente, a Saúde e a Economia. Quando o governo não ouve quem trabalha, quem trabalha bate à porta do governo.

Tínhamos o multi-milionário e o seu séquito prontos, tínhamos o Metro de Lisboa à nossa disposição. Como disse um dos camaradas durante a acção, nunca um bilhete de Metro foi tão bem gasto. A Associação Nacional de Multi-milionários, pela voz do seu Presidente, andou a agradecer os sacrifícios feitos nos últimos anos. Eles não foram em vão, foram todos parar aos bolsos dos seus associados. Graças aos esforços dos trabalhadores e trabalhadoras, Portugal é um país onde a prosperidade dos mais ricos é um facto que devemos elogiar. Temos mais 11% de multi-milionários no país e as suas fortunas não param de rebentar a escala. É sempre bom ver o sucesso dos outros. Estranhamente os utentes do Metro riam-se dos agradecimentos do honorável Presidente, acharam que aquilo era uma acção subversiva e irónica, não percebi porquê. Acaso é estranho vermos manifestações de solidariedade para com as políticas do governo e da troika? É estranho ver multi-milionários a andar de Metro? Enfim…

E o frio que vinha com a ida do sol? Toca de bater os pés e abanar o corpo, ou em alternativa toca de dar abraços à companheira que entretanto se veio juntar à Luta, e já se sabe que a Luta é sempre feita com amor.

O meu fim de dia estava marcado para o Largo de São Domingos, paredes meias com o Teatro Nacional D.Maria II. A CGTP-IN, o CENA, o STE e o Manifesto em Defesa da Cultura estavam ali a defender os profissionais do espectáculo e do audiovisual e a defender que a Democracia não existe sem Cultura. Um país sem arte, sem património, sem espectáculos, sem, cinema, sem literatura e sem ensino artístico é um vazio dentro de fronteiras que passam a demarcar apenas um território geográfico. A luta pela Cultura é a luta pela preservação da nossa identidade colectiva e por um país cheio, vivo e criativo.

Foram algumas horas a exigir 1% para a Cultura, a exigir que se incentive a fruição e a criação cultural desde tenra idade e a exigir que o Estado cumpra o seu dever constitucional de apoiar e divulgar o sector. No meio disto tudo coube-me falar várias vezes para as televisões, coisa que me dá arrepios e tremores, uma palavra fora do sítio destrói o discurso e não é fácil raciocinar quando a única coisa que se sente é o nariz a congelar e os lábios a colar. Para quem me viu, não, não estava drogado, era apenas frio. Mas a coisa lá se deu e a mensagem lá se passou, espero que bem.

Casa, comida, rabo sentado e o conforto de 3 gatos a aquecerem-me o corpo e a chatearem-me o colo. E foi em casa que soube que no Porto os trabalhadores dos STCP voltaram a dar uma prova inequívoca da sua união, obrigado e força. Também em casa descubro que em Beja, vários reformados ocuparam a Segurança Social, e que feliz isso me faz. Ok, não foi o Mota Soares, mas ele viu, e sabe que mais tarde ou mais cedo a máscara que criou para si e para o seu ministério vai cair de vez. Ele, o ministro que, através das leis e decretos que saem da sua secretária na Praça de Londres, mais tem contribuído para as injustiças sociais, para a deterioração de vida de duas das camadas mais afectadas por esta crise, os reformados e os trabalhadores e trabalhadoras precários.

Na SIC Notícias um oco Mário Crespo tentava desdizer o que as imagens que foi forçado a mostrar durante largos minutos demonstravam: a CGTP-IN e o Povo provaram que PSD e CDS podem aprovar o que bem lhes apetecer na AR, mas neste momento fazem-no de ouvidos e olhos tapados e serão derrotados. Nem o Público teve o descaramento de brincar com os números e desta vez até usa no título da notícia que resume o dia, o preâmbulo da palavra de ordem que afirma que quer a continuação de Abril.

Antes de dormir foi tempo de ver um filme para descontrair, com os gatos em cima, sempre em cima. Xixi e cama, que amanhã é outro dia, outro dia de uma vida que não consegue passar ao lado da necessidade de lutar por aquilo em que acredita. E que bom que é dormir todos os dias de mãos dadas com uma companheira dessa mesma Luta. E que bom que é saber que estou rodeado de amigos que vão na mesma direcção. E que bom que é saber que há caras com quem me cruzo em manifestações, em acções, em reuniões e que por agora não passam apenas de uma cara sem nome, mas com a certeza de que se for preciso a força deles está lá para mim, espero que sintam o mesmo deste lado. E sim, as costas estão a dar de si até agora, aguenta, piegas.

E essa força é necessária, e é necessário aumentá-la, organizá-la melhor, repetir muitos 26 de Novembro até que o governo se vá e leve a troika consigo. Mas nem nesse dia vamos parar porque a vitória final só acontece quando nenhuma pessoa for explorada por um seu igual. Até esse dia, a Luta continua, porque é, e será sempre, contínua.

Cavaco, compra tampões para o ouvido e uma remessa bem grande de bolo-rei, dia 19 de Dezembro tocamos-te à campainha.

Autor Convidado *
André Albuquerque