O Dia Internacional da Mulher foi, da sua origem aos dias de hoje, avançado e defendido por comunistas, expressando, de modo inequívoco, a visceral ligação entre a luta pela emancipação das mulheres e a luta pela libertação da classe trabalhadora.
Passado para lá de um século do mais selvagem liberalismo e reformismo, as raízes comunistas foram-se vendo cobertas por um estéril composto de “empoderamento feminino” e outras falácias individualizantes, artificialmente gerado a partir de algumas das mais reaccionárias fábulas: uma espontânea origem norte-americana, impermeável ao projecto soviético e dependente da democracia burguesa como marco maior de igualdade.
Não obstante, o Dia 8 de Março contém ainda em si o rizoma que peremptoriamente o liga à semente comunista que germinava a Leste no início do século XX e, nas nossas mãos, para sempre ligado ao cravo e à papoila que ainda brotam obstinados da terra. É preciso continuar a traçá-lo à superfície.
Nova Iorque, 1857
A estória que mais comummente nos é contada sobre a origem do Dia Internacional da Mulher, aquela de disseminação hegemónica e que presume dizer-nos o que realmente aconteceu, situa a raiz do Dia numa fábrica têxtil de Nova Iorque, a 8 de Março de 1857. É repetido com a mais segura convicção: as trabalhadoras têxteis, numa demonstração espontânea contra os míseros salários, os turnos de 12 horas, a excessiva carga de trabalho e a generalizada ausência de condições dignas de trabalho e de vida, são brutalmente confrontadas pela polícia e obrigadas a dispersar; o Dia Internacional da Mulher seria sinalizado, a posteriori, em sua homenagem.
A descrição das tenebrosas condições de exploração das trabalhadoras da indústria têxtil é real, não tenhamos dúvidas; como também é real a sua organização, à data, um pouco por todo o mundo; as nossas dúvidas devem, no entanto, recair sobre os contornos de “demonstração espontânea” e a suposta relação causal que esta estabelece com o Dia Internacional da Mulher. Liliane Kandel e Françoise Picq, destacadas integrantes da corrente feminista-materialista francesa dos anos 1970, inauguravam, no artigo “Le Mythe des origines, A propos de la journée internationale des femmes” (publicado no nº 12 da revista La Revue d’en face, em 1982), a credível e séria hipótese desta demonstração-originária se tratar de uma ficção retroactiva, motivada pela necessidade de desligar o dia 8 de Março da sua origem socialista, diluindo-o na propaganda liberal que insistentemente o tenta abraçar e reclamar como seu desde então.
Kandel e Picq remontam esta invenção norte-americana a 1955, quando se apresentou por demais oportuno arrancar, do Dia Internacional da Mulher, a visceral ligação à história bolchevique, e colá-lo a algo mais ancião, mais americano, menos organizado. A historiadora Temma Kaplan escreve no mesmo sentido, em 1985, no artigo “On the Socialist Origins of International Women’s Day” (na revista Feminist Studies, Vol. 11, nº1), sublinhando o antagonismo entre a suposta demonstração espontânea e o decreto do dia por ordem do Estado soviético, por iniciativa das mulheres do Partido Bolchevique e como reflexo da luta organizada das mulheres trabalhadoras.
Em lugar da fábula norte-americana, vassala do Capital, propomos que se olhe, antes, para a Alemanha em Junho de 1889. A revolucionária comunista alemã Clara Zetkin, então editora do jornal “Gleichheit” (instrumento das mulheres do Partido Social Democrata Alemão), voltava à Alemanha após se ter deslocado a Paris para participar nas comemorações do Dia da Bastilha, onde tinha encontrado uma robusta organização de sectores progressistas em torno de uma grande demonstração pelos direitos dos trabalhadores apontada para a celebração do 1º de Maio. Reconhecendo a importância desta união de esforços em torno de uma data comemorativa, e a necessidade de dinamizar as bases organizativas da luta das operárias, Zetkin tornar-se-á a grande impulsionadora da ideia de um Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras (termo que inicialmente se assume como ligação explícita às reivindicações das trabalhadoras).
Na primeira década do século seguinte, a ideia de Zetkin havia ganho impulso entre as mulheres socialistas e comunistas norte-americanas e europeias, daí nascendo demonstrações de rua pelos direitos das mulheres em instâncias diferentes, de apelo nacional (de destaque a celebração, a 28 de Fevereiro de 1909, de um Dia Nacional da Mulher, em Nova Iorque, sobre impulso do Partido Socialista Americano e da sua destacada dirigente Therese Malkiel) e internacional. Neste sentido, na Reunião de Mulheres Socialistas que precede a Segunda Internacional em Copenhaga, em Agosto de 1910, Zetkin e a socialista alemã Luise Zietz propõem a celebração anual do Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, como reivindicação da emancipação das proletárias, da concretização de um sufrágio universal e da organização das mulheres trabalhadoras no movimento sindical e nos movimentos sociais, que assumiam, à data, uma considerável força. A moção, que defendia a organização do dia pelas mulheres socialistas de todos os países, “em acordo com as organizações políticas e sindicais do proletariado nos seus respectivos países”, é aprovada; no entanto, nela não se concretiza uma data definitiva.
No ano seguinte, a 19 de Março, o Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras é assinalado pela primeira vez, com robustas demonstrações de rua, com mais de um milhão de mulheres em diversas cidades na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça. O dia continuará a ser marcado, nos anos subsequentes, entre o final de Fevereiro e o início de Março. É na Terceira Internacional, em 1922, que o dia 8 de Março se define como Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras e como feriado comunista, por proposta de Zetkin e Lenine e como homenagem à data em que as trabalhadoras russas haviam saído à rua 5 anos antes.
O trabalho que Zetkin leva a cabo neste contexto, ao lado de Lenine, determina a visceral e inextrincável ligação entre a luta pelos direitos das mulheres e o projecto comunista. Registaria em “Recordações sobre Lenine”, em 1924, que “o camarada Lenine […] atribuía um significado muito grande ao movimento feminino, parte integrante do movimento de massas, tão importante que poderia, em certas condições, tornar-se uma parte decisiva. É claro que para ele a igualdade completa da mulher constituía um princípio de base, absolutamente incontestável para todo o comunista”.
Em 1975, 65 anos passados da proclamação do dia, e por pressão dos movimentos feministas do norte global, a ONU estabelece oficialmente o dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher, contribuindo para uma diluição das suas radicais origens socialistas. Promovendo esvaziadas e generalistas noções de igualdade, cujo alcance será sempre meramente formal, esta versão do Dia serve uma lógica de incorporação, esvaziamento e mercantilização em detrimento de transformações sociais radicais.
S. Petersburgo, 1917
A mais impressionante celebração do Dia Internacional da Mulher tem lugar em 1917, em S. Petersburgo, e será ela a determinar a calendarização de forma permanente. A celebração fazia-se, em território Russo, desde 1913 sob impulso da revolucionária comunista russa, Alexandra Kollontai, reivindicando condições de vida e de trabalho dignas, enfrentando uma extensa e brutal repressão, e criando as condições materiais para o que viria a seguir.
No dia 23 de Fevereiro de 1917 as trabalhadoras saem à rua em massa por ocasião do Dia Internacional da Mulher – 23 de Fevereiro no calendário juliano, 8 de Março como seu correspondente ocidental. O custo de vida tinha atingido valores incomportáveis: o preço das rendas duplicava, o preço da farinha e do pão sofria um aumento entre 80% e 120%, o sabão mais de 200%, o combustível e a carne largados à especulação selvagem, as fábricas fechadas por falta de energia. Mais de meio milhão de trabalhadores protestavam nas ruas entre Janeiro e Fevereiro.
O impulso dado pelas trabalhadoras têxteis russas, em veemente desacordo com os nefastos efeitos do Czarismo e da participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial, acenderia o inexpugnável rastilho que levaria ao envolvimento de toda a cidade e, depois, de todo o território Russo. As trabalhadoras fazem greve cerrada e enviam delegadas a outras fábricas estabelecendo uma solidariedade de classe que se torna plenamente massificada quando os trabalhadores metalúrgicos, na sua maioria homens, saem à rua acompanhando todas as trabalhadoras em greve. Dois dias depois, o czar ordena o exército a disparar por forma a suprimir a revolta; os soldados desafiam as ordens e tomam o lado dos trabalhadores. Inicia-se a Revolução de Fevereiro que, desenrolando uma irrefreável cadeia de lutas organizadas, conduz à grande Revolução de Outubro.
Chegados ao poder, os Bolcheviques revogam, de imediato, todo o aparelho legal que determinava a subjugação das mulheres no seio da família e da sociedade, realizando avanços sem par nos países capitalistas, largos anos antes de qualquer expressão semelhante noutros países. Garante-se a igualdade entre mulheres e homens perante a lei através do direito ao voto, a ser eleita, ao divórcio, ao aborto, ao trabalho, a salário igual para trabalho igual, à escolha livre da profissão, à saúde, à maternidade como função social, à protecção social no caso de desemprego, doença ou incapacidade física, entre outros.
Lenine havia continuamente sublinhado o carácter inextrincável da igualdade a inscrever na lei e a abolição da propriedade privada dos meios de produção – só a abolição da propriedade privada garantiria a transformação das condições materiais das trabalhadoras, libertando-as da servidão doméstica a partir da criação de serviços domésticos socializados em grande escala, que tomariam a seu cargo as tarefas domésticas. Assim, a extraordinária expressão da Revolução no quadro legal da Rússia vive necessariamente a par de radicais transformações sociais e económicas de profundas repercussões nas condições materiais das trabalhadoras.
Nomeada Comissária do Povo logo após a Revolução, Kollontai empenha-se diligentemente na concretização das condições para a libertação das mulheres, instituindo logo em 1918 a obrigatoriedade de 16 semanas de licença de maternidade remunerada, garantindo tempo de amamentação através da restrição da semana de trabalho a quatro dias para mulheres lactantes, num contexto mundial em que os direitos das mulheres trabalhadoras eram diminutos e as licenças de maternidade praticamente inexistentes. Concretizando a orientação de Lenine sobre a socialização do trabalho doméstico, os primeiros meses da revolução vêem, sob a direcção de Kollontai, a criação de creches gratuitas, cantinas comunitárias, lavandarias públicas, e a implementação de espaços de creche e cantina nos locais de trabalho, por forma a aliviar a carga laboral das mulheres.
Esta robusta rede de infra-estruturas sociais de apoio às mulheres (nas actividades domésticas, acesso a cuidados de saúde, protecção à infância e na velhice, etc.), a par das garantias jurídicas, asseguravam as condições necessárias à participação das mulheres nas actividades económicas e culturais do país. Inicia-se um profundo e extenso esforço de alfabetização e envolvimento activo das mulheres na liderança do Partido e do Estado, pensando-se decisiva a participação política e social das mulheres, não só no sentido da sua emancipação mas igualmente de concretização da Revolução, na certeza de que o “proletariado não poderá alcançar a vitória completa sem conquistar a plena liberdade para a mulher” (Lenine, “Pravda”, 1920).
Fazendo um balanço do processo revolucionário soviético, Lenine afirmava logo em 1919, quando redige “O Poder Soviético e a Situação da Mulher”, que “em dois anos, num dos países mais atrasados da Europa, o poder soviético fez pela emancipação da mulher, pela sua igualdade com o sexo «forte», mais do que haviam feito todas as repúblicas avançadas, cultas, «democráticas» do mundo inteiro, no curso de cento e trinta anos.”
Assim se desmonta a reaccionária fábula de que Lenine e o projecto soviético negligenciariam a luta das mulheres, secundarizando-a. Lenine insiste, desde o primeiro momento, ainda antes da Revolução, na necessidade de organizar as mulheres na luta: sem o envolvimento destas na vida política, no serviço público, nas milícias, longe do asfixiante contexto doméstico, a liberdade real, assim como o socialismo, mostrar-se-ão continuamente inalcançáveis. Esta convicção é parte inalienável da herança que recebemos de Lenine e da Revolução Russa.
A este propósito, em 1970, na ocasião do centenário do nascimento de Lenine, o Comité das Mulheres Soviéticas organiza, em Moscovo, um simpósio internacional sob o mote “V. I. Lenine, o papel da mulher na sociedade contemporânea e a experiência da solução do problema feminino nos países socialistas”. A participação de delegações de todos os países socialistas à época, e de organizações internacionais, deixava claro o carácter internacionalista do pensamento de Lenine e o significado do seu legado para todos os povos do mundo. Unikolaieva-Tereshkova, presidente do Comité, afirmava, aí, que “as mulheres do mundo inteiro, que lutam pelos seus direitos, encontram na herança teórica leninista a resposta aos problemas mais palpitantes da actualidade”. Esta afirmação é tão verdadeira quanto pertinente ainda hoje.
Lisboa, 2025
Lembramos Kollontai que, referindo-se, em 1920, a avanços legais nas democracias ocidentais, sublinha: “Mas de que servem estes direitos às mulheres trabalhadoras no quadro dos parlamentos burgueses? Enquanto o poder estiver nas mãos dos capitalistas e dos proprietários das terras, nenhum direito político salvará a mulher trabalhadora da tradicional posição de escravatura no lar e na sociedade”.
Confrontamo-nos, hoje, à semelhança do que avançava Kollontai, com um quadro que, do alto do seu inescapável carácter neo-liberal e individualizante, fomenta a ideia de que a opressão das mulheres pode ser superada dentro do próprio capitalismo, com a promoção de mulheres em posições de poder e a mentira do empoderamento feminino, abrindo-se mão de qualquer necessidade de transformações estruturais e da luta colectiva revolucionária. Avançam-se soluções individuais a problemas sistémicos criados por uma crise capitalista que permeia todos os cantos da sociedade; e aproveita-se o 8 de Março para acorrentar a justa luta das mulheres a uma ideia rasa e formal de igualdade como fim em si mesmo.
A teórica marxista Nancy Fraser expressava a este propósito, em 2015, que o nosso objectivo deve ser o derrube das hierárquicas estruturas de poder da sociedade capitalista, em detrimento da estéril luta pela ocupação de posições de poder e privilégio por um determinado grupo de mulheres, dentro dessas estruturas existentes, pois não poderá existir emancipação real da mulher se a estrutura que a oprime permanecer intacta.
Hoje, num agravado quadro de ameaças e retrocessos, o exemplo soviético deve, pois, trazer-nos à memória que a emancipação real das mulheres depende da radical cisão com o capitalismo, só assim a igualdade perante a lei pode ser transposta para todas as áreas da vida, suplantando a ficção da igualdade dentro da democracia burguesa. A raiz comunista do 8 de Março carrega o legado histórico de luta e aspirações das mulheres, dos trabalhadores e dos povos; é projecto de acção e mobilização.
Perante as mais abertas ou dissimuladas tentativas de arrancar do dia 8 a sua raiz revolucionária, levantemos o punho e com ele a flor rubra que nos liga à terra de onde brotou e às mãos que dela cuidaram antes de nós.
Celebramos, junto do Movimento Democrático de Mulheres, o Dia Internacional da Mulher neste próximo sábado em importantes iniciativas de rua por todo o país. Lembrando os 50 anos passados da primeira comemoração do dia 8 de Março em Liberdade, mas igualmente as comemorações precedentes que, pelas mãos do MDM, do PCP e demais forças progressistas, foram corajosamente desafiando o regime fascista e criando condições para que um dia se pudesse dizer da emancipação das mulheres e dos povos em Liberdade. Que o derrube da fábula norte-americana da origem do dia 8 de Março nos relembre que é na resistência organizada, mais que nas demonstrações espontâneas, que a luta política se efectiva e que os direitos das mulheres se conquistam e reafirmam.