Se a produtividade é baixa e a empresa tem dificuldades para sobreviver, a culpa é dos trabalhadores e trabalhadoras, já se sabe. Se a autarquia, o ministério, a repartição pública, a direcção-geral não é rápida na resposta administrativa e na resolução da burocracia, a culpa é dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Em Portugal, as chefias de topo pertencem quase sempre à família “x”, “y”, ou “z”, e as intermédias, ou pertencem às mesmas famílias – esperando que os mais velhos desamparem o topo -, ou conseguiram através de muito bajulanço e favores, entrar para esta casta de elite que dirige o país. Nunca, mas nunca devemos apontar o dedo à gestão das chefias, de topo e intermédias, porque a família é sagrada e as castas divinas.
É claro que todas as generalizações são falhadas à partida, e a afirmação anterior encontrará sempre as suas excepções na vida quotidiana, quer no público, quer no privado.
Não acredito no sistema capitalista, mas acredito que dentro desse sistema é possível gerir estruturas com pés e cabeça. É possível que uma estrutura produza oleadamente e respeite as e os trabalhadores, dando-lhes direitos laborais justos e salários que reflictam a sua vital importância para a estrutura da organização. Mas quando a estrutura é comandada por um conjunto de intocáveis que, na maior parte das vezes, está mais interessado em manter esse mesmo estatuto do que em ser profissional, eficaz, ponderado e decente na sua gestão, então basta-nos olhar à nossa volta e observar a desgraçada realidade. Se esta não tivesse consequências tão dramáticas, o Turismo de Portugal poderia começar a anunciar Portugal como o país do hilariante absurdo.
Cinco exemplos em estruturas públicas e estruturas privadas:
– o BES: já não vale a pena escrever mais nada, certo? Adiante.
– gelados Olá: a animada campanha publicitária estática, que deve ter custado alguns euros, e que, depois de passar por revisões e mais revisões, veio cá para fora assim.
Os hifens marotos que transformaram a campanha da Olá num gigante erro gramatical, terão passado pela mão de muita gente, mas no fim de contas é sempre o chefe ou o administrador-geral de um qualquer departamento que tem de aprovar a sua saída para as ruas.
– festival Caixa Alfama’14: o festival de fado que terá lugar nas ruas de Alfama, um dos bairros mais populares da capital do país, tem estado a ser naturalmente promovido de várias formas. O insólito dá-se nos spots de rádio, em que a música de fundo que se ouve é um fado, sim, mas é o fado “Coimbra”. Coimbra é uma canção, mas o festival é em Alfama, Lisboa…
– C.M.L. e o lixo: a Câmara Municipal de Lisboa lança uma nova campanha de recolha de monos e lixo. Esta campanha pede às pessoas que não deitem, e bem, lixo para o chão. Tudo estaria muito certo não fosse o slogan encontrado para a ilustrar.
Em primeiro lugar o lixo não dorme, o lixo é, e depois, quem dorme na
rua, para além de alguns animais, são os sem-abrigo. Gente de carne e
osso que não tem casa e que nesta campanha se vê equiparada ao lixo. Se
Antonio José Seguro já fosse primeiro-ministro e já ninguém dormisse na
rua, então esta campanha até podia ser aceitável, por agora, faz parte
da série do nojo.
– C.M.V. e a Cultura: em Viseu tem havido um certo esforço para devolver aos seus habitantes espaços e eventos culturais. Este esforço tem partido quase sempre da chamada sociedade civil. Se isso tem sido feito da melhor forma é sempre discutível e passível de várias análises, mas aqui há dias fui informado de algo que é capaz de ser relevante para esse tira-teimas. Parece que a vereadora da Cultura, Odete Paiva, não tem propriamente um projecto para a Cultura no concelho. A coisa faz-se do seguinte modo. O cidadão/associação/entidade faz um projecto, reúne com a senhora vereadora para lhe apresentar o projecto, e depois ela decide se o projecto é ou não premiado com dinheiro municipal. Planos a longo prazo dão muito trabalho e às tantas precisam de concursos públicos.
Qualquer um destes casos tem responsáveis que muito dificilmente serão as e os trabalhadores destas estruturas. Mas uma coisa é certa, o BES pode falir e esboroar-se para sempre, a Olá pode baixar as suas vendas neste verão, o festival Caixa Alfama’14 pode ter na sua organização alguns responsáveis que não saibam bem o que é fado, a C.M.L. pode continuar a insultar os seus cidadãos com as suas políticas de gentrificação e desrespeito por quem passa por mais dificuldades, a C.M.V. pode continuar a privilegiar uma política cultural de fachada completamente desestruturada e sem rumo, mas no fim de tudo, a culpa é sempre das e dos trabalhadores.
A malta das famílias e das castas continuará a funcionar sempre como funcionam os animais de grande porte em lojas de cristais. E porque o fariam de forma diferente? Enquanto dominarem e enquanto, para se safarem das consequências dos seus erros, comprarem e enganarem tudo e todos, haverá sempre um escravo obediente que ao final do dia limpará os cacos. Se o escravo se tornar menos obediente, já sabe que porta da rua, serventia da casa.
* Autor Convidado
André Albuquerque