A Associação Cultural Não Matem o Mensageiro representa neste Portugal dominado por visões niilistas e mercantilistas da arte uma lufada de ar fresco, um regresso renovado a um teatro feito por gente comum para pessoas comuns, sem medo de assumir o comprometimento político e social que o contexto exige. Assim foi com a peça “Marx na Baixa” e depois com “Homem morto não chora”. Agora o teatro politicamente comprometido volta à cidade com “A última viagem de Lénine”, peça encenada por Mafalda Santos, com base no texto original de António Santos e interpretação de André Levy.
“A última viagem de Lénine” sugere-nos um cenário hipotético baseado numa última viagem do homem que liderou os bolcheviques russos naqueles dias de Outubro de 1917, com destino à cidade de Lisboa. Lénine desembarca de um comboio que circula com um atraso de 90 anos e 63 dias, e é na cidade que viu florescer a Revolução de Abril que procurará abordar aqueles com quem se vai encontrando.
Tive o privilégio de assistir a uma das primeiras leituras do texto original, há alguns meses atrás. Tive também a hipótese de perceber como um grupo de pessoas extraordinariamente ocupadas, que não conseguem fazer do teatro o seu sustento, conseguem concretizar um projecto amador de uma forma profundamente profissional. E por isso apoiei desde a primeira hora esta obra cuja concretização me pareceu e parece absolutamente necessária.
A figura de Lénine é nos dias que correm quase totalmente desconhecida da maior parte de nós. É por isso desconcertante perceber que, se alguns confessam a sua ignorância face ao pensamento e à acção de Lénine, outros ostentam orgulhosamente um pesado lastro de ignorância, preconceito e demagogia. Ora, em “A última viagem de Lénine” é o homem, que integra e transcende o grande líder revolucionário russo, quem se apresenta através de múltiplos episódios da sua vida pública e íntima, resultado de um estudo profundo de múltiplas fontes biográficas. E tudo isto a escassos meses da celebração dos 100 anos dos “dias que abalaram o mundo”.
“A última viagem de Lénine” não é apenas uma obra notável; o que a Associação Cultural Não Matem o Mensageiro leva a cena nas próximas semanas é um contributo inestimável para a cultura e a memória das coisas do mundo real, cada vez mais ausente da irrealidade virtual em que se parece ir transformando o dia-a-dia das comunidades humanas.
A não perder.
“A última viagem de Lénine”
Comédia/Drama – 90 min. – Encenação de Mafalda Santos – Interpretação de André Levy – Direcção Técnica de Cláudia Rodrigues – Texto Original de António Santos – Cartaz de Miguel Gomez
13 a 23 de Outubro – Teatro da Trindade, Lisboa (Qua. a Sáb. às 21:45 Dom. às 17:00)