De cabeça baixa

Nacional

Metro do Campo Grande. Um homem vendia a revista “Cais”. Entre os “não, obrigado” que rapidamente viravam a cara, com ou sem sorriso, uma senhora simplesmente fecha a expressão, baixa a cabeça e olha para os pés. A filha adolescente da mulher também fica muda e olha para o lado. O homem a fala sozinho durante uns segundos, até desistir.Há uns anos, de sorriso na cara, comprava a “Cais”, de vez em quando, dava uma moeda ou um pão, de vez em quando. Agora não posso, mas ainda consigo dizer sempre “não”, mas sorrio cada vez menos. Quanto mais evidentes são as minhas próprias dificuldades financeiras e de projectar o futuro, mais consciente fico de que a linha que divide uma vida digna, com um tecto e sem fome, de uma vida que não é bem uma vida, é mesmo muito ténue. E é uma linha intermitente, com cada vez mais buracos onde podemos tropeçar e cair.

Confesso que por vezes viro a cabeça e até olho para o chão, é o meu
sentimento de incapacidade de ajudar – momentaneamente ou de forma mais
contínua – o ser humano que tenho à frente. Aliada a isso fico com uma enorme vontade de
agredir alguém, e certamente que não é aquela pessoa.
Prefiro, cobardemente, fingir que não existo, como se estivesse perante
um animal que apenas me detecta a presença se eu me mover.

A maior parte das pessoas que baixam a cabeça fazem-no pelos mesmos motivos e não pelo incómodo higiénico ou social que lhes transmitem os vendedores da “Cais”, os pedintes e os sem-abrigo, pelo menos prefiro pensar assim, espero não estar enganado. Quando um de nós baixa a cabeça perante uma destas pessoas é como se todos, em uníssono, pedíssemos desculpa por termos sido incapazes de os ajudar, de perceber que estavam à beira de tropeçar e cair.

Através da injustiça e da desigualdade social, estamos a tornar-nos numa sociedade de cabeça baixa, perante a dimensão gigantesca dos problemas que nos passam todos os dias à frente de olhos. Em alguns deles existe e existirá sempre uma culpa colectiva, mas é irónico que os maiores responsáveis sejam os que andam de cabeça bem levantada, olhando para o céu altivamente. Onde não há gente.

* Autor Convidado
André Albuquerque