Cultura e preconceito

Nacional

“Não é pelo preço dos bilhetes que os portugueses não consomem cultura – não o fazem porque não são cultos, porque a escola não os educa para a cultura. Ninguém regateia o preço de um bilhete de futebol, de um concerto rock ou de um gin no Bairro Alto…”. A afirmação pertence a António Filipe Pimentel, o director do Museu Nacional de Arte Antiga, em entrevista ao Público de 2 de Novembro.

Dissecarei agora estas afirmações e sobre elas tecerei os meus comentários.

“Não é pelo preço dos bilhetes que os portugueses não consomem cultura – não o fazem porque não são cultos, porque a escola não os educa para a cultura.” – nem sim, nem não. Ou melhor, sim, mas não é assim tão claro ou a preto e branco.

Os preços de alguns bilhetes podem dissuadir cada vez mais um espectador – principalmente uma família inteira – a assistir a um determinado espectáculo. Há uma procura cada vez maior por eventos gratuitos e o cinema – com bilhetes caros para a oferta mas não tão caros se comparados com outras manifestações culturais – tem perdido espectadores mas a uma velocidade menor. E os preços dos espectáculos são o que são, muitas vezes mais baixos do que deveriam ser.

Dizer que os portugueses não são cultos por assim não serem educados na escola, à primeira vista faz o seu sentido, e é verdade. Não são educados para a cultura de que aqui se fala, a cultura dos livros, das artes performativas, das artes visuais, etc. Mas a escola educa sempre. Mesmo a escola que deseduca está a educar. Por estes dias educa para a competição em substituição da cooperação, educa para o resultado em substituição do raciocínio, educa e aponta para o prático em substituição da vocação, ou da preferência por uma determinada área.
A educação para as diferentes manifestações culturais e artísticas deveria realmente ser um dos pilares do ensino. Não fossem algumas escolas e professores mais atentos e preocupados com esse pilar, e os últimos anos de políticas educativas já teriam destruído tudo o que foi construído nesta área.

Acrescento aqui uma outra camada, relativa ao excerto “não consomem cultura – porque não são cultos”. É que a cultura que aqui se fala não é a única cultura, aliás, tudo, mas mesmo tudo é cultura. A língua é cultura, a organização das localidades é cultura, a organização social é cultura, a violação do segredo de justiça é cultura, os reality shows são cultura, etc. Os portugueses podem ser pouco atentos e estar afastados de algumas manifestações artísticas – lá voltamos às questões da educação e/ou do preço dos bilhetes -, mas certamente não podemos afirmar que não cultos simplesmente porque não partilham os interesses e os saberes culturais que cada um de nós enquanto indivíduo prefere, estuda ou acha serem os certos.
O já falecido senhor Marcelino, que me habituei a ver cuidar da sua terra e das terras em volta, pertencentes àquelas pessoas que já trabalhavam nos empregos da cidade, certamente sobreviveria muito melhor que eu se por algum colapso social tivéssemos de voltar todos a subsistir exclusivamente da agricultura. O senhor Marcelino nunca aprendeu a ler, embora fizesse contas de cabeça como ninguém, mas em vários temas era mais culto que alguém que saiba dizer todos os filmes realizados por Eisenstein.

“Ninguém regateia o preço de um bilhete de futebol, de um concerto rock ou de um gin no Bairro Alto…” – aqui a porca torce o rabo, e não é pouco, é muito, até. Se na frase anterior consigo concordar ou perceber o raciocínio de António Filipe Pimentel, nesta só consigo perceber que há pouca tolerância em relação aos que se vão aculturando de maneira diferente ou através de outras manifestações culturais. Para lá disso, dizer que ninguém regateia os preços do futebol, de concertos rock, ou de um copo, é falso. Vejamos.

Sobre futebol, comecemos pelo Benfica, o meu clube e por isso aquele que vai merecendo as minhas (poucas) visitas ao estádio. Em jogos de campeonato – excluíndo Porto e Sporting e jogos decisivos do final de época ou de competições europeias – é raro o estádio da Luz passar de meio. Neste novo estádio o Benfica sagrou-se campeão em 2005, 2010 e 2014. Se formos ver as taxas de ocupação do Estádio da Luz nos últimos 5 ou 6 jogos de cada época, vemos que em 2005 e 2010 a taxa de ocupação era maior do que em 2014, ou seja, os benfiquistas foram menos à bola. Lembremos que foi no ano de 2011 que se deixou entrar a Troika em Portugal. Desde essa altura, só este ano o Benfica aumentou os preços, e muito pouco, tendo aumentado substancialmente as promoções.
Quando vim estudar para Lisboa, em 2002, ia a quase todos os jogos no estádio, agora, guardo-me para os jogos mais importantes, quando há dinheiro, e aproveito os 2 bilhetes de borla que o Benfica me oferece por ser sócio. Sou sócio porque o cartão me dá um sem número de descontos, que basicamente me pagam a anuidade, é um bom negócio e ainda se poupa. O último jogo em casa do Benfica foi com o Moreirense para a Taça de Portugal, cerca de 25 mil pessoas, um dos números mais baixos dos últimos anos.
Se olharmos para os outros estádios, principalmente de equipas mais pequenas e de divisões inferiores, facilmente vemos o vazio. Aliás, foi nos pequenos clubes que a ocupação dos estádios mais diminuiu.

Relativamente aos concertos rock, ou concertos de música não erudita, que isto do rock é uma coisa muito vaga, tenho mais dificuldade em falar. E porquê? Porque raramente vou. Se antes ia a uns 5 ou 6 por ano, incluíndo quase sempre um dos festivais de verão, agora tenho de fazer um esforço enorme para me lembrar quais os concertos de grande e média dimensão em que estive nos últimos 5 anos, aqueles em que paguei mais de 5 euros. Mas há uma coisa que me diz que também aqui o raciocínio está errado: aos amigos e familiares que vão a um concerto, tenho por hábito perguntar se o recinto estava cheio. A resposta tem sido sempre não. Por vezes a meio, por vezes nem isso. Lembro-me bem de ter perdido alguns concertos por estes terem esgotado 2 ou 3 dias depois de os bilhetes estarem à venda, lembro-me de estar sempre atento ao primeiro dia de venda, e isto até para festivais de verão.
E festivais de verão até são uma conversa à parte. É que ao comprar um bilhete estamos em regra a comprar também um espaço de acampamento, ou seja, a comprar uma semana de férias. Perguntem aos adolescentes e jovens adultos que vos rodeiam onde passam eles as férias, tirando as que fazem com os pais – quando estes têm dinheiro. Quando comecei a ter ordem de soltura no verão, ia a um festival e ainda recebia dinheiro para ir mais uns dias para onde quisesse com amigos. Se voltasse a ser adolescente, para fazer as duas coisas, a minha família teria de cortar noutra despesa ou eu teria de escolher uma das opções. Para além disso, nunca me esquecerei de um Alive em que paguei 90 euros por 3 dias de concertos, já nessa altura foi um esforço, mas nunca teria dinheiro para ver concertos individuais de todas as bandas que nesse festival queria mesmo ver. Ou seja, é uma espécie de compra por atacado que acaba por compensar. Resumindo, a taxa de ocupação de concertos tem sido menor.

Quanto aos copos de gin, de cerveja, de vodka, no Bairro Alto, na Ribeira, em Coimbra ou seja lá onde for, experimentem ir falar com os donos dos bares e eles darão a resposta. Mas perguntem o que compram e quanto compram os portugueses. Turistas e pessoal em Erasmus não conta.
As lojas de conveniência são cada vez mais procuradas, principalmente para comprar “litrosas”, as saídas nocturnas são cada vez mais controladas. Do que me apercebo os jantares de grupo pré-noite em restaurantes são menos comuns, é mais normal terminar a noite num bar por volta das 3h da madrugada do que às 6h numa discoteca. Enfim, é perguntar a quem ainda sai à noite quais são os seus hábitos e logo se perceberá que se bebe e sai menos à noite.

O que está implícito nesta frase é que há uma aceitação, apetência e preferência dos portugueses para a estupidificação, impondo e contrapondo aquilo a que alguns chamam de baixa cultura – futebol, música ligeira, copos, cinema comercial, séries de televisão – à alta cultura, a artística, a erudita – teatro, cinema de autor, artes plásticas, etc.
E isso é algo que não gosto nem aceito. Não gosto porque não aceito que a cultura se divida em alta e em baixa, divide-se nos seus vários campos e o ser humano tem a capacidade de escolher e optar por uns em detrimento de outros, optar por todos, cada um na sua vez, ou mesmo por nenhum. Não é por isso que merece menor respeito ou deve ser discriminado.
Muitos daqueles que acham que a sua cultura é a cultura certa, deviam perder a cabeça e ir a um grande jogo de futebol para perceberem que as sensações que dali retirariam seriam muito superiores a muitos dos eventos culturais da tal alta cultura, que em muitos casos são pouco mais do que maus. Nos concertos rock, nos bons, também há arte e não é pouca, e uma noite de copos com os amigos é tão essencial ao equilíbrio emocional como sabermos, enquanto povo, que continuamos a ter um importante museu nacional de arte antiga e disso termos orgulho.

Estas declarações mostram um enorme preconceito por um grande número de portugueses, e apesar de me preocupar que estas declarações sejam do Director do MNAA – uma instituição pública que vive com o dinheiro de todos e deve servir a todos -, preocupa-me ainda mais que elas tenham sido partilhadas e “gostadas” no Facebook, a seco, por muitos colegas actores, por encenadores, músicos, etc.

António Filipe Pimentel pode defender-se com o contexto em que afirma isto, com muitas outras frases presentes na entrevista onde desenvolve pensamento sobre o momento cultural do país – concordo e assino por baixo muitas delas, inclusivamente a primeira deste excerto, à qual já acrescentei alguns cinzentos.
Os profissionais da cultura que as partilharam e “gostaram” a seco no Facebook, não só tornam as afirmações mil vezes mais preconceituosas como acabam por estar a sacudir do capote algumas das suas culpas. Alguns deles vivem fechados na sua concha artística, esquecendo que a arte deve estar atenta ao real, às pessoas, aos hábitos e sobre estes intervir ou pelo menos criar. Outros desenvolveram de tal maneira os músculos do dedo indicador com que apontam os defeitos alheios, que são agora incapazes de o rodar para si mesmos e perceber que com o seu trabalho talvez já tenham levado algumas pessoas a preferir ver um Desportivo das Aves vs. Freamunde do que um próximo inexpressivo e aborrecido espectáculo falhado. Outros ainda estão legitimamente aborrecidos por terem menos trabalho do que queriam e merecem, mas isso não lhes dá o direito de culpar aqueles que menos têm voto nesta matéria, os públicos, os habitantes do país, quer os que não podem ir ao teatro como dantes, quer os que por algum motivo nunca lá puseram os pés.

“Não é pelo preço dos bilhetes que os portugueses não consomem cultura – não o fazem porque não são cultos, porque a escola não os educa para a cultura.” Era aqui que devia ter terminado este raciocínio do director do MNAA, era apenas isto que os profissionais da cultura deviam ter partilhado no Facebook. É que a razão é mesmo, em grande parte, esta.

Eu agora podia terminar o texto dizendo que sou dirigente sindical de um sindicato de trabalhadores da cultura há quase 3 anos e que muitos dos colegas que passam a vida no Facebook a queixar-se das políticas culturais, da precariedade, da miséria que é a educação para a cultura em Portugal nunca apareceram numa única iniciativa sindical ou social que pretende criar espaços e forças para defender a cultura (toda) e as condições e direitos laborais dos seus trabalhadores. Podia terminar o texto dizendo que muitos deles não acreditam em política, em partidos, em sindicatos, mas que não se coibem de todos os dias, no Facebook, darem opiniões políticas. Podia terminar o texto dizendo que já muitos me disseram que tinham de se inscrever no sindicato, mas acabam por não o fazer porque não arranjam tempo para preencher os papéis. Podia terminar o texto dizendo que muitos se querem inscrever no sindicato mas dizem-me que não têm dinheiro para as quotas…bem, assim é que não vou terminar mesmo, porque senão teria de dizer que para as quotas não têm dinheiro, mas para continuar a beber gins no Bairro Alto têm. Se acabasse o texto assim estaria a ser tão preconceituoso quanto eles. Podia terminar o texto dizendo tudo bem que não intervêm directamente nas organizações, mas preocupam-se em lutar por uma cultura mais abrangente e democrática e no seu dia-a-dia denunciam sempre e não aceitam as situações de injustiça laboral que lhes impôem a eles e aos que trabalham com eles, assim podia terminar o texto, mas estaria a mentir…

* Autor Convidado
André Albuquerque