Uma noite em Kilkenny, ou porque é que a esperança não é para ter, é para manter

Internacional

Eu e ela andámos pela Irlanda. Passámos em Kilkenny – passem por lá que vale a pena. A noite foi passada num pub, claro, chamado “The Hole in the Wall“, que está aberto desde meados do séc.XVI! Nesse pub, nessa mesma noite, não estava muita gente, mas havia de tudo, e por ordem cronológica do contacto que tivemos com eles: o jovem barman irlandês; um dentista norte-irlandês católico e que emigrou para o sul; um casal suíço; o dono irlandês do pub e conceituado médico cardiologista; dois casais de norte-americanos que vivem perto de Kansas City.

E a conversa teve vários desenvolvimentos, todos quiseram saber novas de Portugal, todos tinham queixas do sistema político actual, todos tinham a cabeça meio baralhada nos conceitos, nas escolhas e nas prioridades. Mas vamos por partes, ou melhor, por personagens.

– o jovem barman irlandês: o que tenho a realçar é que não sabia o que eram os PIIGS e que, sendo músico e pelos vistos putativo maestro, não conhecia fado, o Chico Buarque e a Elis Regina.

– o dentista norte-irlandês católico e que emigrou para o sul: emigrou para o sul porque se sentia excluído na Irlanda do Norte. Disse qualquer coisa sobre se sentir um negro na África do Sul em tempo de apartheid. Disse também que vivemos em fascismo, que a Merkel isto e aquilo, mas depois, mais tarde, disse também que só gostava de dois políticos, Donald Trump e Vladimir Putin.

E como pessoa que sentiu a segregação religiosa na pele, achou por bem afirmar que há quem diga que Paris em 2050 e Londres em 2070, serão cidades islâmicas e que ele não quer viver em cidades islâmicas. Conclusão, é preciso mesmo expulsar os árabes do continente europeu.

– o casal suíço: entre eles falavam alemão, ele chamava-se Roberto (que pronunciou num italiano impecável), ela chamava-se Laure (que pronunciou num francês impecável). Mantiveram-se a noite toda a falar entre eles, pouco interagindo com os restantes. O alemão permite manter a distância, seja isso bom ou mau…

– o dono irlandês do pub e conceituado médico cardiologista: foi médico do corredor de Fórmula 1, Eddie Irvine, inventou um medicamento qualquer para o coração. Um cérebro. E a conversa ia bem, quando no início da noite disse que o pub não era dele, era do banco, que andávamos todos a trabalhar para pagar aos bancos. Até aqui tudo normal, é um facto indesmentível, o que se faz quanto a isso é que nos pode distanciar.

Não sei se estamos muito ou pouco distantes, mas esta mesma pessoa, que durante a noite mostrou ser bom anfitrião, a certa altura elogiou Donald Trump, dizendo que ele tem coragem de dizer coisas que os políticos nem sempre dizem, e que espera que para lá de as dizer, ele as faça. E quais são essas coisas? Dificultar a entrada de estrangeiros nos EUA, ora pois…

– os dois casais de norte-americanos que vivem perto de Kansas City: vamos subdividir em casal 1 e homem 2 (o homem do casal 2, sendo que não ouvi nada da mulher 2, a não ser cantar).

O casal 1 quer muito visitar Portugal. A filha dela esteve cá há pouco tempo (pela conversa a surfar no Alentejo) e adorou, prometeu também voltar. Adoram vinho, demos conselhos.

Quanto ao resto. Não gostam muito do Trump, mas também não gostam da Hillary. ainda assim talvez votem Trump, porque ele não é mentiroso, porque até é um homem de sucesso e porque não pode ser um monstro tão grande se gosta tanto, e demonstra, da mulher e dos filhos.

E sobre Bernie Sanders? Bem, esse é apelidado de socialista – ficámos sem perceber se para eles isso era bom ou mau -, mas na verdade até nem é, porque depois entra em contradição sobre alguns temas. Mas captou muito eleitorado jovem porque defende o acesso às universidades de forma gratuita. E o casal 1 concorda que o que se paga para tirar um curso nos EUA é absurdo. Um médico, por exemplo, tem de pagar cerca de 260.000$, fazendo com que, tendo recorrido a um empréstimo, chegue aos 30 e poucos anos com meio milhão de dólares de dívida ao banco. Mas o casal 1 continua a preferir o Trump…bem, o homem 1 balançou um pouco…

E um outro lado, menos comum e mais agradável. O casal 1 e o homem 2 afirmaram que detestam a arrogância norte-americana que os faz não estudar outras línguas, que os faz dizer que os EUA são o melhor país do Mundo e o resto é paisagem. Não gostam do complexo de superioridade, é isso. Positivo. Dizem que gostavam imenso de aprender outras línguas, de visitar outros países, era a primeira vez que saíam dos EUA e notaram logo que os irlandeses são gente muito, muito simpática. E são.

Disseram ainda que das coisas que tinham mais pena por viverem no Kansas, era a dificuldade de contacto com pessoas de outros países, porque quase nenhum turista vai visitar a cidade deles.

Conclusões: e porque é que vos conto este encontro nocturno? Porque ele não me sai da cabeça, porque sempre que dizem que só em Portugal é que acontece isto ou aquilo, cada vez me arrepio mais. Quando me disserem que só neste país é que há falta de activismo por causas, só neste país é que há um desconhecimento grande a nível político e ideológico, tomarei aquela noite como um belo barómetro.

É claro que há alheamento, desinformação, falta de cultura política, falta de prática democrática, alienação, mas isso acontece em todas as partes do globo. Nesta conversa estavam presentes pessoas com cursos superiores, com profissões que normalmente associamos a um certo nível intelectual, mas as baboseiras que saíram daquelas bocas foram similares às baboseiras que muita gente com graus académicos muito básicos diz.

Não é a academia que forma a solidariedade entre as pessoas e os povos, a academia americana não conseguiu travar um movimento recente de jovens estudantes universitários que acha que certos livros devem ser pura e simplesmente banidos das bibliotecas universitárias, sugerindo até eventos com fogueiras bem vivas e alimentadas pelas suas páginas. Não é a academia que elimina todos os preconceitos mais básicos e animais de alguns seres humanos, nem é ela que vai fazer com que abdiquemos do pequeno quintal que conquistámos durante anos.

O Mundo não é um lugar bonito, nem pacífico, e na maior parte do seu território e nas cabeças de muita gente, não está sequer a caminhar no sentido do progresso e da modernidade. O Mundo é mesmo um lugar estranho, que vive de equilíbrios muito precários, de constante luta por recursos e ideias de putativas sociedades ideais.

O ser humano está cheio de contradições, seja em Portugal, na Irlanda, na Suíça ou nos EUA. Mas o que me assustou mais naquela noite, foi mesmo a constatação de que não caminhamos para uma sociedade que queira paz, caminhamos para uma sociedade que se deixa levar na cantiga do cada um por si e se cada um não consegue o que quer a culpa é do outro. Depois é só escolher quem é o outro, se é o vizinho, ou se é o refugiado ou imigrante que nos entra pelo país e pela cabeça dentro aos trambolhões sem que os nossos Estados se preocupem em combater a xenofobia crescente. Internacionalismo não rimará nunca com racismo.

No dia em que os seres humanos perceberem que a luta é mesmo entre o fundo e o topo da pirâmide, o que o médico irlandês vai perceber é que se andamos todos a trabalhar para os bancos então o que é preciso não é expulsar quem vem para o nosso país, é lutar contra os bancos dos seus países de origem. O que os norte-americanos que acham incrível o custo da educação no seu país vão fazer, é provavelmente juntarem-se e começarem por acabar com o sistema de bipartidarismo que os oprime. O que o dentista norte-irlandês católico vai fazer é voltar para o Ulster e em conjunto com os seus pares protestantes libertar o país do imperialismo capitalista britânico.

No dia em que os seres humanos perceberem, deixa de haver pirâmide, porque a base deixa de suportar o bruto peso do topo.

* Autor Convidado
André Albuquerque