Contra-atacar o Império

Nacional

!!!SPOILER ALERT!!! Recomendo a toda a gente que vejam Andor. Mesmo que não tenham grande interesse em Star Wars. Mesmo que nem sequer liguem muito a ficção científica. A série vale por si, independentemente do universo em que se insere. Se não se importarem com os spoilers, continuem a ler. Pode ser que aguce a curiosidade. !!!SPOILER ALERT!!!

Uma vítima da exploração da periferia do sistema desde criança, nascido num planeta que foi poluído até se tornar inabitável devido a um acidente industrial duma empresa de mineração. Ao contrário dos típicos heróis de Star Wars, não é um adolescente inocente e de bom coração que descobre a Força, ou um saudosista do período republicano, porque para ele e para os dele a vida nunca sorriu. Na República ou no Império, a periferia é a periferia. Quando o conhecemos está num bordel da corporação mineira à procura da irmã e é importunado e perseguido por dois seguranças privados que lhe pedem os documentos. Há uma escaramuça, o primeiro segurança morre por acidente, e o segundo morre para não poder ser testemunha da morte do primeiro. Este é o nosso personagem central, Cassian Andor.

Os primeiros vilões da narrativa não são stormtroopers, desumanizados pela farda branca, mas sim seguranças privados ao serviço do capital que administram “lei e ordem” na sua coutada com o aval do poder político. O inimigo aqui não é só o Imperador Sith e o seu Império do Mal, são o capital e o seu braço armado no terreno.

Depois disto regressa ao planeta onde vive, Ferrix, um gigantesco ferro velho árido cuja economia gira em torno do desmantelamento e aproveitamento de peças de naves retiradas de circulação. Um planeta inteiro, na periferia da galáxia, de miseráveis trabalhadores. A investigação traz a segurança privada da corporação mineira à cidade, e a população faz avisos sonoros, avisando todos da presença da autoridade. Para fugir, Cassian tenta vender um equipamento roubado ao Império, mas o suposto comprador é afinal um agente da rebelião, mais interessado em recrutar Cassian do que em comprar o Starpath. Fogem juntos, mas quanto ao recrutamento, nada feito. Cassian não é, ainda, um revolucionário. Aceita, no entanto, a troco de 200 mil créditos, participar no assalto a uma base imperial.

Esse assalto leva-o ao planeta Aldhani, mais um planeta colonizado pelo Império, em que dezenas de milhares de nómadas foram desterrados e conduzidos a viver em cidades junto às fábricas onde a sua mão de obra é explorada. O líder da base imperial não poupa palavras sempre que expressa o seu racismo pelos nativos do planeta, chama-lhes um povo simples, inferior, malcheiroso, desdenha dos seus costumes e tradições. Aliás, o facto dos nossos proto-rebeldes usarem uma celebração popular de Aldhani para encobrir a sua operação faz com que os serviços de segurança do Império (ISB – Imperial Security Bureau) decidam que quaisquer actos de insubordinação associados a qualquer celebração ou tradição popular implicam a “revogação permanente da tolerância imperial”. Os hábitos populares naquele contexto não são livres, são parte dum “pão & circo” a qualquer momento revogável pelo Império.

Neste assalto, Cassian conhece Nemik, um jovem dedicado de corpo e alma à revolução, que dedica o seu tempo a escrever um manifesto, manifesto esse que ele compara a um mapa estelar: ambos traçam um caminho, ambos assentes na verdade, ambos rumo a objectivos claros e atingíveis. É neste manifesto que Nemik estuda e analisa criticamente as práticas do Império. Para o Nemik – e por enquanto, só para ele – a revolução não se sustenta só de acção, precisa desta base teórica que permite compreender como é que o Império chegou ao poder e como é que se mantém no poder, e de que forma é que ele pode ser derrubado. Para já, estas palavras não fazem eco em Cassian: Para já, ele só sabe o que não quer; o resto fica para depois.

O assalto acontece, fogem com o saque, mas Nemik morre. A sua última vontade foi que Cassian ficasse com o manifesto. Aceita, sem qualquer interesse, que o que lhe interessa neste momento são os 200 mil créditos que lhe prometeram. Com esse dinheiro no bolso, Cassian pode finalmente escapar à pobreza como sempre quis, “fugir, comer, dormir, fazer o que quiser”. Volta a casa para levar com ele a mãe adoptiva, quer que fujam juntos, mas ela não quer deixar a comunidade e ele tem de fugir sozinho. Foge sozinho, para um planeta solarengo com boas praias, e é preso por estar no lugar errado à hora errada durante uma perseguição a pé na qual não esteve envolvido. Devido ao apertar da lei depois do roubo na base de Aldhani, é julgado sumariamente e condenado a 6 anos de pena numa colónia penal de trabalho industrial. Na prisão conhece Kino Loy, o capataz de um dos turnos daquela ala prisional, um trabalhador dedicado que está convencido de que lhe basta cumprir a pena para voltar a ser um homem livre. O momento em que Kino percebe, devido à morte de outro prisioneiro, que dali ninguém sai, só trocam de ala, ou de prisão, mas continuam a trabalhar até à morte, é um momento brutal de um trabalhador que toma consciência da natureza coerciva, exploradora e opressiva do trabalho, seja ele penal ou assalariado. Nesse momento, em que ou luta ou morre, deixa de ser aquele capataz que zela pelo normal funcionamento da cadeia produtiva e torna-se um dos líderes do motim que permite a fuga da prisão.

Depois disto, Cassian consegue finalmente regressar a casa. A mãe morreu. Ele quer ir ao funeral mas não pode; é um homem procurado. E entretanto escuta atentamente o manifesto do Nemik. Agora já faz sentido. Agora que teve de se organizar para organizar outros, para fugir à prisão, agora que é procurado, agora que não convenceu a mãe a fugir com ele, agora que está quase sozinho numa galáxia inteira, agora que percebeu que “a liberdade de cada um é a condição da liberdade de todos”, aquele manifesto já faz sentido:

“Haverá momentos em que a luta parece impossível, eu sei disso.
Sozinho, com medo, esmagado pela dimensão do inimigo.
Lembra-te disto:
A liberdade é uma ideia pura.
Ocorre espontaneamente e sem instruções.
Actos aleatórios de insurreição acontecem constantemente na galáxia. Existem exércitos inteiros, batalhões, que não fazem ideia de que já aderiram à causa.
Lembra-te que a fronteira da rebelião está em toda a parte e atá o mais pequeno acto de insurreição nos faz avançar.
Lembra-te disto:
O desejo Imperial de controlo é tão desesperado porque não é natural.
A tirania exige esforço constante; quebra, falha.
A autoridade é frágil, a opressão é a máscara do medo.
Lembra-te disto:
E fica sabendo que chegará o dia em que todas estas escaramuças, e batalhas, todos estes estes momentos de insurreição irão inundar a autoridade do Império e não terão mãos a medir. Um único acto quebrará o cerco.
Lembra-te disto:
Tenta.”

É impressionante que uma série assim, com um discurso tão abertamente anti-imperialista, anti-colonialista e anti-fascista que deixa de ser pano de fundo e se torna elemento central do enredo, tenho sido parida pela Disney, uma das maiores máquinas de propaganda cultural do Império. Mas foi. “Star Wars: Andor” é a narrativa de como um qualquer explorado ganha consciência e se torna um revolucionário. Não pela pureza do seu coração, ou por ser um bondoso jedi, mas porque a vida não lhe deixou outra opção que não seja lutar. Andor é um homem forjado pelas circunstâncias da sua vida. É o “Operário em Construção” numa galáxia muito, muito longe…. E claro que sim, há violência, e há sacrifício, rumo a um futuro que talvez nenhum deles venha a conhecer. Há um ataque à bomba levado a cabo por um jovem cujo pai foi interrogado, torturado e enforcado em praça pública, e a narrativa continua do lado do bombista. Há um monólogo fantástico sobre sacrifício pessoal, e depois Luthen Rael decide sacrificar uma célula para proteger um infiltrado.  A revolução é isso: a revolução é um acto de violência pelo qual uma classe derruba a outra. Para a qual nos cabe a todos e a todas dar um pouco, para que uns poucos não tenham de dar tudo. Até ao acto que fará quebrar o cerco.

Tentem.