Da (Ca)vacaria ao curral das comendas

Nacional

Parece que o costureiro da nossa cavacal primeira-dama, Carlos Gil, foi ontem condecorado com a comenda de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Confesso que não percebo muito de comendas. Mas a verdade é que uma pesquisa pelo site da Presidência me leva a ficar a saber que a “Ordem do Infante D. Henrique destina-se a distinguir quem houver
prestado serviços relevantes a Portugal, no País e no estrangeiro, assim como serviços na expansão da cultura portuguesa ou para conhecimento de Portugal, da sua História e dos seus valores”. Não vamos entrar pelo caminho frágil de discutir a expansão da nossa cultura que é levada a cabo pela Maria Cavaca. Bem sabemos que, em grande parte, as distinções presidenciais deste tipo têm critérios subjectivos e são muitas vezes arbitrárias. Mais ou menos como se escolhe a vaca para abate. Narciso Miranda é comendador, por exemplo.

Não me choca nada que um estilista ou costureiro ou lá o que é seja comendador. Eu próprio condecoraria a minha mãe. Costureira durante décadas, quando ainda havia indústrias em Matosinhos, vejam lá aos anos que isto vai, desdobrava-se entre as linhas de produção, os quatro filhos e ainda voltava a costurar ao chegar a casa. Ora para fazer as nossas roupas, ora para fora, para ganhar mais algum. Foram anos difíceis lá em casa, com o fecho da FACAR, que empregava centenas de trabalhadores e o seu fecho fica no currículo do comendador Narciso. Na altura, falava-se que os terrenos serviriam para construção, sempre desmentido, pelos pensamentos recuados de alguns.Anos mais tarde, no mesmo local, nasceram as famosas torres de Leça.

A minha mãe tinha uma máquina de costura de dar ao pedal, uma Refrey. Era espectacular. Eu encaixava-me por baixo da mesa da máquina e brincava aos carros. A roda que, ao girar, fazia andar a agulha por aqueles quilómetros de tecido era perfeita, mesmo à medida do volante de um carro imaginário. Mesmo apertadinho, ainda cabiam lá os meus dois amigos imaginários.

A minha mãe vestia-nos. Mais às minhas irmãs, que vieram seguidinhas, com um ano de diferença. Família pobre, sem televisão. A vida da minha mãe nos têxteis marcou-me. Não perdoo à indústria o início de AVC que lhe provocou à entrada dos 40, acho eu, que levou lá a casa a Doutora Prazeres. E a luz apagada, porque incomodava a mãe, e aquele escuro assustava-me. Anos mais tarde, as minhas irmãs também passaram pela fábrica, nas férias.

A minha mãe fez-me o fato da primeira comunhão, as fantasias de Carnaval, camisolas, calças, o meu blusão “à-risca-na-manga” azul e branco sujo, que eu adorava por ser igual ao do meu pai. Fez-me equipamentos para o futebol. Aquela Refrey fazia magia e ainda hoje faz.

Os trabalhadores da indústria têxtil são dos mais mal pagos no país. Eram-no então e continuam a ser hoje. Quem não se lembra da desgraça que ia ser o aumento do salário mínimo de 485 para 505 euros mensais? E a fortuna que são os 2,40 euros de subsídio de refeição? Toda a gente sabe que se come por 2,40 euros.

Parabéns, então, a este costureiro. Que eleva o nosso nome ao Olimpo, ao contrário dos comuns mortais, que trabalham de cabeça baixa para não coserem um dedo. Que têm encarregados que a única coisa que permitem que se ouça nas linhas de produção é o trabalhar automático das máquinas de corte-e-cose. Que são pressionados até à exaustão para que a produção saia de acordo com os prazos estipulados, sem direito a horas extraordinárias. Sem poderem parar para ir ao quarto-de-banho, ou com horas certas para o fazerem. Parabéns, rapaz, que vestes tão bem a cavacal senhora.