Vera e Carla amam os seus filhos. Mesmo.

Nacional

Vera

Vera dorme agora no centro da cama. O rádio desperta-a sempre numa estação em que as notícias quase não existam, não gosta de acordar com o que a rodeia. São oito da manhã, espreguiça-se, tenta abrir os olhos mas cala o rádio. Mais dez minutos.
Já de banho tomado e de vestido novo, maquilha-se frente ao espelho, tudo menos o baton, que só porá depois de comer os cereais de fibra, as torradas com manteiga light e tomate e um sumo de laranja natural.

Os miúdos já se levantaram e tomam o pequeno almoço com a mãe. Bernardo esconde os recentes 14 anos por trás de uma longa franja que constantemente sopra e os 9 anos de Constança são cor de rosa e brilhantes, da roupa aos materiais da escola. Vera beija-os, dá as últimas indicações à empregada, pega nas chaves do jipe e encaminha-se para a porta. Hoje os miúdos vão de táxi para a escola.

O que safa Vera de minutos intermináveis para estacionar o carro, é a enorme garagem do sumptuoso prédio que a empresa conseguiu comprar no ano passado. Sobre sorridente para o escritório, recebe os bons dias de todos. Retribui. Vera é conhecida por ser simpática, implacável, mas simpática. A reunião da manhã corre bem, a nova dependência da empresa será aberta na América do Sul. Das 6 que têm no país vão poder fechar 2. As indemnizações que terão de pagar a cerca de 100 trabalhadores, rapidamente serão recuperadas pelos baixos salários da sucursal sul-americana.

A salada de penne, feta e pesto de rúcula cai-lhe mal. Maria do Céu conta-lhe porque lhe ligara a chorar no dia anterior. Não precisava, a nódoa negra do pescoço não mente. Era a terceira vez que o marido fazia isto no último ano. Sempre fora agressivo, mas nunca violento. Além de companheira na direcção da empresa, Maria do Céu era uma confidente, a primeira pessoa a quem ela mostrara as marcas do cinto de João Carlos. Nessa altura Bernardo tinha 7 anos, idade para perceber perfeitamente o que se passava, nem precisava de ter entrado no quarto na hora errada. Vera não aguentou tanto como Maria do Céu. Passaram apenas dois dias até à chamada feita para o seu advogado. Separação amigável, ela ficou com a casa, ele com a da praia. João Carlos implorou o perdão, Vera foi simpática, mas implacável. Nunca chegou a odiá-lo, seguiu em frente apesar da mágoa. De 15 em 15 dias ele vai passear com os miúdos.

À tarde reunião com os Recursos Humanos, que lhe respondem directamente. A tarefa é passada, as 2 dependências fecham no final do ano. Que se converse com o sindicato, mas a verdadeira margem de negociação é quase nula. É para despedir seguindo as novas leis laborais, nem mais um tostão. Para a imprensa que se diga que a empresa agradece o trabalho, a dedicação e o esforço que os colaboradores sempre mostraram, mas agora é hora de seguir em frente, de abraçar novos projectos, garantindo a empresa que cumprirá a lei pagando as indemnizações devidas já no início do novo ano.

Ao fim da tarde um encontro com alguns amigos rapidamente se transforma em jantar. Liga à babysitter e pergunta-lhe se hoje está livre. Ok, estarei em sua casa por volta das 19h, sim, o menino está sem sobremesa por ter faltado à aula de piano. Aos 12, Bernardo disse a Vera que preferia a guitarra, mas um piano de cauda é mais decorativo que um amplificador estridente. No jantar está Vasco, o verdadeiro motivo pelo qual Vera esticou o dia na rua. Às vezes, Vasco dorme do lado esquerdo da cama de Vera, sem compromissos. Hoje despedem-se à porta do restaurante, com um beijo adolescente por trás de um placard de publicidade, para os outros não verem. Isso excita-os.

Vera entra no apartamento, dá o pagamento à babysitter, vai espreitar Constança que já dorme e faz a vontade a Bernardo, gravações automáticos para verem juntos os Simpsons. Bernardo esquece-se que estava zangado com a mãe e aninha-se em Vera como quando tinha 6 anos e dizia que ela era a única mãe do mundo. Vera diz-lhe que vão passar o ano a Nova Iorque, só os dois, Constança fica com os avós, na casa de Sintra que Vera lhes comprou assim que passou a directora da empresa. Esta noite Bernardo é o seu homem e isso deixa-a feliz. Apesar das constantes ausências ama os filhos. Mesmo. A vida corre-lhe bem.

Carla

O telemóvel vibra na mesinha de cabeceira. Tirou-lhe o som para não acordar João Carlos. Antes disso já ele a proibira de acordar com o rádio. Trabalha nas redondezas, levanta-se mais tarde. São 5h30m e não há tempo a perder. De um pulo meio tonto salta da cama e corre para a casa de banho levando as primeiras roupas que consegue apanhar. 5h45m e está a acordar os miúdos, um novo recorde. Deixou as mochilas de Bruno e de Edson preparadas no dia anterior. Os gémeos já sabem que não vale a pena acordar muito, o caminho até casa da vizinha é curto, é no andar de baixo.

Marisa abre-lhes a porta, beija Carla, os gémeos entram e vão directamente para o sofá. Marisa trabalha perto de casa, leva-os à escola, a mesma da filha Marta. Andam os 3 na mesma turma do 2º ano, uma das 4 turmas do 2º ano na escola. Carla pede a Marisa que tente que os gémeos façam os trabalhos de casa durante o pequeno almoço, ontem perdeu o barco das 18h50m, o que a fez perder a carreira das 19h20m que a deixa em casa pouco antes das 20h. Como João Carlos não cozinha, Carla já não teve tempo de ajudar os gémeos.

Carla desce as escadas do prédio, sai de casa, vira à esquerda, desce a rua inclinada e ao mesmo tempo tira da mala a pêra e o iogurte que vão ter de a aguentar até ao almoço, que também traz na mala. Chega a carreira, e explica ao motorista que não conseguiu renovar o passe, o patrão só me pagou ontem, 2 dias atrasado e eu estava sem dinheiro, e agora não o posso comprar na loja que havia perto de casa, tive de ir dar o jantar aos gémeos…O motorista compreende mas diz que não pode fazer nada, se o fiscal aparece quem perde o trabalho é ele. Carla andou a juntar dinheiro para se oferecer um creme para as mãos, gretadas e gastas pelos detergentes ácidos do trabalho. Agora vai ter de gastar 2 euros numa viagem de 4 paragens apenas, o creme tem de ficar para o ano. Senta-se já bem desperta, ao lado de caras conhecidas que voltam agora a casa. Uns da noitada, outros do trabalho. Cumprimenta o senhor Jacinto, o padeiro que conhece desde criança.

Chega aos barcos, espreita o guichet dos passes, ninguém. Melhor assim, talvez ainda consiga apanhar o barco das 6h10m. Consegue. Vai chegar a horas aos escritórios onde faz limpezas. Mas antes disso a travessia do rio, o passo apressado de todos os dias até ao metro e a subida da colina interminável. Está quase a chegar aos escritórios quando o patrão da empresa de limpeza para a qual trabalha lhe liga. Carla, sabe que me fez acordar antes das 7h da manhã para lhe dizer que hoje tem de limpar a sala das conferências? Senhor Meireles, desculpe, mas quando me ligou ontem não podia atender e depois não deu para ligar de volta. E não deu porquê, Carla, acha que eu sou seu pai? Silêncio…Senhor Meireles, como o pagamento veio atrasado eu não tinha saldo no telemóvel…Silêncio…De repente uma explosão de quem sabe que não tem razão, ó Carla, e não tem vizinhos que a ajudem, o seu marido? Olhe, limpe mas é a merda da sala de conferências decentemente e é se quer manter o emprego. Fim de chamada.

Carla limpa as salas habituais e a entrada do escritório. A sala de conferências é ampla, mas com poucos pormenores. Ainda assim já passa das 9h, se quer chegar a tempo ao supermercado vai ter de correr de volta ao metro. Troteia a colina interminável até ao fim, apanha o metro que a esta hora já tem mais vozes, troca de linha e tem a sorte de apanhar logo nova carruagem. Chega a horas ao supermercado, um minuto de atraso significa um desconto no ordenado. Passa o leite, passa os ovos, passa a carne, passa a massa. Tem cartão de desconto? Vai pagar com dinheiro ou com cartão? Aqui tem o seu talão, obrigado. Passa o leite, passa os ovos, passa a…Ó menina isso não anda? Estou aqui há 10 minutos! Desculpe não consigo ser mais rápida. Carla, diz o gerente de loja que sabe que ela é a sua melhor caixa, menos conversa e mais rapidez! Sim, senhor…carne, passa a massa. Tem cartão de desconto? Vai pagar com dinheiro ou com cartão? aqui tem o seu talão, obrigado.

13h. Tira a sandes da mala, queijo e fiambre. Já despiu a farda e está quase a chegar à Segurança Social. Carla trabalha a recibos verdes nos dois sítios, as visitas à SS são constantes e cada vez mais frequentes. Carla só tem o 9º ano, quando começou a trabalhar era por baixo da mesa, e sabe agora que até preferia assim, ficava com mais ao fim do mês e ainda poupava. Agora é contas até ao cêntimo e o que lhe vale é que sempre foi boa a matemática. Isso e a ginástica para aproveitar as promoções. Como não tem internet em casa sempre que surgem dúvidas vai à loja da SS. Desta vez são novamente os escalões. Não há senhas. Carla quase chora, na carta que lhe chegou a casa falam de um prazo de 10 dias para qualquer coisa que não percebeu bem o que era.

A tarde no supermercado até foi boa, poucos clientes, que as compras nestes dias são noutro tipo de lojas. Para compensar o raspanete da manhã, o gerente chama Carla à parte, pede-lhe desculpa, diz que ela sabe que os clientes têm de ser bem tratados. Mas hoje sais 15 minutos mais cedo, para veres que sei o teu valor. Carla agradece, o gerente tem mesmo bom coração e é mesmo compreensivo. É muito diferente do anterior, a quem era preciso pedir por favor para ir à casa de banho. Com esta mini-folga vai passar na loja ao lado e comprar 2 bolas de futebol, para o natal dos gémeos. Sempre tudo a dobrar, que lá em casa há exigências.

Metro, barco, carreira, porta de casa. Porta da vizinha, os gémeos atiram-se à mãe. Marisa diz-lhe que hoje não há TPC’s, que estão quase de férias. Graças a deus! Chegam a casa e Mãe, que tens nesse saco? Nada, seus curiosos, vão brincar, vá. Esconde as 2 bolas no armário do quarto e fecha a porta ao mesmo tempo que João Carlos abre a de casa. São 19h30m e vem com cara cerrada. Senta-se na sala, liga a televisão e abre a primeira lata de cerveja. Quando Carla chama para a mesa ele deixa no chão da sala as 3 latas que entretanto bebeu. Os gémeos sabem que algo se passa, mas continuam as suas lutas de pernas até que João Carlos dá um carolo mais forte em Edson. Silêncio. Carla pergunta se está tudo bem. Está, come e cala-te. Assim que leva a última garfada à boca, João Carlos sai. Vai ao café da esquina, como sempre.

Carla brinca com os gémeos às adivinhas. Um dia Bruno vai ser actor. Vais ser uma estrela, meu filho, vais ver e o teu irmão vai ser o teu agente, o melhor do mundo, e a mãe vai chorar quando estiveres a agradecer o teu primeiro Oscar em português. Riem-se muito, rebolam-se muito e chega a hora da cama. Os gémeos adormecem rápido.

Não acordam quando João Carlos entra em casa aos zigue-zagues. Carla espera-o na cozinha e não o deixa tirar outra cerveja do frigorífico. Sai da frente ou parto-te a boca! Estás a ouvir? João Carlos, nem mais uma, já viste o teu estado? Empurra-a, ela cai ao chão, levanta-se e fecha o frigorífico. Sua puta de merda. Estalo com os nós dos dedos e um pontapé nos joelhos. Carla está outra vez no chão e Bruno à entrada da cozinha, agarrado ao peluche com que ainda dorme. Vai já para o quarto caralho, vai ou também levas! Isto é bom material para um futuro actor, tão novo e já tão vivido. Bruno volta para o quarto. João Carlos cambaleia, cai, olha para Carla e vê o sangue que lhe sai do corte na bochecha esquerda. João Carlos é um pranto imparável, soluçante e de olhos raiados. Desculpa, meu amor, desculpa. Desde que tinha encontrado este trabalho João Carlos não tinha voltado a bater-lhe, Carla pensou que o pior já tinha passado. Há 3 anos chegou a tentar o divórcio, mas quando percebeu o que isso custava desistiu. Além disso ele fora o único na sua vida, não sabia se era amor, mas não se queria livrar disso, queria que ele voltasse a ser o que era. Desculpa, meu amor, e foi aninhar-se no seu corpo como fazia no início, quando ainda lhe dizia amo-te. Desculpa, meu amor, mas a dependência da empresa vai fechar, vão-me despedir, vou ficar sem emprego outra vez, meu amor, já no final do mês. Carla afaga-o, passa a mão na sua cara e limpa o sangue com um pano. Leva João Carlos para a cama, deita-o. Descansa, meu amor.

O espelho mente-lhe e mostra-lhe uma mulher de quarenta anos, o cartão de cidadão diz-lhe que tem 29, mas ela já não acredita. O cabelo desgrenhado, as olheiras fundas, as rugas de expressão tão vincadas, as mãos gastas e gretadas e as unhas amarelas. E o corte que continua a sangrar, só há alcoól em casa, paciência. Amanhã se alguém perguntar foi contra uma porta a brincar com os gémeos. Vai-se rir e tudo a contar a história que vai inventar entre casa e o trabalho. Quando chegar ao metro espera já ter decorado o enredo. Gostava de tapar a ferida, mas há muito que não tem dinheiro para maquilhagem. Quando era miúda mascarava-se com farinha, de branquela, dizia, porque estava farta que a chamassem de farrusca ou simplesmente preta. O meu nome é Carla e nasci aqui mesmo. É o que responde quando lhe dizem para ir para terra dela.

Já recomposta espreita o quarto dos gémeos, juntaram-se na mesma cama, mais protegidos. Carla beija os dois, ajeita o lençol e consegue desenhar um sorriso. Um dos poucos do dia. Bruno e Edson são seus, para sempre, os únicos que serão sempre seus. Assim espera. Apesar das constantes ausências ama os filhos. Mesmo. A vida vai-lhe correndo.

* Autor Convidado
André Albuquerque