Um onze inicial de classe redobrada

Internacional

Além de um entretenimento de massas, que por esta altura ganha contornos absolutamente desproporcionados e muito saturantes, o futebol pode ser também um meio de expressão, de luta e protesto. Assim e aproveitando a época, hoje apresenta-se um onze, de jogadores de futebol, de notoriedade diversa, com mais ou menos razão, de vários pontos do mundo, que em certa altura das suas carreiras decidiram fazer mais do que apenas jogar futebol.


1. Metin Kurt

Extremo do Galatasaray e internacional pelo seu país, a Turquia. Ficou conhecido pela sua militância comunista e pelo seu esforço pela criação de um sindicato de classe para os desportistas profissionais.

Pelo seu activismo foi penalizado quando o Galatasaray não lhe pagou o bónus pela vitória na taça turca, no que teve a solidariedade de quatro colegas que acabariam expulsos da equipa, até que foram reintegrados pela pressão dos adeptos. kurt mesmo assim acabaria por sair do clube pouco depois. Esteve ligado à formação da Associação dos atletas Amadores(1970) e da União Revolucionária dos Trabalhadores Desportivos(2010).Para Kurt “havia necessidade de uma luta democrática nos desportos porque a relação entre os desportistas e os executivos é similar à relação entre escravo e amo”. Em 2011, ainda antes de falecer, foi candidato por Istambul pelo Partido Comunista da Turquia.

2. Agustín Goméz Pagola

Foi uma das centenas de crianças e adolescentes que em plena guerra civil espanhola fugiram para Moscovo na eminência da vitória franquista. Na URSS revela o seu talento futebolístico ao serviço do Torpedo de Moscovo e da própria selecção soviética, mantendo a sua militância no Partido Comunista de Espanha. Durante uma breve abertura franquista em 1956 para quem quisesse deixar a URSS e regressar a Espanha, Agustín ingressa no Atlético de Madrid, mantendo a sua militância comunista clandestina.

Após o fim da sua carreira dedicou-se a treinar equipas de juvenis no País Basco enquanto mantinha a sua actividade política. Em 1961 foi capturado, preso, torturado e finalmente liberto graças a uma campanha internacional. Acabou por se exilar na Venezuela passando a integrar o Comité Central do PCE e a sua actividade internacional. Acaba por se afastar em ruptura com a tendência eurocomunista, mantendo-se comunista até ao fim.

3. Deniz Naki

Nasceu na Alemanha mas de ascendência curda. A sua carreira tem tido diversos altos e baixos e várias vezes os baixos têm sido precisamente por motivos políticos, baixos como quem diz, depende da perspectiva.

No início da sua carreira jogou no clube popular e de notoriedade antifascista de Hamburgo, o FC St. Pauli, onde acabou punido pela federação e envolto em polémica por após ter marcado um golo da vitória se ter envolvido em provocações com os adeptos do rival Hansa Rostock, conhecidos pela sua orientação de extrema-direita. Mais tarde, já jogando no clube turco Genclerbirligi teve de sair do país por ter sido alvo de diversas ameaças e até agressões físicas após ter feito diversos comentários nas redes sociais em apoio à resistência curda aos diversos ataques quer do exército turco quer do daesh.

Já este ano e com Deniz Naki regressado à Turquia e ao território curdo para jogar no 3o escalão foi suspenso 12 jogos e multado em 7000€ por ter dito “dedicamos esta vitória a todos os que foram feridos ou perderam a vida durante a repressão na nossa terra que dura há mais de 50 dias. Estamos orgulhosos de ser um pequeno raio de esperança para os problemas da nossa gente”.

4. Sócrates

Dr. Sócrates como era carinhosamente conhecido foi um dos melhores jogadores brasileiros de sempre e ainda hoje é recordado não só pelo seu jogo como também pela sua intervenção social e política.

Após anos de gestão ruinosa no Corinthians pelas sucessivas direcções, Sócrates é um dos impulsionadores de um novo período na vida do clube chamada de “Democracia Corinthiana”, isto ainda no período da ditadura militar brasileira.

Na “Democracia Corinthiana” todos dentro do clube tinham direito de voto, e igual, sobre as decisões referentes à vida do clube, do roupeiro aos jogadores, do treinador aos dirigentes, todos decidiam por igual. Mais, em plena ditadura militar a “Democracia Corinthiana” decidiu estampar no lugar publicitário da camisola expressões como “diretas já” ou “quero votar
para Presidente”.

5. VolKer Ippig

O ex-guarda-redes da década de 80 actualmente trabalha nas docas de Hamburgo enquanto treina camadas jovens da sua zona.

Volker Ippig por três vezes interrompeu a sua carreira por motivos altruístas. A primeira para se tornar monitor de crianças orfãs com incapacidades motoras, a segunda para se dedicar à agricultura e à produção saudável e a terceira para rumar à Nicarágua e à recuperação de aldeias destruídas pela forças do governo.

Em 1991 devido a uma lesão teve de abandonar a sua carreira prematuramente mas ainda foi a tempo de alertar os cidadãos da ex-RDA das descriminações que iriam sofrer sob a “reunificação”.

6. Maradona

Maradona não precisa de apresentações. Passemos em frente.

7. James Macclean

Quem conhece o desporto e o futebol inglês sabe que é usual o uso da papoila à lapela por atletas, dirigentes, treinadores e até adeptos no mês de Novembro. Serve a papoila por altura do “Rememberance Day” para recordar os que tombaram em combate pela coroa britânica .

Desde há alguns anos a excepção é James Mcclean, nascido em Derry na Irlanda do Norte no seio de uma família católica. James foi por diversas vezes internacional pela Irlanda do Norte mas desde a sua passagem a sénior recusou-se continuar a servir essa selecção e foi cooptado pela selecção Irlandesa.

Chegado ao futebol inglês em 2011 recusou-se sempre a usar a papoila tendo-lhe essa decisão custado insultos, ódios e até ameaças de morte. Segundo James “Se esta flor se referisse apenas às vitimas da Primeira ou Segunda Guerras Mundiais eu usaria sem qualquer problema. Usaria a papoila todo ano se fosse o caso! Mas não é o caso…Esta flor simboliza todos os conflitos em que o Reino Unido esteve envolvido. Por motivos históricos e por ser de Derry, eu não posso usar algo que significa isso”.
Na localidade de Derry em Janeiro de 1972, 14 pessoas foram mortas pelas tropas britânicas no conhecido “Bloody Sunday”.

8. Josean de la Hoz Uranga

5 Dezembro de 1976, num Estado espanhol em convulsão política e social, teria lugar na cidade basca de Donostia/San Sebastian o derby basco entre Real Sociedad e Athletic Bilbau. A ikurrina, bandeira basca, continuava ilegalizada desde o fim da guerra civil espanhola, como símbolo da luta do povo basco pela autodeterminação.

Josean, jogador da Real Sociedad decide por em marcha um plano para o derby que consistia na entrada da bandeira com a entrada das equipas. Para tal, pediu à sua irmã que cozesse uma bandeira que fez entrar no estádio através das malas de transporte de água. Depois de falar com os capitães das duas equipas, todos concordaram em assumir o risco.

Pela primeira vez em décadas a Ikurrina seria vista em público, apenas meses depois seria aprovado o Estatuto regional e a bandeira legalizada.

9. Eric Cantona

Eric Cantona foi um dos melhores jogadores franceses de sempre, com especial destaque no Manchester United. Descendente de refugiados da guerra civil espanhola em França, especialmente desde o fim da sua carreira tem-se tornado um activista social contra a ditadura do poder financeiro e pela devolução do futebol aos adeptos e contra a sua mercantilização absoluta(do futebol, entenda-se). Recentemente realizou um filme sobre “Os rebeldes do futebol”.
“Quando o teu país está em guerra e os teus amigos se estão a matar, que entreguem armas em vez de bolas ás crianças, que importa se o mundo inteiro te admira, tens que actuar!”

10. Rachid Mekhloufi

Nos anos 50 a Argélia continuava a ser uma colónia francesa no Norte de África, contudo Rachid Mekhloufi já brilhava em França na equipa de Saint-Étienne. A tal ponto que seria seleccionado para a selecção francesa que disputaria o Mundial da Suécia de 1958.

Foi então que Rachid aproveitando a visibilidade da selecção francesa, juntamente com o seu colega de origem argelina Zitouni, decidem abandonar a concentração da selecção francesa. Dois dias depois formavam a equipa da Frente Nacional de Libertação Argelina, conhecida como “os 11 da independência”, que apenas jogaria partidas amigáveis pela Ásia e África devido ao não reconhecimento pela FIFA.

Mais tarde com a independência do país e a selecção reconhecida, Rachid volta a brilhar nos relvados franceses, “adoraria ter jogado um Campeonato do Mundo mas isso não era nada comparado com a independência do meu país”.

11. Cristiano Lucarelli

Cristiano Lucarelli foi um ponta-de-lança italiano nascido na mesma cidade que o Partido Comunista Italiano, Livorno. Desde cedo assumiu-se como um comunista cujo sonho era representar o clube da sua terra.

Lucarelli num jogo da equipa sub-21 da selecção italiana após marcar um golo exibiu uma t-shirt de Che Guevara por baixo da camisola azul da selecção. Eventualmente por tal gesto esteve 5 anos sem voltar a jogar na selecção italiana. Por isso e talvez também por ter dito que “os árbitros prejudicam sempre o Livorno porque sabem que somos comunistas”.
Lucarelli passou por diversos campeonatos(Itália, Espanha, Ucrânia) apontando mais de 200 golos, celebrados com o punho direito fechado. A sua carreira acabou por ser retratada no documentário99 Amaranto.

* Autor Convidado
Filipe Guerra