As notícias mais recentes apontam para cerca de 6.500 trabalhadores mortos na construção de estádios no Qatar, neste ano. Apesar de ter anunciado pela FIFA como vencedor da organização do torneio a 10 de dezembro de 2010, só muito recentemente – demasiado – se começou a olhar para este atentado. Mas reza a lenda que não há almoços grátis. E gás também não. Quando se fala do possível racionamento do fornecimento de gás a alguns países da União Europeia, vale a pena lembrar que há uma história por trás do Nordstream II, que deveria aumentar o fornecimento oriundo da Rússia à Alemanha, complementando o Nordstream I, e que envolve os dois países e os EUA. Os outros Estados envolvidos serão aquilo a que a ideologia dominante optou por considerar danos colaterais.
Uma guerra de tubos
O Qatar, não esqueçamos, tem uma localização fulcral para o comércio mundial de petróleo; passa pelo Estreito de Ormuz cerca de 40% do trânsito do petróleo que sai do Médio Oriente. Para além disso, tem no North Dome as maiores reservas de gás natural do Mundo. De referir, não apenas como detalhe, que das 25 maiores reservas de gás natural do mundo, 12 estão na Rússia. Em 2005, os EUA foram o principal comprador de gás do Qatar.
Nordstream I e II
Para os EUA, a construção do Norstream II constituiu um golpe dado pela Alemanha, que ousou colocar as suas prioridades à frente dos interesses dos EUA, numa tentativa de reganhar algum relevo como motor da UE. Com este pipeline, o gás sai diretamente da Rússia para a Alemanha, através do Báltico, reforçando o Nord Stream I. Com estes dois equipamentos, não há países intermediários a receber comissões de trânsito pela passagem do pipeline, sendo os principais prejudicados Ucrânia, Eslováquia, Bielorrússia, República Checa e Polónia. Os EUA, por outro lado, têm outro desígnio, de acordo com uma cimeira realizada em 2017, na Polónia: “[na] Cimeira dos Três Mares (Mar Báltico, Mar Adriático e Mar Negro), com a presença do Presidente dos EUA, foi reafirmada a importância estratégica do Gás Natural Liquefeito (GNL) e do terminal (Floating) da Ilha de KrK na Croácia e do terminal LNG Świnoujście na Polónia, para o conjunto da segurança energética na Europa Central e de Leste. Uma ligação posterior por pipelines, entre estes terminais e os restantes países envolvidos, seria uma forma de impedir o domínio do Rússia nas exportações de gás, salvaguardando assim, a independência e segurança energética dos mesmos. Por outro lado, estariam também garantidos os interesses comerciais dos EUA e da colocação do seu GNL na Europa, de forma mais consistente. A Polónia pretende garantir a prazo uma estratégia de domínio na Europa Central, de importação e plataforma de reexportação do gás natural, prioritariamente vindo dos EUA, criando assim, um verdadeiro hub energético do gás na região”
A Síria como empecilho
A Rússia fornece, em média, 43% das necessidades da Europa em gás natural. Para diminuir esta dependência, UE – sem a Alemanha – e EUA olharam para o sul do Mediterrâneo e viram no Qatar e no North Dome a sua oportunidade. Só que a localização geográfica daquela monarquia do petróleo não é a mais favorável aos interesses dos EUA. Em 2009, Turquia e Qatar anunciam a intenção de construir um pipeline entre os dois países, que ligaria a outro projeto de pipeline que nunca saiu do papel, o Nabuco, que traria gás natural do Azerbaijão para o centro da Europa, também via Turquia.
Voltando ao acordo entre Qatar e Turquia. Havia dois caminhos possíveis, o primeiro sairia do Qatar via Arábia Saudita e Iraque e chegaria à Europa pela porta turca. Só que não cabe na cabeça de ninguém construir uma infraestrutura como um pipeline num país devastado pelos EUA e aliados da NATO, como o Iraque. O outro caminho seria através da Arábia Saudita, Jordânia, Síria e Turquia. Destes países, o único entrave é o território sírio. Os interesses sauditas, jordanos, qataris e turcos são perfeitamente conciliáveis. A Rússia tem uma ligação de décadas à Síria, sendo naquele país que tem a sua única base militar fora do seu território, em Tartuz, fruto de um acordo celebrado em 1971, tendo a autorização de utilização da mesma sido renovada em 2017 para um período de 59 anos. Por isso, era evidente que Bashar al Assad nunca aceitaria, no seu território, um pipeline que colocasse em causa esta aliança, que colocaria em causa a hegemonia do mercado russo no continente europeu. Foi o presidente sírio que propôs mesmo, em 2012, a criação de um pipeline que abasteceria a Europa vindo do South Pars Dome, que também está dividido entre o Qatar e o Irão… mas do lado iraniano, o que enfureceu ainda mais os aliados dos EUA. Nas ligações abaixo, encontram um artigo essencial, no The Guardian, sobre esta questão, escrito pelo agora jornalista freelance Nafeez Ahmed.
Esta foi uma das razões que levou EUA, UE e NATO a democratizar a Síria através de uma guerra civil que fez milhões de vítimas; outra são os campos de petróleo sírios, obviamente. De acordo com os dados mais recentes, os EUA roubam da Síria, diariamente, 80% do petróleo extraído naquele país. Aliás, os sírios dependem hoje do petróleo iraniano, uma vez que os seus próprios recursos estão, maioritariamente, localizados em campos ocupados pelos estado-unidenses.
A Diplomacia Desportiva
No Jornal Oficial da União Europeia, de 15 de dezembro de 2016, é referido que a Diplomacia Desportiva “pode ser entendida como a utilização do desporto enquanto instrumento para influenciar as relações diplomáticas, interculturais, sociais, económicas e políticas. Constitui uma parte indissociável da diplomacia pública, a qual é um processo de comunicação a longo prazo com o público e as organizações com finalidades como aumentar a atratividade e a imagem de um país, região ou cidade e influenciar a formulação das políticas nos diversos domínios de ação. Contribui para a consecução dos objetivos de política externa de forma visível e compreensível para o público em geral.
— A diplomacia desportiva a nível da UE engloba todos os instrumentos pertinentes na área do desporto utiliza dos pela UE e os seus Estados-Membros com vista a cooperar com os países não pertencentes à UE e com organizações governamentais internacionais. Esses instrumentos deverão ser direcionados para a cooperação política e o apoio às políticas, projetos e programas. A tónica deverá ser posta no papel do desporto nas relações externas da União, incluindo na promoção dos valores europeus”.
Os “valores europeus”, seja isso o que for, são bastante maleáveis, consoante os interesses do que ainda resta da UE, enquanto satélite dos interesses dos EUA, como ficou demonstrado. Por exemplo, o gás russo, de um país que invadiu e mantém uma guerra inaceitável na Ucrânia, corresponde menos aos “valores europeus” do que o gás das monarquias do petróleo, incluindo o Qatar, que invadiram e mantém uma guerra totalmente inaceitável no Iémen.
Os grandes eventos desportivos são uma forma de diplomacia desportiva. Sem entrar pelos escândalos que envolveram a FIFA e a atribuição do Mundial ao Qatar, são formas de aproximar política e economicamente Estados ou organizações de Estados, conforme descrito acima. Por exemplo, seria demasiado ingénuo achar que a suspensão de atletas russos pelo COI e outras federações, colocando em causa a carreira de atletas que se viram peões na mão de outros interesses dos dois lados da barricada, tenha sido apenas desporto. Não foi. A normalização das monarquias do petróleo tem-se feito muito à custa do desporto. Do ciclismo ao futebol, passando pelas artes marciais, seja através de patrocínios, seja através da organização de provas internacionais. O Mundial do Qatar foi mais um passo nesse sentido. Hoje, o Qatar é o segundo país do mundo com PIB per capita mais elevado e, simultaneamente, o 100.º mais desigual. É certo que os dois indicadores não bastam para uma análise exaustiva sobre o país. Porém, adicionemos a estes o facto de 90% da força de trabalho ser de migrantes de países afetados pela fome e pobreza, e terem um salário médio 1.920 dólares por ano, e este serve, essencialmente, para pagar a viagem e o visto que é cobrado pelos angariadores. De referir que a lei qatari permite que o patrão confisque o passaporte do trabalhador e cada um pagará entre 500 e 3.400 dólares para ser escravizado na construção civil. Os cerca de 250.000 habitantes com nacionalidade qatari (que são 10% dos cerca de 2,5 milhões), têm um rendimento médio anual de 650.000 dólares. E isto já explica mais. E nem vale a pena entrarmos pelos caminhos da opressão de mulheres, homossexuais e outras minorias, racismo e xenofobia. Isso está mais do que documentado e é do conhecimento público.
Assim, nada disto é novidade para os países que entregaram o Mundial ao Qatar. E sim, todos os governos dos países que o fizeram são coniventes, porque, como bem vimos por cá quando Portugal organizou o EURO2004, são os governos, mais do que as federações, quem decide as candidaturas e os votos. E todos sabiam e sabem qual era e é a situação do país em matéria de direitos humanos e a forma como os trabalhadores são escravizados naquele Estado. Mais os 6.500 que terão morrido em obras diretamente relacionadas com a organização do Mundial. Mas, entre o gás do Qatar e os valores europeus, os EUA são quem mais ordena.
O Qatar ganhou a organização do Mundial por interesses políticos e comerciais, relacionados com os seus recursos naturais, que lhe permitiram tornar-se, como a outros microestados daquela zona do globo, numa espécie de oásis para multimilionários viverem sem serem incomodados pelos comuns mortais, com construções megalómanas no meio do deserto, com custo ambientais e humanos inimagináveis, mas que, recordo, pelos valores europeus, toleramos e até aplaudimos. Não é só desporto, nunca foi só desporto, e tenho a forte convicção de que os que melhor sabem isto são os primeiros a dizer que “não se mistura desporto com política”. É útil passarem esta mensagem, mesmo sabendo que é mentira.
Algumas das fontes consultadas:
https://en.wikipedia.org/wiki/Nabucco_pipeline
https://en.wikipedia.org/wiki/Tartus
https://eurodefense.pt/o-gasoduto-nord-stream-2-a-disputa-geopolitica-na-europa/
https://kurultay.fr/blog/?p=1103 https://thecradle.co/Article/News/14108 https://thecradle.co/Article/News/14255
https://web.archive.org/web/20070927013805/http://www.dolphinenergy.com/press_news_rel_jul_10_07.html
https://www.channel4.com/news/by/alex-thomson/blogs/syria-spooks-wikileaks-military
https://www.dw.com/pt-br/nord-stream-2-e-a-luta-pelo-poder-entre-ocidente-e-r%C3%BAssia/a-60662250
https://www.eia.gov/todayinenergy/detail.php?id=52659
https://www.offshore-technology.com/projects/dolphin-gas-project/
https://www.theguardian.com/environment/earth-insight/2013/aug/30/syria-chemical-attack-war-intervention-oil-gas-energy-pipelines
https://www.theguardian.com/football/2016/feb/20/sepp-blatter-qatar-2002-world-cup-french-pressure
https://www.thenationalnews.com/business/qatar-seeks-gas-pipeline-to-turkey-1.520795/
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016XG1215(03)&from=HU
https://www.worldeconomics.com/Inequality/Qatar.aspx
https://www.borgenmagazine.com/the-qatar-poverty-rate/