De suspeitos a culpados num título do JN

Internacional

Todo o português comum que acompanhou e acompanha os inúmeros e intermináveis processos judiciais altamente mediatizados que ao longo dos últimos anos encheram jornais, telejornais e noticiários radiofónicos sabe que a chamada “presunção de inocência” é um dos sacro-santos elementos do chamado “estado de direito”, que por cá é verdadeiro estado de direita. Nada contra a presunção de inocência, bem pelo contrário. Um suspeito de determinado crime apenas é culpado quando a acusação consegue demonstrar a sua culpa e um tribunal reconhece essa mesma prova como válida, o que leva à condenação.

Acontece que nem toda a gente tem pela “presunção de inocência” grande respeito. Acontece também que o referido princípio não é de aplicação universal. Nos jornais, por exemplo, a fronteira entre suspeito e culpado, efectivo ou alegado, é coisa muito móvel, pouco rigorosa.

O JN refere ontem, em título de notícia publicada no seu site, que a CIA torturou terroristas da al-Qaeda “até ao ponto da morte”. Não me alongando em considerações sobre as práticas de tortura antigas, continuadas e impunes levadas a cabo pela CIA, nem tão pouco sobre essa coisa de se pertencer à al-Qaeda – não é o tema deste post, embora pudesse ser – chamo a vossa atenção para o facto do título do JN condenar os torturados: terroristas, ponto.

O corpo da notícia porém desmente o título. Ora leiam: “A Agência de Informações norte-americana (CIA) torturou suspeitos de
pertencerem à rede terrorista al-Qaeda “até ao ponto da morte”,
afogando-os em banheiras, noticia o Daily Telegraph, antecipando um
relatório do senado norte-americano sobre técnicas de interrogatório”. Os terroristas do título passam a
“suspeitos de
pertencerem à rede terrorista al-Qaeda” no parágrafo logo em baixo. Todo o “rigor” do vulgar jornalismo indígena numa pequena notícia que já não impressiona ninguém, não causa sobressalto, não motiva indignação alguma.

Não é semântica, não é excesso de zelo. É apenas e tão só a imagem de uma profissão que se vai degradando, de uma missão de elevadíssima responsabilidade que se vai diluindo. Os jornais do regime são bem a imagem do próprio regime.