V: voluntariado

Teoria

V: voluntariado

Fazer voluntariado é trabalhar gratuitamente. No contexto capitalista, todas as razões são boas para não pagar um salário: a falta de experiência de jovens desempregados e sem contactos no mundo do trabalho; a generosidade das boas pessoas que não se conformam em assistir impávidas ao sofrimento alheio; a ideia de que a cultura não é propriamente um sector profissional normal e que, por isso, é normal trabalhar de borla; a vontade de conhecer pessoas novas e de “crescer espiritualmente”; a autocongratulação moral e a necessidade de autopromoção ou, simplesmente, o preço exorbitante do bilhete de um festival.

De embrulhar prendas para o Continente a controlar portas no Rock in Rio; de pedir comida para os pobres à porta do Pingo Doce a picar bilhetes no DocLisboa; de escrever comunicados de imprensa para a Volvo Ocean Race a distribuir restos de comida na Refood, todas as actividades e profissões são “voluntarizáveis”.

Quando é caridade, o voluntariado não põe em causa a existência de injustiças e desigualdades e limita-se a geri-las; quando é cultural, o voluntariado não questiona a falta de financiamento e promove a precariedade e os baixos salários; quando é simplesmente comercial, o voluntariado rouba trabalho remunerado a quem dele precisa.

O voluntariado também contribui para cristalizar a tradição de inaugurar as relações laborais com trabalho não remunerado. O voluntariado pode ser o mecanismo através do qual o trabalhador pode demonstrar a proactividade, o esforço, o espírito de sacrifício e a iniciativa que um dia, com alguma sorte, poderão vir a conduzir a um trabalho remunerado.

O voluntariado não se confunde com os outros tipos de trabalho não remunerado como o trabalho associativo, a tarefa do militante ou o empenho do activista. O voluntariado não se confunde, sequer, com as rotinas de solidariedade organizada horizontalmente.

Na acepção neoliberal, o voluntariado é essencialmente a relação laboral entre patrão e trabalhador na qual o primeiro não paga ao segundo, mas nem todo o voluntariado se encaixa, felizmente, nesta cofragem. As diferenças entre um médico que parte para o Haiti para responder a uma catástrofe natural e um recém-licenciado em animação cultural que trabalha de borla num evento promocional do Continente são por demais óbvias: a emergência ou a normalidade; o interesse público ou o lucro privado; o genuíno altruísmo ou a escravatura encapotada.

Há uma guerra pelas nossas palavras. Elas são os instrumentos com que explicamos o mundo e a história ensina-nos que só o consegue transformar à sua vontade quem o consegue explicar. Da mesma forma que os negreiros tinham o cuidado de separar os escravos em grupos que não falassem a mesma língua, o capital verte milhões em campanhas de confusão conceptual, na promoção de novas categorias, na erradicação de certos vocábulos e na substituição de umas palavras por outras, aparentemente com o mesmo sentido. Este dicionário é um breve contributo para desfazer algumas das maiores confusões semânticas, conceptuais e ideológicas dos nossos tempos.

3 Comments

  • Carlos Ferreira

    15 Janeiro, 2022 às

    O que faz falta é trabalhinho e bico calado.

  • Eduardo Baptista

    7 Janeiro, 2022 às

    A propósito das Desigualdades, dizia há dias um vizinho meu:
    Quanto mais ganhar o meu patrão melhor pois enriquece o país e eu fico mais seguro que me pague o ordenado.
    E… nesta cultura, em que as pessoas acabam por aceitar a escravatura, as desigualdades, etc. difundida também na “Comunicação Social”, televisão e nas escolas, se consolidam conceitos e preconceitos que tornam mais difícil a consciência e o entendimento de que o capitalismo é causa das injustiças e que é possível uma sociedade mais justa, mais humana, de paz e solidariedade entre as pessoas.
    Muito custa mudar mentalidades… mas, isso tem que ser um objetivo permanente na nossa ação, comunicação (bem feita) e interacção com as pessoas. Continuem!

  • Guilherme

    7 Janeiro, 2022 às

    No seu apelo mais explícito ao socialismo, “A Alma do Homem sob o Socialismo”, Oscar Wilde, argumenta com recurso à moral que a caridade, o altruísmo, “não é uma solução, é um agravamento da dificuldade.” Continuando a passagem:

    “O objetivo adequado é tentar reconstruir a sociedade de tal forma que a pobreza seja impossível. E as virtudes altruístas realmente impediram a realização desse objetivo. Assim como os piores esclavagistas eram aqueles que eram gentis com os seus escravos e, assim, impediam que o horror do sistema fosse percebido por aqueles que sofriam com ele e compreendido por aqueles que o contemplavam, assim, no atual estado de coisas [na Inglaterra], as pessoas que mais prejudicam são as que tentam fazer mais bem.”

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