A liberdade de empresa e o dever de enformar*

Nacional

Hoje deparei-me com a fotografia à esquerda que, muito embora valha mil palavras, dá novo sentido a um artigo que há não muito tempo escrevi.

Uma vez A. J. Liebling, gigante do New York Times, escreveu que a «a liberdade de imprensa só é garantida a quem é dono de uma imprensa». Em Portugal, o processo de acumulação e concentração de capital ergueu no lugar do jornalismo que Abril inaugurou, uma máquina de manutenção, reprodução e legitimação da ordem económica e social estabelecida.

Pode parecer contraditório, mas no nosso momento histórico, em que as tecnologias da informação se desenvolvem a um ritmo vertiginoso, o jornalismo está a morrer. E pode também parecer inconcebível, mas a par do encurtamento, por força de surpreendentes avanços técnicos, das distâncias, das comunicações e da própria geografia, é cada vez mais difícil saber o que se passa no mundo. A alegoria da «Aldeia Global», do canadiano Marshall McLuan (um planeta pequenino em que tudo se sabe e onde todos se comunicam e entreajudam), caiu por terra. Malgrado a quantidade hipoteticamente disponível de informação, podemos ver tudo, mas não podemos saber nada. Da mesma forma que ontem nos diziam que Saddam tinha armas de destruição maciça, hoje dizem-nos que Kim Jong-Un atirou o tio a uma matilha de 120 cães esfaimados. Não importa a fonte nem o contraditório: se for verdade, óptimo. Se for mentira, não faz mal a ninguém, excepto, talvez, a um milhão de iraquianos mortos. A única coisa que importa é o lucro, que atropela mortalmente o valor da verdade, do rigor e da deontologia jornalística. Por este diapasão, tem-se construído desde meados da década de oitenta, com a constituição de grandes grupos económicos de comunicação social ligados à alta finança nacional e estrangeira, uma poderosa máquina de modelação e condicionamento das opiniões, valores e comportamentos. À semelhança do que já acontecera durante a transfiguração marcelista do fascismo, quando oferecera à banca privada toda a imprensa diária nacional, tampouco para o capital hodierno é forçoso que o «produto» seja bom: basta que venda. Mais ainda, o conceito de «liberdade de imprensa» do capital vai abandonando paulatinamente o dever de informar o público com dignidade e respeito pela sua inteligência para se adequar cada vez melhor à lógica chilra do marketing, dos mercados e das audiências. Sendo que a informação é sempre ideológica e não escamoteando que um desprendimento normativo total é impossível, o jornalismo português está hoje refém, com honrosas excepções, dos interesses, ditames e concepções ideológicas de uma classe dominante pútrida, agonizante e desesperada. Uma classe que se contenta com um arremedo de «pluralismo» que noutros tempos embandeirava em arco, em que as figuras descomprometidas e mercenárias do analista e do comentador vão despudoradamente conquistando o espaço do jornalista.

Estagiários e mercenários

A própria figura do jornalista é hoje alvo de uma reconfiguração profissional sem precedente histórico e que o pretende destruir. Após uma explosão, altamente lucrativa, de cursos de «comunicação social» a partir da década de oitenta, assistiu-se à desregulamentação da profissão, com vagas de estagiários não-remunerados a ocupar o lugar de jornalistas experientes. O recente despedimento colectivo de 140 trabalhadores do grupo Controlinveste é nesse aspecto paradigmático: em causa está simultaneamente a brutal redução da autonomia relativa do jornalista, que precário e desprotegido tem cada vez menos liberdade para questionar e informar e, por outro lado, o apagamento da memória histórica da classe profissional, através do varrimento dos jornalistas com mais de quarenta anos, aqueles que ainda recordam o tempo em que a notícia não era mercadoria e ser jornalista implicava uma atitude crítica.

A concentração dos meios de comunicação social em cada vez menos mãos é, por este meio, a principal causa da destruição do jornalismo em Portugal. Grupos económicos como a Cofina, a Controlinvest, a Impresa, a Média Capital, Sojormédia, Sonaecom ou Zon Multimedia controlam praticamente toda informação que, fora da experiência quotidiana de cada um, constitui a argamassa do entendimento de que o povo português dispõe sobre a realidade política, económica e social do país. E se a monopolização da comunicação social compromete seriamente o que sabemos sobre o nosso próprio país, mais grave ainda é o tratamento dado às notícias internacionais, em que entre 75 a 80% da informação circulada à escala planetária tem origem numa mão-cheia de agências internacionais privadas, que adjudicam às salas de redacção portuguesas a tarefa ignara de reaquecer o enlatado e remetê-lo para as respectivas secções de “fast-food internacional”

A gravidade das manipulações que a comunicação social opera no plano internacional têm assumido nos últimos tempos as feições criminosas da propaganda nazi. O genocídio em curso do povo palestino é tratado como uma guerra motivada pelo lançamento de misseis contra Israel por organizações terroristas. Quando o número de crianças palestinas assassinadas por Israel roça os 500, a maioria das notícias continua a ignorar que uns são os ocupantes coloniais e os outros os ocupados colonizados; que uns são os agressores armados com tecnologia de ponta e os outros são as vítimas desarmadas. Quem não se lembra da atenção dada pela comunicação social ao rapto e assassinato de três crianças israelitas, crime imediatamente atribuído à resistência palestina? A divulgação irresponsável dessa mentira justificou o assassinato de 500 outras crianças, cujos nomes não conheceremos, cujos pais não serão entrevistados, cujas vidas têm menos valor por serem palestinas. E mesmo quando Israel admitiu que não havia nenhuma relação entre a morte dos três jovens e a resistência palestina, a comunicação social não corrigiu a informação errada, não pediu desculpas, não se retractou, provando para além de qualquer dúvida a sua cumplicidade com o bombardeio de escolas, hospitais e prédios de habitação.

O parêntesis e o parágrafo

Mas a formatação política e ideológica não se concretiza apenas pela desinformação grosseira da mentira e da calúnia. A vergonhosa cobertura mediática de outro genocídio mostra como a cumplicidade também mina as consciências pelo silêncio, através do bloqueio informativo. Na Ucrânia tomou posse um governo neo-nazi, que baniu o partido comunista e lançou sobre o leste do país uma campanha militar genocida contra a população civil. Existem imagens de nazis encapuçados a torturar e assassinar pessoas, mas essas imagens nunca chegam às nossas televisões. Pode alguém ser suficientemente ingénuo para acreditar que se essas imagens tivessem sido filmadas não no leste da Ucrânia mas no leste de Cuba o silêncio teria sido o mesmo?

O duplo critério de classe de que comunicação social dominante se serve pode ter transformado o jornalismo na agência de publicidade dos patrões e dos banqueiros, mas diariamente surgem novos desafios ao monopólio da informação do sistema capitalista. Tom Pettitt, um académico da Universidade do Sul da Dinamarca, resume a dificuldade de controlar a informação na era das comunicações digitais com a teoria do Parênteses de Gutenberg, que defende que após uma excepção impressa, com a duração de quinhentos anos, no modo tradicional de partilha da informação, estamos a regredir para uma comunicação de natureza oral, narrativa, fluída e em rede, mais semelhante às histórias contadas à volta da fogueira que ao livro impresso. Independentemente da correcção desta teoria, é indesmentível que a proliferação das redes sociais está a mudar profundamente a forma como nos informamos e comunicamos aquilo que conhecemos. Por um lado, a facilidade com que qualquer informação circula e se torna viral, independentemente da sua fonte, data, qualidade ou autenticidade, cria um quadro de inundação informativa, caótica e perigosa. O sistema capitalista está neste momento a aprender a lidar com o novo elemento, tirando partido da confusão, da teoria da conspiração e da irresponsabilidade que daqui advêm para cimentar ainda mais o seu poder. A este azimute, o jornalista é cada vez mais necessário enquanto mediador, operário do tratamento rigoroso da informação e destrinçador da realidade, separando o trigo do joio e a notícia do mito e da propaganda. Por outro lado, as novas tecnologias acrescentam um enorme potencial ao trabalho informativo dos revolucionários, cada vez mais necessário no esforço de combater a desinformação com informação.

Desta forma, o reforço da imprensa partidária e a sua adaptação às novas tecnologias, com especial destaque para o Avante!, o Caderno Vermelho e o Militante, é hoje uma tarefa mais premente do que nunca. Na escuridão informativa da nossa era, a imprensa do Partido é luminária de uma notícia honestamente comprometida com os trabalhadores e o contraditório de classe da escuridão do jornalismo submisso, obediente e anódino.

O capitalismo, que durante tanto tempo se vangloriou da sua vocação para a liberdade de imprensa, ocupa-se agora do seu extermínio, acabando com os jornalistas e destruindo a sua deontologia. Se há vinte anos muitos acreditavam que a democracia estava no ADN do capitalismo, hoje essa falácia tem mais buracos que um queijo suíço: a sua liberdade de imprensa é liberdade de empresa, a sua formação é enformação, os seus jornalistas são colaboradores e os seus únicos valores de que não abdica são a ganância e o lucro. O socialismo deve representar a superação do capitalismo também na forma como gera e distribui a informação. Mas para um jornalismo de tipo novo, mais rigoroso, comprometido e democrático, é necessário que também os seus meios de produção sejam mais democráticos e consequentemente, públicos. Ou, seguindo raciocínio de Liebling, se o povo quer liberdade de imprensa, então o povo deve ser o dono da imprensa.

*Originalmente publicado no Caderno Vermelho n.º22 – Revista do Sector Intelectual de Lisboa do PCP