I
No início do filme Palombella Rossa de Nanni Moretti, a personagem principal (Michele Apicella), interpretada pelo mesmo, sofre um acidente de carro que lhe provoca uma curiosa amnésia. Michele Apicella é, além de exímio jogador de pólo aquático, um dirigente comunista. Ora, a nossa personagem principal, após o acidente, logo se lembra de que é comunista – é a única certeza que tem – e repete-o para ninguém se esquecer, mas não se lembra porquê; não se lembra porque é que outros o são; não se lembra do que é ser-se comunista. Como tal, anda às voltas a tentar convencer-se a si e aos outros, através de chavões e frases feitas que nunca são suficientes e tampouco eficazes; inconscientemente à espera que algo surja para restabelecer as suas certezas, que algo o relembre da primordial razão, que algo o traga à tona no pólo aquático e na vida; que algo o empurre para fora dos chavões e o atire de volta à acção, com a inabalável convicção e a força de vontade que deixara algures esquecidas entre os cacos dos faróis do carro e a repetição dos dias burocráticos. Mas isto não é uma crítica de cinema.
Michele Apicella não é o único a sofrer deste tipo de amnésia e ninguém é imune à mesma. O que Nanni Moretti simbolicamente expõe na sua obra de 1989 não é só do departamento da ficção. Será mais uma epidemia; um vírus que se apanha na sequência do forte embate com a diluição da consciência em automatismo e o gradual distanciamento face ao que nos consciencializou em primeiro lugar. E acidentes, nos dias que correm, parece que há muitos. Sejamos condutores atentos e estudiosos do código desta estrada sempre mais acidentada do que dantes, pois contra isto não há vacinas.
Quem nunca foi um bocadinho Michele Apicella que atire a primeira pedra, porém, ao passo que para uns a amnésia simbólica dura, na pior das hipóteses, um ou dois dias; para outros, a coisa evolui, normaliza-se, instala-se. É aí que está o perigo: na normalização da falta de significado; na perpetuação da acção despojada de significado – automática, inconsciente, acrítica, vazia.
Se não o sabemos já de antemão, Nanni Moretti, jamais imparcial, ensina-nos aqui que ninguém é comunista sozinho; que o comunismo não é um passatempo individual porque não só não é um passatempo como rejeita o individualismo. Ensina-nos a “identidade como facto colectivo” e que sem colectivo a identidade se perde ou, então, que se esquece. Mas não se fica por aí. Nanni Moretti nunca nos deixa mal. Também nos ensina que é possível regenerar, no seio do colectivo, com encontros, conversas e dúvidas, para que, através do colectivo, a memória possa reconstituir-se e a identidade, temperada que nem o aço, se torne inquebrável. É assim que Michele Apicella reaprende a importância de pensar na primeira pessoa do plural, em vez de insistir na do singular.
Se o protagonista-colectivo achava que depois da inicial colisão iria ser poupado ou que poderia curar-se com distracções, em três tempos assimila que só mesmo mais colisões, com efeito inverso, poderão curá-lo. É assim que ele, connosco às costas, choca contra ideias, palavras, rotinas, imagens e caras conhecidas, numa sucessão de encontrões cuja dureza o convence a ele e a nós de que é bom que não esqueçamos o que andamos aqui a fazer e porquê.
Em Palombella Rossa, cada personagem é uma multidão. Cada um representa um desafio e um gatilho para a memória de um homem que é um mar de gente; um homem cuja inquietação faz com que outros homens acordem; uma inquietação, inquietação que combate a inquietação de quem a reconhece como sua. Uma inquietação que acalma os demais inquietos dando-lhes esperança e método. E para quem não o sabe ainda, essa coisa é que é linda. É assim, aos solavancos, que Michele Apicella é aconchegado com a noção de que um trabalhador organizado nunca está só. E nós, do lado de cá, temos, como comunistas, um papel activo na sua organização. Ou seja, além dos chavões e dos likes na foto da distribuição na fábrica.
Nisto, perguntamos, “mas afinal onde está a pomba vermelha?” e, realmente, onde estará a dita, a Palombella Rossa que procuramos para justificar o título? Calma, caros espectadores, ela aparece.
II
No final do filme, após a derradeira colisão, a resposta aproxima-se; ergue-se como um pôr-do-sol bem vermelho ao qual todos querem chegar. Um sol que já não queima nem cega, mas que ilumina. O monte que toma agora a função de palco é povoado por todos aqueles que vimos e não vimos; todos os que precisam de alcançar a esperança vermelha, e pelo riso da criança que Michele Apicella fora outrora. Este não é só um filme sobre a dificuldade de ser comunista, é também um filme sobre a necessidade de o ser e sobre a perenidade dessa mesma necessidade. Siamo diversi, ma uguali agli altri.
Quanto a nós, guardemos muito bem este nosso motor, a nossa pomba vermelha. Procuremos meticulosamente por ela quando nos escapar e, tal como o nosso protagonista, precisamos do colectivo para tal. Cuidemos dela como se a nossa vida toda dependesse disso porque, afinal, se calhar depende mesmo.
Ela poderá, portanto, ter as mais diversas formas e feitios como metáfora viva da nossa militância que é. Poderemos encontrá-la em todas as esquinas, todos os bancos de jardim, à sombra de todas as árvores, em todas as novas sementes lançadas, sempre a crescer, sempre em ascensão, sempre rumo à vitória e ao sonho para onde apontam todos os brados e todas as tarefas imediatas que a vão tornando mais palpável. Às vezes encontramo-la pujante e torrencial; outras, torpe e esbatida, de asa quebrada, de pata ferida. Também nos cabe reanimá-la, juntar a nossa força à firmeza da pomba vermelha da vontade de mudança e de luta, sempre maior do que nós e que voa acompanhando as outras, suas semelhantes. O seu estado natural é de combate. O nosso também será.
“Lá vai uma, lá vão duas
Três pombas a descansar
Uma é minha, outra é tua
Outra é de quem n’a agarrar”