No assento do comboio, repousa um jornal que aparenta não ter dono. Nele tropeçam os olhos uma e duas vezes, na viagem entre a janela e os outros passageiros. Bem podia ser o Metro ou mesmo o Destak, mas a diagramação que inunda em letras a folha larga, trai a gratuitidade tabloide. Que jornal este, que é livre sem ser grátis e é honesto sem ser imparcial? Que se deixa no comboio sem nunca o abandonar e, ainda assim, é de todos tendo afinal um dono?
Nada disto poderia saber o dono dos olhos que cobiçam o periódico. Agarrado e levantado, desdobrado e sacudido, deixa à vista a foice e o martelo cruzados sob a estrela apontando um vértice a cada um dos cinco continentes. “94.º aniversário” lêem os olhos “do Partido Comunista Português”.
Era ainda pequenino, acabado de nascer
Bem longe destes olhos outros houve, em tudo semelhantes, que no dia 6 de Março de 1921, viram o Partido nascer, na sede da Associação dos Empregados de Escritório, em Lisboa. Para estes olhos confluíram as imagens de incontáveis décadas de muito sofrimento, de muita luta: as crianças, paridas sem luz nem nome, que não vale a pena nomeá-las antes de se saber se não morrem ao cabo de um mês; os velhos, em bando, a pedir esmola de aldeia em aldeia, que a caridade dos ricos é o que resta a quem já não pode continuar a trabalhar para os ricos; as casas, buracos escuros e húmidos, só com um catre de frente do baú; o feitor, a entrar na praça e a anunciar «Hoje só há trabalho para onze e a partir de agora o senhor só paga dois tostões. Quem quer?»; os trabalhadores, a maior parte analfabetos, sentados a discutir que isto assim não pode ser, e a aprender e a tactear, como havia de ser, para mudar isto, para mudar o mundo; o exército, a disparar contra o próprio povo, porque ousaram dizer não e, numa coragem inaudita para os capatazes, pararam a produção; os agitadores, despedidos, presos, torturados, mortos. Tudo lembram os olhos que viram e sentiram, porque estavam lá. Porque este novo Partido não era como os outros Partidos Comunistas: não vinha da social-democracia, mas do velho anarquismo operário.
«Ouve, avôzinho! – dissera-lhe dessa vez. – Tu sempre foste anarquista, mas sei que me vais compreender. Entrei para o Partido Comunista, sabes? Achas bem ou mal? O velho ficou-se a mordiscar o bigode, com o olhar fito nela, os olhos rasos de lágrimas. Maria, que o conhecia, bem via serem lágrimas de aprovação.»
Até Amanhã, Camaradas
Os olhos pedem olhos e os corações, corações
Depois, em 26, caiu a treva e o calcanhar do fascismo pisou o povo com todo o peso das classes dominantes. Os olhos de uma nova geração viram todos os outros partidos baquear, a bem: «Esquecei as estranhas ideias de vossos pais» escreviam os republicanos cooptados; ou a mal. Veio a proibição, a censura e as perseguições, mas os olhos que as viam, não podiam ser impedidos de ver, porque olhavam a História, para além das celas e das grades, através e uma organização firmemente implantada no coração do povo. Na vanguarda da liça de classes, os nossos olhos viram a enorme violência do capitalismo: as balas dos que pediam oito horas e o pão racionado, a clandestinidade dos abnegados, um panfleto em que se lê «se fores preso camarada…», a Marinha Grande levantada em armas, uma camisa que vem rubra, de sangue de um camarada, uma estátua de febre a arder, um pedido impossível de satisfazer: “Vê lá como venho eu…”. Foi com estes olhos que Partido evoluiu, reorganizando-se em 40, ampliando-se em 65, resistindo sempre, mesmo quando todos diziam que «era mesmo assim» a guerra, a censura, a pobreza, o desemprego. Vendo mesmo quando mais ninguém queria ver.
«Nesse terceiro dia de “estátua”, ao urinar, viu tombarem algumas gotas de sangue vivo. Três palavras lhe ocorreram: “Até à morte!”»
Até Amanhã, Camaradas
Embora os meus olhos sejam os mais pequenos do mundo
As revoluções não se fazem, preparam-se. E só ao fim de meio século de luta é que pudemos ver, com os nossos próprios olhos, a liberdade e o sonho: a promessa do socialismo. Em dois anos vimos o salário mínimo, as reformas, a segurança social, a dignidade, a educação, a saúde. Vimos este povo a lutar. Depois, a traição e o lento regresso ao passado. Outros olhos haverá que não querem ver. Que acham normal que de ano para ano, o futuro nos enterre mais no passado, na miséria antiga dos nossos avós. Olhos que fingem não saber ler a Constituição nem conhecer o que significa o «socialismo» no seu nome. Mas sejamos revolucionariamente optimistas: nunca na História humana houve desafio ou problema que a luta de classes não tenha ultrapassado. Durou algum império eternamente? Houve senhor feudal que resistisse ao tumultuoso século XX? E dos novos imperadores do século XXI, já se sente o violento estertor. Mais cedo do que tarde, havemos de lhes soletrar, se necessário a tiros de espingarda, cada letra da palavra socialismo.
Existe em Portugal uma organização que viu 94 anos de História do lugar dos explorados e para os libertar: o Partido Comunista. A nossa História é a luta de um povo, uma mensagem na parede, um jornal no comboio, uma reunião na empresa, uma manifestação na rua, um ideal que se projecta no futuro, visível para aos olhos que saibam ver.
Parabéns, Partido!