A importância de se chamar Socialista

Internacional

É verdade que quando alguém se intitula alguma coisa, por princípio devemos respeitar esse título. Cada pessoa pensa como pensa e sobre isso não há discussão. Mas também é verdade que há pessoas que produzem pensamento e pensamentos com base em pressupostos historicamente e factualmente errados. Apesar de um mesmíssimo facto servir, por vezes, para corroborar teses opostas, há factos que não se prestam a interpretações tão abertas e a leituras tão maleáveis. A estas pessoas, talvez tenhamos de chamar à atenção, talvez tenhamos de lhes dizer de forma franca e aberta que elas não são o que pensam que são.

Vem isto a propósito do “pragmático, reformista e republicano” primeiro-ministro francês, Manuel Valls. Defende Valls que o Partido Socialista Francês talve tenha que mudar de nome. Deixar cair o Socialista. Aplaudo a atitude, escusamos assim de lhe bater à porta e avisá-los que já não são mesmo o que pensam que são.

Esta necessidade de clarificação resulta de um debate interno com repercussões externas e que tem vindo a ser feito dentro do partido que lidera os destinos da França. 39 deputados e deputadas do PSF abstiveram-se na votação do Orçamento do Estado apresentado há poucos dias. Este OE não reflecte as aspirações de quem, em 2012, votou em Hollande e no PSF, argumentam esses deputados e deputadas.

Este tema não é novo, é aliás dos temas mais importantes e instrumentais da política e das ideias. O que é ser socialista? Social-democrata? Comunista? Liberal? Ecologista? Conservador? Democrata-cristão? Não será uma falta de respeito intelectual que um partido se aproprie de uma ideologia através de um nome que já não corresponde às suas políticas? Continuará o nosso PSD a ser social-democrata? Que mantém de democrático, social e popular o CDS-PP? Não será esta apropriação uma violência contra os que genuínamente ainda defendem aquilo que os seus partidos já não são?

Nos últimos anos, e com uma ajuda muito forte da denominada Terceira Via, proposta por Tony Blair e secundada por muitos partidos e personalidades europeias – incluíndo o nosso PS pela mão de Guterres -, temos assistido a uma descaracterização mais acelerada dos partidos socialistas do nosso continente. Observamos uma falência/desistência ideológica em troca de um pragmatismo de poder que tem levado a uma aproximação, talvez irreversível, dos partidos socialistas à agenda liberal e capitalista. Defendem, de forma mais ou menos aberta, que é possível lutar e desenvolver um capitalismo social, humano e humanitário.

Vemos uma interessante luta ideológica na Europa e mais concretamente na União Europeia. Um dos vectores mais decisivos dessa luta passa-se mesmo no interior de cada um dos partidos socialistas europeus e do próprio Partido Socialista Europeu. Há os que pendem para o lado de Valls e que sabem que já não defendem algo que nos aproxime de uma organização social livre, igualitária e fraterna, e há os que pendem para os 39 deputados e deputadas do PSF que percebem que as pragmáticas políticas que os seus partidos defendem, traem de morte os princípios socialistas plasmados nos seus estatutos.

A implosão eleitoral de quase todos os partidos socialistas nas últimas eleições para o Parlamento Europeu é sintomática desta mutação. O seu espaço eleitoral foi ocupado por partidos liberais, conservadores e nacionalistas nuns casos, por partidos populistas que afirmando não terem ideologia política acabam por servir o capitalismo, e no melhor dos casos por partidos comunistas ou por novos partidos de ideologia socialista que vêm na participação mais activa dos cidadãos a resposta à actual crise de identidade deste campo sócio-político.

Pela sua importância histórica e por dirigir o governo de um dos maiores países europeus, esta definição interna no PSF é essencial para o futuro do continente. Os tradicionais partidos socialistas chegaram a uma encruzilhada. Já não é possível arranjar mais estratagemas de comunicação e de linguagem que mascarem o facto de terem sido eles uns dos maiores responsáveis pela vitória de uma Europa e de uma União Europeia vergada ao poder financeiro e económico. O pragmatismo de poder da Terceira Via não representou mais do que uma abdicação total e sem freio às convicções ideológicas que originaram estes partidos – uma abdicação talvez há muito desejada pelos próprios, mas isto devo ser só eu a ser sectário e pouco crente na bondade dos que afirmando-se socialistas, adoram apertar as mãos dos banqueiros e financeiros presentes nas reuniões do Clube de Bilderberg.

Renovemos a semântica e a iconografia para clarificarmos ao que anda cada um. A França parece ser um bom exemplo a seguir, país onde o Partido Comunista depois de abdicar do comunismo teve a realista coragem de abdicar da foice e do martelo no seu símbolo. Às e aos verdadeiros socialistas que ainda habitam estes partidos um pedido: arranjem maneira de ganhar a luta interna, ou então façam novos partidos, verdadeiramente socialistas, que dêem espaço aos vários Valls do continente para ficarem sem problemas nem mentiras onde gostam mais, abraçados ao capital.