Diabética, invisual e com menos 70 euros no fim do mês

Nacional

Vamos chamar-lhe Amélia. Eu gosto do nome e, nestes casos, convém, para já, salvaguardar alguma privacidade. Trabalhou e, como tal, chega agora à idade da reforma. Com a vantagem de nunca se ter esquecido de pagar qualquer contribuição à Segurança Social. O certo é que, há quase 10 anos vítima da diabetes, acabou a receber uma pensão de invalidez por ter ficado cega. Recebia a fortuna de 567 euros mensais, incluindo já os 100 euros de complemento de dependência. Agora, que continua dependente mas passa à condição de reformada, irá  receber 497 euros, deixando de ser inválida, segundo a Segurança Social, para passar a ser só pensionista (deixando de ser pensionista por invalidez para ser pensionista por velhice).

Como é evidente, a Amélia continua a precisar de cuidados permanentes, de medicamentos, de apoios. Tem as mesmas despesas quando tinha direito à pensão de invalidez Mas, para este país que está tão melhor – ou tão diferente, se preferirem -, pode bem sobreviver com menos 70 euros. E ainda contribui para o factor de sustentabilidade da Segurança Social, como manda a prática dos bons alunos, dos PEC, dos memorandos, da austeridade e da inevitabilidade que nos impingem todos os dias.

A Amélia tem família e amigos que farão tudo para que continue, no mínimo, a manter os níveis e qualidade de vida que terá até Abril, ironia, que é quando entra em vigor o corte.

O que são, afinal, 70 euros, num país onde todos os dias nos habituámos a ouvir falar em milhões e milhares de milhões e outros números que nos parecem enormes só pela forma como são ditos. “A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor”, disse Luís Montenegro, líder parlamentar do gangue que ajuda a suportar. Devia ser fácil explicar-lhe, como exemplos como este, que não há país sem pessoas.

Talvez o erro seja esse, haver pessoas neste país. Ou isto já não é bem um país. É uma coisa. É um sítio onde estamos e vamos sobrevivendo e arrastando este sofrimento diário que é assistirmos ao naufrágio de tudo o que foi conquistado a pulso e punho. Temos culpa, sim. Temos todos, que eu não gosto de falar na terceira pessoa; é como sacudir o pó do tapete na varanda do vizinho.

Tenhamos consciência que já estamos no abismo, demos o tal passo em frente. Não me serve ser bom aluno se amanhã me fecham a escola. Não me serve ter um ministro da Saúde que diz que está mau mas podia estar pior. Não me servem desculpas esfarrapadas de corruptos, mentirosos e criminosos, estejam ou não presos.

Temos todos culpa no estado a que isto chegou. Uns por omissão, outros por negligência, outros por interesse. Tomemos, pois, partido naquilo que decide o nosso futuro e já não falo na nossa vida. Falo da nossa sobrevivência não enquanto país mas enquanto povo.