Alcindo: um documentário obrigatório

Nacional

Há mar e mar, há ir e voltar, há poemas, epopeias, slogans e provérbios. Há de tudo e mais alguma coisa, com rimas ou sem elas, que faça por apelar à memória e ao perpetuar da ligação dos portugueses ao mar. É também pelo mar que Miguel Dores começa, porque foi ao mar que se fez a família de Alcindo Monteiro, com o sonho de uma vida melhor às costas, para chegar a Portugal. A sua chegada é antecedida por séculos de colonialismo. A sua estadia, não pode dizer-se que foi livre dele. Com isto em mente, o filme Alcindo vem dizer-nos que a Guerra Colonial não só não acabou completamente com a Revolução de Abril, em 1974, como tende a ser continuada no discurso, nas biqueiras de aço, nas soqueiras e nos avanços odiosos dos etno-nacionalistas. Também não esquece nem é conivente com a violência policial.

Foi na Rua Garrett que um grupo composto por neo-nazis atacou Alcindo Monteiro, provocando-lhe diversas fracturas no crânio, qualquer uma delas letal. Estava, convenientemente para eles, sozinho. A rua sem gente foi o cenário idílico para fazer do jovem de 27 anos a única vítima mortal da noite sangrenta de 10 de Junho de 1995. Comemoravam o Dia da Raça e a vitória do Sporting e dirigiram-se ao Bairro Alto para proceder às celebrações. Recorda a família que, naquele dia, a cachupa azedou.

Além de Alcindo, mais 10 indivíduos negros, por serem negros, foram brutalmente agredidos, uns a seguir aos outros, numa série de espancamentos de motivação racial sem precedentes. 

Os discursos políticos foram hipócritas, mascarados de surpresa. Diziam que em Portugal o racismo já não existia, que os portugueses não são violentos, que tudo aquilo tinha sido um triste e isolado acontecimento: uma excepção à regra. Soares e Guterres afirmam-no. Os milhares que saíram às ruas contestam-no. A morte de Alcindo foi um gatilho para que muitos acordassem para esta realidade, iniciando, naquele momento, a sua actividade política, sabendo que o racismo não é coisa que se possa reduzir a um acontecimento isolado. Sabendo que as suas raízes são ferozes, na sociedade portuguesa. A 10 de Junho de 1995, deu-se uma demonstração que o prova. Alcindo pensa sobre tudo isto e apela a que pensemos também.

Entretanto, os neo-nazis em questão — entre eles Mário Machado, a quem a justiça portuguesa gosta de fazer favores — andam à solta, propagando o mesmo ódio. Até à estreia deste documentário, cuja pertinência é impagável, era pesado o silêncio que envolvia este e outros casos. Por parte de alguns, continua a sê-lo, porém, o seu contributo para colocar este debate e esta luta na boca e no punho cerrado de quem o vê, é o grande feito a salientar. Silêncio que se conforme com o fascismo é uma praga a combater. 

Serviço público sem financiamento público, um documento para o presente e para o futuro, uma homenagem a quem resiste. Muitos adjectivos poderiam caracterizar este filme de Miguel Dores, contudo, há um que facilmente se sobrepõe aos demais: obrigatório. Pelo Alcindo, pelo Bruno Candé, pelo Giovanni, pela Cláudia Simões, pelo Kuku, pelas vítimas do caso da esquadra de Alfragide, do Bairro da Jamaica e todos os outros que não chegam aos noticiários. É sempre um bom dia para começar a lutar do lado certo da história.

Lembramos, lutamos e somos mais do que eles. Não passarão! 

2 Comments

  • Floriano Costa

    4 Junho, 2022 às

    o Alcino VIVE!!!

  • Olinda Pinto

    3 Junho, 2022 às

    Abaixo o racismo. As crianças familiarizam-se sem problemas com a “cor”. A sociedade é que está impregnada de comportamentos racistas que alteram o comportamento das crianças.

    É preciso que a escola, agora até ao 12.o ano, tenha vivências democraticas e antiracistas. So assim poderemos ir banindo o racismo e xenobismo na sociedade portuguesa..

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