De que lado estás? As lições do Occupy Wall St.*

Internacional

O meu pai era mineiro
Hoje é sol e ar
E há-de estar com os trabalhadores
Até a luta terminar

De que lado estás?
De que lado estás?
De que lado estás?
De que lado estás?

Dizem que no Condado de Harlan
Por lá não há neutrais
Ou és do sindicato
Ou um capanga do J.H. Blair

De que lado estás?
De que lado estás?
De que lado estás?
De que lado estás?

É assim a canção que os mineiros estado-unidenses cantavam nos anos 30, quando enfrentavam, ombro a ombro, a avidez dos patrões. Nos anos da Grande Depressão, o deus-banqueiro defenestrava uns capitalistas do alto dos arranha-céus e multiplicava a opulência de outros, enquanto o desemprego e a miséria deserdavam toda a classe trabalhadora. Hoje, os EUA voltam a conhecer níveis análogos de desigualdade, os mais altos em 80 anos, mas agora são os trabalhadores que se atiram das janelas.

Quando, em 2011, o movimento Occupy Wall St. se tornou demasiado grande para ser ignorado, o New York Times queixava-se: «Nem têm uma lista de exigências ao Congresso. Mas afinal o que é que eles querem?!». As classes dominantes estavam perplexas: os jovens que ocupavam as praças de mais de 1000 cidades não estavam apenas a protestar contra os desalojamentos das famílias que não podiam pagar as casas; denunciavam mais que a bancarrota dos clientes da saúde; criticavam mais que a insustentável dívida dos estudantes. Condenavam a desigualdade estrutural do sistema e, em vez de olhar caridosamente para os de baixo, apontavam o dedo aos de cima. A simplicidade axiomática da formulação «os 99% contra os 1%» conquistaria o coração dos americanos e o ódio do grande capital. Os senhores da ganância e do privilégio, que dos quinquagésimos andares brincam com dinheiro e com vidas, não conseguiam compreender o alcance do movimento. Então na sua húbris, como já não o podiam ignorar, riram-se dele. E quando já não se podiam rir dele, tentaram destruí-lo à bastonada. Mas afinal, o que queria o Occupy? O que explica o seu fulgurante aparecimento e ocaso? A resposta está na própria História dos EUA.

A excepção da regra e a regra da excepção

Quando o guru dos liberais Alexis de Tocqueville percorreu os EUA no segundo quartel do séc. XIX, descreveu um país único: destituídos de Idade Média e fundados por puritanos fanáticos, os EUA foram alicerçados numa ideologia nacional. Note-se que o gentílico «americano» nos remete para uma geografia perigosamente abstracta – ser «americano» seria mais que nascer na Florida ou em Cuba, mas um jus soli de território moral. O mapa axiológico do «americanismo», a ideologia nacional dos EUA, cultiva uma visão maniqueísta do mundo, em que a ética é o fundamento da política e os EUA surgem como o representante demiúrgico da moralidade e da religião contra o estrangeiro ímpio e bárbaro.

A doutrinação do «americanismo» percorre os dois séculos da narrativa histórica dos EUA, criando um quadro filosófico fecundo para o cultivo do idealismo, do individualismo, da propriedade e liberdade privadas e da religião. O próprio movimento comunista estado-unidense, desgastado por cem anos de chumbo e repressão, deixou-se várias vezes cair nesta falácia. Com efeito, a própria expressão «excepcionalismo americano», que hoje os neo-conservadores ventilam, tem origem na crítica de Estaline a Jay Lovestone, Secretário-Geral do PCEUA nos anos 20, que defendia que este país era tão único que as leis do materialismo histórico não se lhe aplicavam. A Grande Depressão veio atirar definitivamente as ideias de Lovestone para o caixote do lixo da história: nada nos EUA é «excepcional» para além do proeminente estádio de desenvolvimento do seu capitalismo (também um cancro se desenvolve).

Ocupemos o Estado!

O Occupy foi refém desta tradição idealista: a aritmética 99% e 1%, embora verdadeira, apenas articula a distribuição da riqueza e não questiona a propriedade dos meios de produção. Grita “os banqueiros são desonestos», «acabemos com a corrupção na política» e outros postulados éticos sem conseguir identificar classes nem discutir o poder. A própria táctica prefigurativa do Occupy, os acampamentos, demonstra esta tendência: os espaços ocupados eram casulos de liberdade compartimentados e concêntricos, escolas hermeneutas que parasitavam o capitalismo sem o pretender destruir. Afinal, se a liberdade pode preceder a libertação, o acampamento dispensa a revolução.

Assim, muitas ocupações influenciadas mortalmente pelo anarquismo situacionista, pretenderam ser anti-poder em vez de poder; descentralização em vez de organização e oposição em vez de alternativa. Com medo da verticalidade e da burocracia, desenvolveram liturgias extravagantes e fraseologias excêntricas que alienaram a classe operária. Como os bispos de Constantinopla, que cercados pelos turcos discutiam o sexo dos anjos, o Occupy, cercado pela polícia, queimou as energias transformadoras do proletariado na subjectividade do formalismo kantiano, impondo abstração política à realidade social. Como uma criança surpreendida com as suas próprias forças, procuraram radicalizar-se e cresceram descontroladamente num estiolamento que fetichizava a sua própria fragilidade perante o aparelho de repressão do Estado. Já no seu leito de morte, procuraram proletarizar-se com programas como o «Occupy the Hood», nos bairros negros e o «Ocupemos el Barrio», nos bairros latinos. Por fim, já em 2012, receberam a absolvição e a extrema-unção numa vertigem serôdia de aproximação aos sindicatos.

O dia das surpresas

Lenine dizia que há décadas em que nada acontece e semanas em que décadas acontecem. O movimento Occupy veio provar a incapacidade do capitalismo aniquilar a luta de classes impedindo a erupção, mesmo espontânea, do protesto. O idealismo chilro que ditou a sua morte é o corolário ideológico de uma correlação de forças imensamente desfavorável, mas encerra o gérmen transformador que o utopismo socialista tinha no princípio do séc. XIX. Ainda assim, o Occupy soprou inspiração e criatividade na atmosfera democraticamente rarefeita da sociedade estado-unidense e foi capaz de inserir indelevelmente a desigualdade e a luta de classes nesse sáfaro léxico político, o que explica que Obama venha agora prometer o aumento (insignificante e torpe) do salário mínimo federal.

Quando os monarcas morriam, o seu séquito gritava «O rei morreu! Viva o rei!». Também a luta de classes não se extingue numa organização. As vitórias e as desilusões do Occupy não se perderam. Pelo contrário, contribuíram para reforçar o movimento comunista. A eleição de Kshama Sawant, activista do Occupy e dirigente da Alternativa Socialista, para o Conselho de Seattle lançou um terremoto político: É a primeira comunista eleita nos EUA em mais de 50 anos e, no passado Primeiro de Maio, foi a responsável pela elevação do salário mínimo daquela cidade para 15 dólares / hora, o mais alto de sempre na História dos EUA.

O movimento Occupy desempenhou um papel fulcral no desenvolvimento da luta de classes e corroborou as potencialidades revolucionárias dessa mesma luta, até nos contextos mais adversos e inesperados. Tudo está em aberto e as praias de amanhã podem surgir debaixo das mais insuspeitas pedras de hoje. Porque, como escreveu Saramago, «quando nos julgarem bem seguros, cercados de bastões e fortalezas, hão-de cair em estrondo os altos muros e chegará o dia das surpresas»

*Artigo originalmente publicado no Jornal Avante! a partir de uma conferência para o Congresso Internacional Marx em Maio