A revolução não passa na televisão

Internacional

Enquanto Nelson Mandela é recordado nas televisões por aquilo que nunca foi, começou em Quito o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes. Depois da África do Sul, é a vez do Equador receber jovens de todo o mundo. Encabeçando os ideais por que se bateu o histórico resistente sul-africano, dezenas de milhares de raparigas e rapazes de centenas de países protestam contra o imperialismo e reclamam pela paz e justiça social. Precisamente porque esta notícia só tem lugar no caixote de lixo das redacções é a prova de que não querem saber de Nelson Mandela.

Quando ouço os que nos violam a carteira sem preservativo falar de paz e democracia, solta-se um aroma a ranço que me deixa maldisposto. Passos Coelho admirava Mandela porque resistiu de forma pacífica ao apartheid. Cavaco Silva só votou contra a libertação incondicional de Mandela porque rejeitava a violência. Às vezes, quando ligo a televisão, não sei se é o Madiba que vão enterrar. As últimas semanas deste ano ficarão para a história como a encenação do funeral de alguém que nunca existiu.

Faz lembrar o julgamento do líder independentista basco Arnaldo Otegi. Há uns anos, foi acusado de fazer apologia do terrorismo depois de homenagear um preso político que levava mais de 25 anos nos cárceres espanhóis. À juíza, Otegi recordou os 27 anos que Nelson Mandela esteve nas celas do apartheid. Ángela Murillo não foi de modas e espetou-lhe que era completamente despropositado porque o resistente sul-africano era um autêntico herói que havia permanecido preso por motivos ideológicos, exclusivamente por isso, e que jamais havia utilizado a violência ou a havia apoiado para conseguir a supressão do regime fascista.

Sejamos claros para que não nos comam por parvos ou ponhamos as coisas em pratos limpos para que os meios de comunicação não nos façam amar o opressor e odiar o oprimido como insistia Malcolm X. Depois do massacre de Sharpeville, Nelson Mandela encabeçou a estrutura armada do ANC, foi detido e condenado a prisão perpétua por liderar a resistência armada. Três anos antes de Cavaco, Reagan e Thatcher envergonharem os seus países na Assembleia-Geral da ONU, Pieter Botha já havia oferecido a mesma solução que hoje o presidente da República diz ter defendido em 1987. O presidente sul-africano apresentou a Madiba a saída do cárcere a troco da renúncia da luta armada. “Quem deve renunciar à violência é o Botha”, respondeu-lhe Nelson Mandela.Já sabemos que Passos, Portas e Cavaco nunca estariam do lado dos que em diferentes ocasiões pegaram em armas para defender a soberania nacional. São herdeiros do Conde Andeiro e de Miguel de Vasconcelos. Para eles, a única violência legítima é a que está ao serviço da opressão e da exploração. Eu e tu não valemos mais do que a colecção de presépios de Maria Cavaco Silva. E o presidente da República faz, provavelmente, parte da delegação que vai ao funeral de Nelson Mandela para assegurar que o caixão vai bem fechado.

Finto todos os canais e para além do Mandela que nos querem vender não encontro o Equador na grelha de notícias. Enquanto simpatizantes nazi-fascistas derrubam estátuas de Lénine, bandeiras da União Europeia são vitoriadas em Kiev. Como gostam de se vestir do avesso. Já lhe chamam revolução e até passa na televisão. Cá, querem fazer-nos crer que o nacionalismo não quer nada com Bruxelas. De facto, o fascismo pujante e organizado quererá sempre aquilo que o banqueiro quiser. Até quando teremos de viver nesta farsa que tenta esconder que o fascismo não é mais do que um capitalista de dentes arreganhados?

Há várias décadas, um poeta e músico negro norte-americano compôs uma canção que não mais deixou de ser um hino. Gil Scott-Heron disparava a mais dura das verdades: “the revolution will not be televised”. Felizmente, longe dos holofotes dos jornais, rádios e televisões dos banqueiros e grandes grupos económicos, as raparigas e os rapazes que se encontram agora em Quito farão a homenagem que se quer às mulheres e homens que se bateram e batem pelo fim da opressão e da exploração em todo o mundo. Pois é, a verdadeira revolução não passa na televisão.