A Bolsa ou a Vida?

Nacional

Os bolseiros encontram-se blindados por um pedaço de lei, magnifico pela sua originalidade, chamado de Estatuto do Bolseiro de Investigação (vulgarmente EBI!). Em vez de uma relação jurídica laboral esta lei regula pela subsidiação o trabalho que envolve uma boa parte dos recursos melhor qualificados, a nível académico, do país, da forma mais precária possível. Estes trabalhadores, não reconhecidos como tal, responsáveis por grande parte do que é produzido pelo Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) não têm assegurados os mais elementares direitos laborais incluindo a integração no regime geral da Segurança Social.

Esta singularidade tem um impacto enorme na forma como o trabalho do bolseiro é conotado pela própria sociedade. Não só é um instrumento de precarização do trabalho, usado sem qualquer pejo para a contratação de pessoas que de outra forma teriam um contrato de trabalho, como também lhe dá um cariz caritativo, como pode ser sublinhado pelo nome da rubrica da remuneração principal – “subsídio de manutenção”! Que se desengane quem acha que isto está relacionado com o facto de alguns bolseiros estarem a trabalhar no sentido de também lhes ser conferido um grau académico, uma vez que há inúmeros investigadores de pós-doutoramento em que isto não se aplica e que são remunerados a bolsa, podendo esta ter durações de 6 anos.

O tempo aqui é de enorme relevância! O maior argumento para a iniquidade em que se mantêm os bolseiros é o de carácter temporal – que as bolsas são situações temporárias entre a frequência do ensino superior e a entrada na carreira académica ou de investigador. Da mesma natureza podemos considerar o argumento – as bolsas destinam-se a jovens que ainda não precisam de ter uma situação laboral definida. A realidade é que milhares de investigadores, jovens e também menos jovens, desenvolvem o seu trabalho ao longo de anos, ou mesmo décadas, arrastando-se de bolsa em bolsa, significando isto o atraso do início da sua independência ou a constante preocupação do futuro imediato de famílias inteiras que dependem da lotaria das bolsas.

Sem uma carreira, quer profissional quer contributiva, falta a estes trabalhadores praticamente tudo o que foi conquistado, em matéria de direitos laborais, nos últimos 40 anos. De relevar ausência de subsídio de desemprego, que pode acontecer a qualquer momento por decisão unilateral por parte do empregador, contribuição para a reforma, férias, segurança no emprego, etc. Assistência básica é conferida, de forma opcional, através do Seguro Social Voluntário (SSV), comparticipado até ao primeiro escalão, estando este completamente desajustado em todos os casos, e estando o bolseiro na obrigação de adiantar os valores correspondentes, ficando depois este o fiel depositário da dívida da FCT que pode demorar meses a reembolsar. Aqui, mais uma ocasião em que o Estado engana o Estado, fugindo das suas obrigações legais de garantir a Segurança Social, não sem ouvirmos múltiplas vezes, dos do costume, que a mesma está falida e que mais vale nem contarmos com a reforma quando for tempo dela!

Pelo caminho muitos são os atropelos que os bolseiros sofrem. A somar-se ao congelamento das bolsas desde 2001, significando isto uma perda do poder de compra em mais de 25%, mais cortes remuneratórios foram feitos nos subsídios, e sempre subsídios!, de conferências e apresentação de resultados, ficando assim a ciência portuguesa estéril aos olhos da sociedade, a redução de subsídios para as propinas, que nunca pararam de aumentar no seu contínuo propósito de elitizar a educação, o fim de subsídio para composição gráfica e emolumentos de teses, é normal só o acto de entrega de uma tese exigir o pagamento de algumas centenas de euros, ficando todos estes custos a cargo do bolseiro, se quiser que o seu trabalho seja concluído e reconhecido, resultado desejável para todos nós! Todos estes cortes foram feitos, como em geral para todos os trabalhadores, com retroactividade e à revelia da lei e de contratos previamente estabelecidos, na política do quero, posso e mando a que este governo PSD/CDS já nos habituou. Os constantes atrasos da FCT em compromissos assumidos, já levaram Universidades a exigir aos bolseiros o avanço de montantes, na ordem de ⅓ do seu rendimento anual, ilustrando bem o desespero das instituições estranguladas financeiramente, que não hesitam em esmagar, por sua vez, a parte mais fraca! Ainda no decorrer deste ano, a peregrina ideia de incluir os bolseiros no artigo da Lei do Orçamento do Estado (artigo 33.o da lei n.o 83-c/2013 de 31 de dezembro) que definia a quem aplicar os cortes remuneratórios saiu de um parecer duvidoso emitido pela Direcção Geral da Administração e do Emprego Público, sem qualquer justificação ou sustentação criando o caos e o desespero na vida de um vasto número de bolseiros. À semelhança de muitos outros trabalhadores do estado, sem contratos em funções públicas, os bolseiros eram agora chamados de trabalhadores para efeitos de cortes remuneratórios. A luta implacável da ABIC trouxe aqui lucidez, obrigando a FCT a publicar a sua posição sobre este assunto, terminando o episódio com o próprio Ministro da Educação e Ciência a assumir mais um “engano” do seu governo, desmentindo a DGAEP. Caricato, não fosse a gravidade, saber que a UL, pela mão do seu reitor, meses depois, conseguiu reanimar a polémica fazendo anunciar que tencionava aplicar os ditos cortes, sem esquecer os retroactivos de 7 meses, não fazendo qualquer caso dos acontecimentos recentes e travado apenas pela declaração de inconstitucionalidade da referida lei pelo Tribunal Constitucional, mostrando-se assim mais um sintoma da doença que infecta a nossa democracia, vírus mortal incubado por um governo que há muito instituiu a ilegalidade e desrespeito do Estado de direito como modus operandi, fazendo grassar o sentimento de impunidade e a bandalheira geral que corremos o risco de normalizar…

Com efeito, o crescimento do SCTN foi feito usando em larga escala este tipo de contrato e os seus efeitos fizeram-se sentir logo que a tesoura cega do actual governo começou a actuar. Estando os recursos humanos dependentes de bolsas, a quebra na sua atribuição (chamar quebra a um corte de 80% é considerado eufemismo!) significa o fim da investigação cientifica em inúmeros casos, quer por falta de mão de obra quer por falta de financiamento que os investigadores angariam em projectos. Assim, este violento corte na atribuição de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento, que deixou de fora milhares de pessoas aptas e com vontade de fazer ciência, é a machadada mais violenta que o sistema já conheceu. O estremecimento até às bases, mostra bem o quão frágil é um sistema que assenta na precariedade dos trabalhadores, pondo agora a nu aqueles que no topo nunca se puseram ao lado da luta dos investigadores científicos pela dignificação do seu trabalho e reconhecimento do mesmo ao nível a que todos os trabalhadores têm direito!

Consigo imaginar o tempo, em que ridículas medidas serão anunciadas, com a pompa de vendedor da banha de cobra, para chamar pessoas de volta ao trabalho científico, floreados com discursos de surpresa saloia como os feitos recentemente para as questões da fraca natalidade! O apoio das pessoas que se querem dedicar à ciência, independentemente da área científica, é o aproveitamento de um recurso precioso, com garantias de desenvolvimento para o país.

Para não ficarmos sem a resposta pedida em epígrafe, a escolha é sem dúvida a vida, mesmo que esta exija nunca baixar os braços. Trazer a luta dos bolseiros para o plano da luta de todos os outros trabalhadores é agora mais essencial do que nunca, exigindo, lado a lado, trabalho com direitos para todos como a única forma de elevar a sociedade e de voltar às aspirações legítimas de mais justiça e progresso para todos.

* Autor Convidado
Tiago Domingues