A 1 de Janeiro de 1959 triunfara o movimento 26 de Julho em Cuba, substituindo o ditador Fulgêncio Batista – apoiado pelos Estados Unidos da América – pelo poder popular que viria a constituir, mais tarde, como força dirigente organizada o Partido Comunista de Cuba. Em Março do mesmo ano, os EUA, em resposta à ousadia do povo cubano, decide um embargo, impedindo a venda de armas a Cuba. Com o avanço da reforma agrária, os grandes proprietários norte-americanos perdem as terras que haviam usurpado na ilha caribenha e onde escravizavam o povo local, como fizeram praticamente em todo o Caribe. Ao mesmo tempo, perdem o poder económico na ilha, através das nacionalizações levadas a cabo pela nova democracia que se consolidava com o apoio da União Soviética.
O que começou por ser um bloqueio à venda de armas (decidido pelo país que vende armas a praticamente todos os estados terroristas do mundo) rapidamente se transforma num bloqueio a todo o tipo de vendas e aquisições. Desde 1962 que todos os negócios comerciais com Cuba estão proibidos pelos Estados Unidos da América.
Disse Simon Bolivar que “Os Estados Unidos parecem destinados pela providência a lançar pragas de miséria sobre a América em nome da liberdade” e não se enganara ao identificar o papel imperialista dos Estados Unidos na região, muitos anos antes da Revolução Cubana. A hegemonia económica dos Estados Unidos traduzia-se numa hegemonia e controlo político quase total do centro e sul do continente americano.
São 60 anos de bloqueio económico, um genocídio lento e premeditado, definido como uma arma para vergar o povo cubano à fome e retirar-lhe o direito fundamental a decidir do seu destino livremente, de construir a sua revolução e a sua história.
Daqui vemos tudo pelo telescópio da distância, do eurocentrismo, das “democracias ocidentais”, daqui desta ponta do telescópio, mais depressa aceitamos que o Estado Espanhol (que assassina, prende, tortura), a França (que lançou as mais poderosas armas de repressão contra os coletes amarelos, por exemplo), a Polónia (que usa a bíblia como lei), os Estados Unidos (que assassinam seu próprio povo e liquidam países inteiros) são democracias do que aceitamos que Cuba é um estado livre, democrático.
De pouco nos vale ser “de esquerda” em Portugal se somos de direita no mundo. De pouco nos vale ser “revolucionários” em Portugal se somos pro-imperialistas no mundo. Ninguém pode ficar em cima do muro no que toca à necessidade de defender Cuba, a ilha com 11 milhões de habitantes e uma debilitada economia, a poucas centenas de quilómetros do maior império do mundo e que lhe faz frente. Sei que daqui desta ponta do telescópio, com as lentes da comunicação social, Cuba tem muitos defeitos e sei que, daqui desta ponta do telescópio, somos tentados a dizer a todo o mundo que nós, nós é que sabemos o que é democracia, que a civilização somos nós e a américa do norte, porque é assim que vemos na TV. Sei que daqui de onde nos colocamos, do verdadeiro privilégio de ter nascido no hemisfério norte e numa região que parece politicamente consolidada por duas guerras mundiais, tendemos a gostar apenas do nosso semelhante. Cultivamos a diversidade e as bandeiras arco-íris, somos todos anti-racistas, mas no que toca ao mundo, no que toca ao mundo, somos o verdadeiro “Homem Branco”, o colonizador geográfico e moral, o racista, o divisor entre civilização e terceiro mundo, o que dita o que pode e o que não pode, o que é democracia e o que não é. Aqueles que agora usam esse epíteto de “homem branco” para tanto antagonizar grupos com interesses semelhantes aqui dentro do mesmo país, ei-los a fazer o papel do verdadeiro agressor, do verdadeiro Homem Branco na acepção quase etimológica do termo, que nos remete para as lutas indígenas contra as invasões e ocupações europeias.
Daqui deste nosso pedestal, apoiamos os 20 milhões de euros que os EUA colocam no orçamento do Estado para financiar movimentos desestabilizadores em Cuba e achamos normal e até nos parece bem que o Soros e a CIA – sim, os mesmos que financiaram o golpe nazi na Ucrânia – tenham uma intervenção contra a “ditadura” cubana. Afinal de contas, nós é que somos a civilização, nós é que somos os portadores dos valores da democracia. Essa visão eurocêntrica que contamina e polui todas as nossas mentes, que faz analisar o mundo do ponto de vista das “democracias capitalistas” é uma das mais tristes expressões do pro-imperialismo.
São 60 anos de bloqueio.
Bloqueio que, claro, não pode servir de desculpa para tudo, dizem-te os mesmos que acham em Portugal um dia de greve pode colocar em causa o défice orçamental, o PIB, a dívida pública e mais o raio que os parta. Bloqueio económico que não pode ser justificação para tudo, dizem-te os mesmos que apregoam aos quatro ventos que a única saída para Portugal é aumentar as exportações, caso contrário, não vencerá a recessão. Pois bem, Cuba está impedida de exportar a maior parte dos bens que pode produzir e de importar a maior parte dos bens de que necessita. Cuba não pode negociar com o mundo e o seu povo resiste heroicamente com a criatividade, a coragem e a dedicação de um povo verdadeiramente revolucionário. O fim da União Soviética determinou o maior isolamento de Cuba e a ampliação do efeito do embargo.
Os que vêem Cuba como prisioneira de um “regime” autoritário (como lhe chamam os nossos dirigentes políticos de direita e de “esquerda” pro-imperialista, comentadores, professores, jornalistas e praticamente todos os que têm de facto palco para falar), os que entendem que é possível subjugar 11 milhões de pessoas a um regime autoritário, desligado do povo, por mero capricho ou para defender supostas benesses de uma elite de governo, não está a compreender que é precisamente o oposto. O que se passa em toda a região da américa latina é precisamente o oposto a isso: os países alinhados e submetidos aos EUA são precisamente os que alimentam uma elite doentia, narcotraficante, corrupta, de milionários e políticos apaniguados pelo poder norte-americano. Essa é a verdadeira benesse e essas seriam as benesses que recairiam sobre Diaz-Canel ou sobre os dirigentes do Partido Comunista de Cuba que decidissem trair a revolução. Aliás, a história mostra-nos bem como são premiados os ex-comunistas, os traidores dos povos (e vem-nos à memória a imagem batida de Gorbachev a vender Louis Vuitton).
Não é para defender privilégios da elite política de Cuba, não é por uma espécie de teimosia de velho comunista, que o governo cubano não abdica do seu papel. É porque, ao contrário de muitos dos governos da região (e do mundo), cumpre o papel que a constituição da sua república lhe atribui, contra ventos, tempestades e gigantes de aço. Daqui da nossa ponta do telescópio podemos achar que pensamos pela nossa cabeça, mas pensamos mal, quem pensa por nós é o grande capital.
A “elite” cubana nada ganha comparado como que podia ganhar se traísse a revolução e entregasse o território aos Estados Unidos. Sim, entregar o território também explica uma parte do que se passa em Cuba. Apesar de os EUA afirmarem que o embargo visa a melhoria dos direitos humanos em Cuba, o embargo acompanha diversas acções em tribunal que os antigos proprietários norte-americanos dirigem contra Cuba na tentativa de reaver a posse e a propriedade dos terrenos. Por isso é que ser contra o embargo também ser anti-colonialista. É que bem podemos falar de decolonialismo, descolonializar e inventar mil e um termos para fingir que o problema fundamental está ultrapassado, mas não está. Cuba luta hoje mesmo contra o colonialismo, tal como luta toda a pátria grande, a América Latina dos Andes ao Atlântico, da Patagónia ao Caribe.
Neste momento, Cuba tem o apoio incondicional dos comunistas. Mas esse apoio pode alargar-se se todos os que se identificam com o progresso, com a democracia popular, com o combate anti-imperialista decidirem questionar os preconceitos que a todos nos condicionam. Não é altura de atirar postas de pescada a partir do que ouvimos na TV sobre a culpa do “regime” num contexto em que a culpa do “regime” – mesmo que exista alguma – é absolutamente incomparável à culpa do bloqueio. Não é digno de ninguém que se afirme de “esquerda” aproveitar um momento de pandemia, de dificuldades agravadas, de carência de bens e de energia, para vir dizer que “eu não gosto dos EUA mas…” porque é aí que começa o discurso pro-imperialista.
O papel dos “trotskystas”, das Anas Gomes e Ruis Tavares europeus, de alguns dirigentes do BE não é passível de ser alterado porque os fantoches não decidem o que pensam. Mas o papel de cada um de nós, de cada homem, mulher, rapaz ou rapariga que se vê no lado do futuro da História e do mundo, não pode ser o de aproveitar a pandemia para impor ao povo cubano que abdique do seu projecto, nem pode ser o de equivaler as responsabilidades. Todos perceberíamos que é inaceitável dizer que “eu não sou racista mas os pretos também têm culpa do racismo”, mas tantos caímos na armadilha de dizer “eu não gosto dos EUA mas o governo cubano também tem culpa”. A culpa do povo cubano e seu governo é fazer frente aos que te dizem que há armas de destruição maciça no iraque, armas químicas na Líbia, democracia em Israel e é fazer frente aos maiores assassinos do mundo mesmo ali nas barbas deles, mesmo ali onde eles violentavam e prostituíam cubanas, escravizavam o caribe e a áfrica traficada, mesmo ali onde eles iam ao casino fumar os melhores charutos e explorar as melhores terras de cana e tabaco. Mesmo ali na cara do gigante.
Nesta altura, o povo cubano convoca todos os povos do mundo que são vítimas da agressão imperialista e da opressão capitalista. Nesta altura, o povo cubano convoca a solidariedade internacionalista dos que, perante a agressão e o genocídio imperialistas, não hesitam em decidir de que lado ficam. É preciso ter muito presente que, podemos achar o que quisermos sobre Cuba, podemos achar que Cuba carece de reformas políticas e económicas, podemos achar que Cuba até precisa de uma injecçãozinha de democracia ocidental e de liberdade como a dos filmes, mas o que está em causa neste preciso momento não é nada disso. É apoiar um povo na sua marcha própria, na sua dignidade e na eventual decisão de aperfeiçoar o seu percurso revolucionário, ou entregá-lo às garras da águia imperial e deixar o seu cadáver, como tantos outros povos da região, à mercê dos urubus.
16 Julho, 2021 às
Nem uma virgula a mais ou a menos.
Simplesmente perfeita este artigo!
16 Julho, 2021 às
Bom dia,
Concordando com tudo com o que o Miguel Tiago escreve, com a análise eurocêntrica que de forma errada continuamos a fazer sempre que olhamos o mundo, com a ideia de que os EUA se comportam com cuba e toda a América Latina de acordo com a natureza de potência imperialista, subjugando os povos nas suas escolhas políticas, económicas e até culturais, Portanto, concordando com tudo isto, não posso contudo deixar de manifestar a minha perplexidade quando assisto à violência exercida sobre pessoas que se manifestam na rua. Garanto-lhe, Manuel Tiago, entendo o socialismo como algo de profundamente edificante, decisivo e fundamental para o desenvolvimento do homem, mas precisamente por isso não posso aceitar que se considere normal que atue com violência sobre pessoas que expressam a sua opinião. Não aceito aqui em Portugal, em França ou em Cuba.
15 Julho, 2021 às
Esplêndido. Muito bem.
15 Julho, 2021 às
Muito bom
14 Julho, 2021 às
Excelente texto, está tudo dito e com o qual eu concordo.
14 Julho, 2021 às
Obrigado pelo envio desta opinião.
Subscrevo por completo todo o texto, que nos relembra o que o povo cubano sofria durante a ditadura fascista de Fulgêncio Batista e do sistema económico capitalista implantado e apoiado pelos “bondosos americanos dos EUA”, que naquele tempo se “preocupava muito” com a situação do povo cubano e com a sua liberdade.
Este bloqueio a Cuba é um crime de genocídio que deve ser condenado por toda a Humanidade.
14 Julho, 2021 às
Os USA não toleram que Cuba não faça parte do seu “quintal das traseiras”.Em 1953 começaram por um golpe de estado na Guatemala e desde então tem sido um fartar vilanagem por toda a América Latina,golpes de estado,apoio a ditaduras pela Operação Condor, criação da Escola das Americas para instrução de futuros ditadores ,em 2001 viraram -se para o Medio Oriente que está no estado em que está. Acho que qualquer pessoa com um minimo de discernimento devia ponderar.
14 Julho, 2021 às
Óptimo texto. Parabéns!
Alguém tem de resistir à brutalidade colonialista.
Alguém tem de sustentar a dignidade humana.
Alguém tem de dar sentido à expressão que anuncia que o sol quando nasce é para todos.
Entre colonizadores e colonizados não há lugar a espectadores sentados em muros.
Quem quizer estar de pé, em qualquer parte do mundo, tem de escolher o lado certo que preserve a dignidade humana.
Os cubanos lutam secularmente pela autodeterminação e independência total. Não estão sós, mas com todos os Povos livres, donos do seu destino.