Estátuas

Internacional

Saramago dizia que a estátua é a superfície da pedra. Tinha razão, a estátua é só  mesmo isso: pedra a que alguém descascou gomos de revestimento. Porque os nossos olhos são feitos de carne, é o mundo exterior que melhor enxergam e, às vezes, a ilusão de que se revestem as estátuas fá-los chorar. Hoje, os meus olhos foram embargados pelas brutais imagens de uma turba no centro de Kiev a destruir, a golpes de martelo, a estátua de Lenine. Mas a fúria das multidões como as estátuas que elas decapitam, são apenas um revestimento político externo de fenómenos políticos que só se podem assimilar verdadeiramente através identidade dos que desferem as marteladas.

Quem afinal tem tanto ódio às estátuas de Lenine e, acima de tudo, porquê? A primeira pergunta tem uma resposta simples: o protesto a que os meios de comunicação eufemicamente chamaram de “europeísta” foi na verdade promovido pela União Pan-Ucraniana “Svoboda”, um violento e perigoso partido neonazi. Até aqui, Lenine só nos pode orgulhar. 90 anos depois da sua morte, continua a atrair o ódio de racistas, fascistas e nazis. O grave é que as manifestações que durante estes dias varrem a Ucrânia, mesmo que motivadas por justas reclamações populares, pouco mais são que a dianteira do imperialismo norte-americano. Não se depreenda daqui qualquer simpatia pela sinistra figura de Putin, pela sua tirania cleptocrata ou pelo brenhoso capitalismo oligarca que hoje reina a Rússia com a mesma mão férrea de todos os séculos. As manifestações que na Ucrânia pedem a adesão à UE não merecem a nossa solidariedade porque o povo ucraniano não merece o mesmo destino de Portugal, da Grécia e de Espanha: a troika, a miséria e o desemprego aliados à destruição das conquistas sociais que ainda sobram dos tempos da extinta URSS e do desmantelamento de um dos maiores aparelhos industriais do mundo, também herdado do socialismo. Nem a Ucrânia merece o que a espera na União Europeia nem o mundo pode tolerar a Ucrânia sob a procuração dos EUA, integrada na NATO e com mísseis apontados ao nariz da Rússia.

Não se pense tampouco que tudo isto é nostalgia comunista ou resíduo emocional de qualquer culto da personalidade que a queda do muro não expungiu. Nada disso; o que me doeu não foi a destruição da estátua em si. As estátuas não sofrem com memorandos alemães, não se suicidam quando não podem pagar a renda ou banqueiros precisam de um resgate. Não têm olhos de carne, para chorar quando os filhos emigram. A destruição da estátua doeu-me porque ilustra a falsificação da história que o imperialismo imprimiu na consciência de milhões de ucranianos. Mas como é possível, à luz do gráfico acima, que os ucranianos encomendem o seu ódio ao socialismo e não capitalismo?

À luz da historiografia apadrinhada pela CIA ou baseada nas fontes cunhadas pelas tropas hitlerianas, os russos tentaram o genocídio contra os ucranianos e proibiram a sua língua. E se o tio Adolfo e o tio Sam dizem os dois a mesma coisa, só pode ser verdade, não é? Por esta lógica, também convirá negar que a esperança média de vida dos ucranianos durante o socialismo cresceu três vezes mais rápido que nos EUA e que os ucranianos gozavam de amplos direitos em áreas como a da educação, saúde, cultura, desporto, habitação e tempo livre. A hegemonia civil, no sentido gramsciano do termo, que o capitalismo vem conquistando ao longo dos últimos quarenta anos, é uma arma carregada de violência que para explodir apenas espera uma pulsão dos mercados ou a erupção de um bloco histórico insubmisso à sua agenda imperialista.

Hoje em dia, muitos ucranianos não conseguem ver para além do revestimento com que os falsificadores da história cobriram a estátua de Lenine. Mas também não podem ver que por mais fundo que os martelos atinjam e as falsificações penetrem, a estátua de Lenine é só  pedra a que um ideal deu forma retirando pedra. Esse ideal não mora nas estátuas, está são e salvo no calor da luta.