João Gobern redigiu uma reportagem sobre um dia da campanha da CDU no Norte do país. O texto que abaixo se transcreve é um exemplo de um bom trabalho!
“Jerónimo de Sousa e a CDU não morrem de amores por trípticos, como o famigerado “uma maioria, um governo, um presidente”. Ainda gostam menos da troika, presume-se. Mas um dia em três andamentos – um encontro, uma ação de rua, um comício – reforça a ideia de três missões eleitorais: resistir, desmistificar e crescer.
“Na terceira volta de um dia dividido em três momentos e por dois distritos (Porto e Aveiro), mantendo-se na sala sobrelotada da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira a mesma temperatura ambiente antes garantida pelo sol, que brilhou para todos nós, e pelo entusiasmo militante, lembro-me do título de um filme. Contava a vida de Thomas More (1478-1535), que gostava de pensar pela sua própria cabeça e acabou por perdê-la, diante do libidinoso poder de Henrique VIII. O filme chamava-se, na língua original, A Man for all Seasons. O que, em tradução literal (que dá jeito, como se verá), poderia desaguar em algo de parecido com “Um Homem para Todas as Estações”, salientando o oposto de qualquer alusão camaleónica, sublinhando, isso sim, a ideia de alguém que dispensava diferentes máscaras para se afeiçoar a distintos ambientes.
Foi assim que vi e li Jerónimo de Sousa, igual, uno e indivisível (passe a expressão), num “encontro com artistas, intelectuais e quadros técnicos”, depois no contacto direto com a população de Gondomar e, por fim, a jogar em casa no comício da Feira: sempre o mesmo homem, sem inflexões no discurso, sem constrangimentos, sem cosmética. À saída do comício, que, de acordo com alguns jornalistas “residentes” da campanha da CDU, lhe terá rendido a melhor intervenção de toda a campanha, até pela introdução do humor na abordagem aos adversários, cruzamo-nos pela terceira vez. Sinto-o naturalmente cansado (pudera…) depois do empolgamento alguns minutos antes, mas bem-disposto, com a certeza dos pontos marcados em três frentes. O mesmo homem para todas as ocasiões, característica ou qualidade que não se distribui a outros dos que, por estes dias, dão a volta a Portugal, os que variam o modelo consoante as audiências. Aqui, com maior ou menor inspiração nas intervenções, a ausência de surpresas – e, muitas vezes, dos soundbytes que estão como a fast food para o jornalismo, “enchendo” mais do que alimentando – vale uma contrapartida na constância das palavras.
A cara
Quando Jerónimo de Sousa chega à Cooperativa Árvore, já os apoiantes da CDU aguardam o secretário–geral comunista gozando o sol resistente do outono, ou resguardando-se da sua intensidade. Percebo rapidamente um deslize indumentário: entre mais de uma centena de presenças, só há três gravatas – a do veterano presidente da direção da Árvore, Amândio Fernandes Secca, a do ex-deputado Honório Novo (chamado a mestre-de-cerimónias) e a minha. Falta de prática, sem drama de maior. O líder da CDU entra, faz questão de percorrer um a um os pequenos grupos em que, sem ordem de trabalhos, se discutem os calores da política, as dúvidas quanto ao futuro que se desenhará a partir de segunda-feira, os refugiados e a fragmentação europeia, os méritos persistentes das atividades da Árvore, mas também o prolongamento estival e o futebol de fim de semana. Já se ouviram desabafos: “É pena que, nestas coisas, só venham aqueles que não precisam de ser convencidos. Isto devia chegar aos que andam indecisos ou aos que, aparentemente, desistiram de participar.” De acordo, mas não é esse um problema transversal à maioria dos momentos de campanha dos partidos e coligações que dificilmente chegarão ao governo?
Nem neste ambiente, faltam os momentos para a fotografia, no sentido literal, com pedidos de selfie ao disponível deputado, e no sentido figurado: Jerónimo de Sousa pega ao colo numa criança que lhe arranca uma gargalhada franca, quando lhe confessa que, quando for grande, quer ser primeiro-ministro. Algo a que, sejamos realistas, o próprio político não aspira. Vinho branco e vinho do Porto regam o encontro, temperado por umas tapas que se distribuem sem privilégios, a cada um de acordo com as respetivas “necessidades”.
A partir das escolhas do “convidado de honra”, Pedro Estorninho, do Teatro Ensaio, lê poemas de Vinicius de Moraes (O Operário em Construção, obviamente) e Manuel da Fonseca. Mas até a dimensão dos poetas se encolhe momentaneamente quando Jerónimo de Sousa agradece aos artistas e intelectuais “os momentos de alento” nos tempos difíceis. Denuncia a “mercantilização da cultura, subordinada pela economia”. Indigna-se com os cortes, 75%, não menos do que isso, nos apoios públicos às Artes. Revolta–se com o desprezo a que os governantes (os de hoje e os de ontem, que o Partido Socialista acaba sempre empurrado para a moldura do arco) trataram a ciência a investigação. Aponta a emigração de quadros como um mal de dimensão ainda imprevisível. E propõe, olhando as parcelas contempladas no Orçamento, um evidente reforço nas verbas tocantes à Cultura: dotar este setor de 1% do total. Acrescenta a nota do dia, com referência direta a António Costa, disposto a trocar um Ministério da Cultura por um “governo da Cultura”, percebendo-se que não vê aqui mais do que uma fanfarronada inconsequente.
Pelo meio da intervenção, específica, cirúrgica, ficam as grandes linhas de força que voltarão a ouvir-se pelo dia fora: a promessa de uma política “patriótica de esquerda”, para a qual se torna imprescindível a “desmistificação” do voto útil; a ideia de que o reforço da votação na coligação dos comunistas com os ecologistas carrega mais e maiores garantias à obstaculização das “políticas de direita”, venham elas dos partidos atualmente no poder ou do PS. Quer dizer: nesta primeira realização, fica claro o objetivo de fixar apoios e eleitores. Entre os presentes e os que, segundo Honório Novo, não quiseram deixar de explicar as ausências e de enviar mensagens de saudação e de solidariedade, casos do arquiteto Siza Vieira e do historiador Manuel Loft. Primeiro passo: cumprido.
O discurso
O fim de tarde continua a fintar ventos, nevoeiros ou friagens. Do alto de um palanque que permite a toda a gente que se distribui por um jardim ver o secretário-geral e o cabeça de lista da CDU pelo distrito do Porto, Jorge Machado, fazem-se os discursos, depois de percorridas, com mobilização assinalável, as ruas de Gondomar. Há um cuidado natural desta coligação em somar o local ao geral, daí o destaque para a presença do candidato do distrito, que se encarrega de desfilar aquilo que entende como os atropelos da governação na sua área da influência. Ainda que o quadro se repita, um pouco por toda a parte: as machadadas no Serviço Nacional de Saúde, o encerramento de escolas, a subida do desemprego. Ora se o retrato apresentado equivale ao do país, acaba por ter um impacto forte nas populações o zoom sobre os problemas que enfrentam em casa e perto dela. No caso concreto, a escala em Gondomar também funciona como prémio à militância dos habitantes de São Pedro da Cova cuja terra, mesmo unificada em freguesia com Fânzeres, de acordo com a reforma administrativa de 2013, manteve uma maioria CDU – um sinal daquilo a que os comunistas e seus aliados gostam de chamar “política de proximidade”.
Outra forma de a praticar permite a Jerónimo de Sousa um exercício em que se mostra exímio, porque nunca se desliga de uma autenticidade que impede até votantes de outras forças políticas de algum comentário desagradável ou, sequer, de lhe negarem um aperto de mão. No centro do desfile, em que alguém explica a uma apoiante mais espontânea, que tenta lançar a palavra de ordem “vota CDU, quem fica a ganhar és tu”, que há uma componente “individual e egoísta” nesse grito que não sublinha as verdadeiras vantagens de tal voto e que talvez seja melhor ficar-se pelo clássico “a CDU avança, com toda a confiança”, o secretário-geral comunista ziguezagueia no percurso, não no discurso. Não deixa abraço por dar a quem se mostra recetivo, reservando “um bacalhau” aos que parecem mais retraídos. Arrasta atrás de si os que o rodeiam, expondo-se pela imprevisibilidade dos seus passos, a comentários desagradáveis que, registe-se, não aparecem. À porta de uma loja que distribui cigarros eletrónicos, um homem lamenta-se: “Tenho mesmo pena que este gajo seja deste partido… Se fosse de outro, gosto tanto dele que lhe dava o meu voto. Mas assim…” Não há um incidente, uma provocação, uma buzinadela de descontentamento mesmo nas passagens em que o trânsito é interrompido ou retardado. Na cadência de um para arranca ao sabor da condução do líder, naquilo que poderia tornar-se o momento mais desgastante da jornada, Jerónimo de Sousa parece recarregar baterias com as pequenas conversas, com as questões que lhe saltam ao caminho, quase sempre protagonizadas pelos espoliados da vida, com as explicações que entende dar e as propostas que deixa, evitando promessas. Aos 68 anos, liderando o Partido Comunista Português há mais de uma década, este homem sabe que dificilmente chegará a um governo, a menos que a geografia política seja tingida de uma forma radicalmente diferente. Mas resiste, em nome das (suas) ideias. Pobre será a analogia, mas há um momento que me recorda uma velha anedota. “O teu casamento foi por amor ou por interesse? Só pode ser por amor, que aquilo interesse não tem nenhum…” Com Jerónimo de Sousa, se a dicotomia proposta andar entre a ambição e a convicção, a resposta surge, transparente: só pode ser convicção, que a ambição – de poder, leia-se – não passa por aqui.
A empatia
Há precisamente vinte anos, na campanha que levaria António Guterres a São Bento, tive a oportunidade de – também por um dia, em toca-e-foge com a caravana CDU, na ocasião por terras alentejanas, bem mais chegadas à causa – acompanhar Álvaro Cunhal. Se Carlos Carvalhas já era o secretário-geral comunista desde 1992,Cunhal valia muito mais do que um símbolo ou do que uma “presidência honorária”. Se todas as comparações podem tornar-se odiosas, sobretudo se as submetermos a uma qualquer valoração, há algumas que podem justificar-se – é o caso. Desses contactos fugazes (tendo conhecido Cunhal em 1985 e no cenário muito especial de um Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, realizado em Moscovo), ressaltam algumas particularidades: o autor de Até Amanhã, Camaradas, obviamente amado pelos seus correligionários, era acima de tudo respeitado. A sua palavra parecia passar como lei, mesmo que fosse largamente discutida no foro interno. Talvez em função da sua origem, de uma base intelectual imensa, até das prisões e do exílio a que foi sujeito, Cunhal não alcançava o tal grau de proximidade interpares que Jerónimo de Sousa pode facilmente reivindicar. Lembro-me bem do olhar de um, perscrutante e penetrante como conheci poucos. Com Jerónimo, sem implicações na convicção, há mais vizinhança, mais familiaridade. E os seus camaradas exultam com essa acessibilidade fraterna.
O discurso da Biblioteca de Santa Maria da Feira acaba por espelhar precisamente esta linha de atuação: às traves-mestras do que a CDU quer fazer passar, aumentando a intensidade nos últimos dias de campanha mas sobretudo reafirmando uma linha política que se orgulha do desempenho de oposição mais constante e mais coerente nos últimos quatro anos, no Parlamento mas também fora dele (lá vem outra vez a proximidade), Jerónimo acrescenta o humor. Quando compara o PS de uma determinada fase a “um peru do Natal”, cheio de si mas angustiado, condicionado pelas “abstenções violentas” diante das moções de censura da CDU. Ou quando evoca uma expressão, “felizmente caída em desuso: a do filho de pai incógnito”, que seria o memorando assinado com a troika que, afinal, não teve pai (PS) nem mãe (PSD), “Nem mesmo padrinho, que temos de deixar um espacinho para o CDS”.
Ouvem-se-lhe frases fortes, nomeadamente quando dá eco a quem acusa a CDU de estar sempre a atacar o PS: “O estranho é eles, PS, não se lembrarem que não estiveram em nenhum dos grandes combates.” Quanto a algumas propostas de António Costa, a resposta chega com ironia: não lhe chamem ataques, vejam-nos “como pedidos de esclarecimento”… Diz-se farto de, em tantos anos, andar a ver “sempre o mesmo filme, rebobinado”. E reafirma que o lugar da CDU será sempre o mesmo, diante dos desrespeitos e dos atropelos aos trabalhadores, frente às injustiças.
A sala estava cheia, ao ponto de se admitir um ligeiro erro nas expectativas – pensou-se “por baixo”. A escolha de Santa Maria da Feira esteve longe de ser aleatória: Aveiro é um dos distritos, tal como Coimbra, em que a CDU espera recuperar um deputado em tempos perdido. Coube, aliás, a Miguel Viegas, cabeça de lista pelo círculo, abraçar os problemas das terras que pretende vir a representar: pensar localmente para agir globalmente. Uma vantagem clara desta coligação: nem Tonis nem Quins, nem vedetinhas musicais de ocasião. Ouviram-se – e bem – canções de Fausto e Carlos Puebla, folclore açoriano e a Trova do Vento Que Passa. Em aparte, a coligação confirmou-se económica e ecológica: no final, foi lançado o apelo para que fossem devolvidas à estrutura as bandeirinhas que serviram para engalanar a sala e para animar as imagens recolhidas.
Jerónimo de Sousa sai da sala em passo rápido. Onze horas depois voltará a estar na rua, bem mais a sul, com a mesma cara, com muitas das mesmas palavras – sendo hoje nitidamente preconceituoso falar de uma “cassete” comunista, de tal forma foi renovado o léxico -, com todas as ideias. Por certo, também com a ambição de conseguir que pelo menos um em cada dez votantes acabe por decidir-se por esta cor política. Para fecho, a pergunta que se tornou tradicional: comprava a este homem um carro em segunda mão? Claro que sim, “com toda a confiança”. Não seria o único, reconheço. Mas também não seriam assim tantos. A ele, até o desafiava para uma converseta mais amena, mais circunstancial. Nem que fosse para abordarmos o futebol, que tanta urticária causa a quem não o percebe. Não acontece, ao que me dizem, com o secretário-geral comunista: segundo fontes geralmente bem informadas, Jerónimo de Sousa é bom de bola.”
Filipe Guerra