Capitalismo para totós IV – Dívida pública

Nacional

Dívida pública é um conceito que tem servido, não apenas recentemente, para justificar o conjunto de políticas de intensificação da exploração do trabalho, para assegurar a estratégia capitalista de divisão internacional do trabalho, e alimentar a especulação e agiotagem através das quais as grandes instituições financeiras asseguram a acumulação crescente e a apropriação galopante da riqueza produzida. A pretexto da ideia de “dívida pública”, impõe-se uma política de “austeridade”, criando um mecanismo simples de alusão à honra pública.

Ou seja, o conceito, abordado com simplicidade, induz a um raciocínio semelhante aos mecanismos de endividamento que conhecemos enquanto cidadãos, enquanto trabalhadores, ou mesmo enquanto membros de famílias. A neutralização ideológica é um passo fundamental para impor a aceitação do conceito de dívida pública nesses termos. A transposição de um raciocínio baseado nos princípios elementares de “pedir emprestado gera obrigação de pagamento”, que podemos aplicar, por exemplo, a uma família de trabalhadores que pede dinheiro emprestado a outra família de trabalhadores para um contexto em que um estado se endivida perante os maiores bancos do mundo é um erro tremendo e gera um entendimento completamente deturpado da realidade. Daí que tantas vezes, as classes dominantes e o governo que as representa, tente fazer analogias dessa natureza.

Em primeiro lugar, um país não é uma família, pois enquanto que na família todos estão em pé de igualdade, num país existem explorados e exploradores, existe quem trabalhe e quem viva do trabalho dos outros, existe quem se endivide e quem cobre juros. Ou seja, numa família existe um interesse comum e num estado existem interesses antagónicos. Em segundo lugar, uma comunidade internacional não é uma comunidade de famílias sem interesses antagónicos e sem conflitos no seu próprio interior. Em terceiro lugar, as instituições financeiras que adquirem a maior parte da dívida emitida pelos estados, não são desprovidas de interesse político e financeiro. Enquanto que limitar as despesas numa família beneficia/prejudica todos os membros, limitar as despesas num Estado, num país, já pode beneficiar uns e prejudicar outros. Por exemplo, se uma família economiza, todos os membros são afectados da mesma maneira. Se o Estado economiza na saúde, ou na educação, por exemplo, os pobres são prejudicados e os ricos beneficiados. Prejudicados os primeiros porque ficam sem acesso aos cuidados de saúde ou à educação, beneficiados os primeiros porque concentram em si o saber e o acesso à saúde e ao mesmo tempo alimentam o negócio de outros ricos que vendem saúde e educação. Ou seja, o Estado diminuiu a despesa mas na verdade gerou apenas uma redistribuição mais injusta da riqueza.

A dívida pública de um Estado não tem origem num endividamento gerado pela divina providência e a dívida pública portuguesa foi alimentada cuidadosamente para atingir o actual patamar e justificar as actuais políticas de extorsão organizada. Vejamos a origem de boa parte da dívida: subaproveitamento do potencial industrial instalado, por força da aplicação das normas da união europeia; conversão de dívida privada em dívida pública; aumento acelerado dos gastos com serviço da dívida.

Nenhuma dessas origens reverteu a favor dos portugueses, pelo contrário, todas se revelaram contrárias ao interesse nacional. Os portugueses não endividaram o estado para ter serviços públicos acima da qualidade que podiam pagar, nem para ter luxos públicos e a prova disso é que não existem investimentos estruturais nos serviços públicos há muitos anos.

Vejamos: a dívida pública disparou especialmente desde 2005 e desde 2009 com a chamada “crise das dívidas soberanas” esse incremento acelerou.

O que aconteceu desde então? Seria de esperar que o investimento público estivesse na origem da dívida pública…

Mas a rede de universidades e politécnicos é praticamente a mesma há décadas e as instituições têm vindo a ver reduzidos os seus orçamentos consistentemente;
foram encerradas 4500 escolas básicas, e cerca de 30 mil professores saíram do sistema educativo;
foram encerradas dezenas de centros de saúde e extensões, reduzidos os horários de atendimento;
encerraram maternidades e hospitais;
aumentaram os custos com a utilização da rede viária, nomeadamente a das portagens;
não há recrutamento de novos trabalhadores para o Estado e os salários foram desvalorizados em mais de 20%;
foi retirado o abono de família a milhares de crianças;
foi retirado o rendimento social de inserção a milhares de pessoas;
foram cortadas as pensões e reformas;
foi reduzido em largos milhões o financiamento do serviço público de arte e cultura, em muito mais largos milhões o do Serviço Nacional de Saúde;
encerram repartições de finanças por todo o país;
extinguiram comarcas judiciais, freguesias e assembleias de freguesias por todo o país.

Então que dívida pública é essa que cresce desmesuradamente sem que vá um único tostão para o investimento público? Que défice é esse que alimenta uma dívida crescente cujo proveito não é, como vimos, público?

A dívida é colocada sobre os povos, no caso sobre o povo português, mas o proveito da dívida não é público. As regras europeias e os governos portugueses que as apoiaram e encerraram a agricultura, a indústria, as pescas, são a origem de um desequilíbrio económico estrutural entre a produção e o consumo, gerando um défice da balança comercial que se reflecte em prejuízos para Portugal e em benefício para os países que alimentam o mercado português, curiosamente os mesmos que nos obrigaram a depender exclusivamente deles, por força das normas, regras e financiamento da união europeia. Esse desequilíbrio é agravado pelo assalto às dívidas soberanas de 2009, nomeadamente passando boa parte das dívidas privadas para o perímetro das dívidas públicas, através dos financiamentos do Estado à actividade privada, eliminando o risco de perdas para a banca e outros sectores financeiros, como em Portugal se verificou no BPP, BPN e agora mais recentemente no Banif e BPI.

O assalto e o aumento de juros da dívida associado servem simultaneamente como instrumento de pressão e como objecto da pressão, na medida em que justificam a “auteridade” mas são o objectivo último da própria “austeridade”. A acumulação de um valor de serviço da dívida que cresce ano após ano e que atinge quase 8 mil milhões de euros gera um peso sobre o orçamento do Estado que uma nação sem crescimento económico ou com crescimento anémico, não pode suportar. A dívida “pública” de hoje contém uma importante parte (a sua grande parte) gerada única e exclusivamente por operações de conversão de dívida privada em dívida pública, por um lado, e por acumulação de juros sobre juros que passam a integrar a dívida por existir défice orçamental que justifica o recurso cíclico e vicioso à agiotagem nos ditos mercados financeiros, que é como quem diz, as grandes instituições financeiras do mundo.

Assim, quando se afirma que é necessário renegociar os prazos, juros e montantes da dívida pública, deve ter-se em conta precisamente a origem política e financeira de cada componente da dívida.

E é preciso clarificar se se entende como legítimo o assalto de 6 mil milhões de euros aos cofres do estado para pagar os crimes do BPN, só porque o ladrão foi uma parte do próprio estado; se se entende como legítima uma dívida que corresponde, já não a qualquer empréstimo para realização de investimento público, mas apenas a pagamento de juros sobre juros, recursos dos quais, o país e as populações, na realidade nunca usufruíram; se se entende como legítima a dívida gerada pelo pacto assinado com a troica estrangeira, apesar de não ter sido investido um tostão na melhoria da vida dos portugueses e apenas ter servido para estabilizar o sistema financeiro e assegurar o pagamento de juros que estavam prestes a vencer; se se considera legítima a componente da dívida proveniente de contratos SWAP assinados como forma de usar os recursos públicos para alimentar os lucros da banca que passam a integrar a dívida pública; entre outras componentes da dívida.

A questão é muito simples:

Se os gastos com prestações sociais estão relativamente estáveis desde 2005, apesar de terem duplicado entre 2000 e 2012 (de 10 mil milhões para 20 mil milhões), entre 2008 e 2014, altura em que o crescimento da dívida se aproxima de exponencial, os gastos com prestações sociais estão praticamente congelados nos 20 mil milhões, todas as outras despesas do estado com serviços públicos, salários, subsídios, pensões, forças de segurança, defesa, estão em queda; que despesas originaram o disparar da dívida e dos juros associados a partir de 2008? Facilmente se verifica que não é despesa ou investimento com retorno público, mas apenas despesa e dívida privada camuflada sob a asa do Estado que sempre se acusa a mais mas que é sempre pouco quando faz falta para garantir os lucros do sector financeiro e dos monopólios que dominam a economia nacional.