Do sonho à ilusão, do projecto à estagnação

Nacional

O anúncio de um punhado de notáveis que assinou um documento com o nome claramente inspirado no nosso belogue colectivo, principalmente quando é uma espécie de versão desvitaminada da reivindicação do PCP que se converteu em reclamação de massas sobre a renegociação da dívida, suscitou-me alguns pensamentos. Principalmente porque há um contraste fundo entre o que dizem os comunistas e o que dizem os subscritores do dito manifesto das 70 personalidades (como veio a ser referido quase elevado a programa político) e porque esse contraste mereceu reflexo na dimensão mediática de cada fenómeno.

Se, por um lado, a renegociação da dívida dos comunistas é uma espécie de projecto inaplicável, um delírio esquerdista e radicalista, já a renegociação da dívida nos termos propostos pelos subscritores do dito texto é algo que, nas palavras dos partidos que suportam o Governo, tem vindo a ser feito com naturalidade ao longo das avaliações da troica.

É que este tal manifesto de notáveis tem uma virtude de facto, a de mostrar que falar de renegociação não é coisa própria apenas de comunistas e outros anti-democratas, mas pode ser mote de personalidades insuspeitas. Insuspeitas, claro, por competentes e livres de interesses e responsabilidades, todos eles. Não deixa de ser curioso que o PS, umas vezes de forma mais explícita outras menos, como lhe é característico, se associe às sugestões dos notáveis para renegociar a dívida. O mesmo PS que preferiu chamar a troica a aceitar a proposta de renegociação da dívida apresentada pelo PCP. Ou seja, depreende-se que para o PS, renegociar, sim claro! mas só depois de estar o país destroçado e apenas se renegociar não implicar mexer em nada.

Aliás, tal como os notáveis, o PS tem vindo a fazer sistematicamente o mesmo número de ilusionismo político. Se o sonho, o projecto, ancorados na realidade e decifrando as suas regras e leis, são os motores da evolução e da revolução; já a ilusão é o principal instrumento de quem quer que nada mude. Todavia, perante o descontentamento crescente das massas, é preciso dar-lhes escapes para a revolta, alimentar ilusões. Que a europa resolve, que o capitalismo pode ser bonzinho, que a dívida pode ser renegociada sem tocar nos montantes, são tudo ilusões da mesma família.

Nada é mais conservador que a falsa solução. E renegociar a dívida fazendo uso dos mecanismos capitalistas que a geraram é apenas mais uma ilusão para prolongar o saque organizado a que os povos estão sujeitos. Enquanto aos povos não forem apontados sonhos e projectos de que possam apropriar-se para a sua prática, enquanto aos povos forem alimentadas ilusões inconcretizáveis, distantes das suas capacidades, longínquas dos seus centros de decisão, a revolta redundará em desespero, desesperança e estagnação. 

Se é possível construir outra Europa? É.
Se é possível construir outra Europa com esta União Europeia? não, porque então não seria esta União Europeia.
Se é possível parar de roubar e saquear povos? É.
Se é possível parar de roubar e saquear povos, mantendo o capitalismo? Não, porque então isso já não seria capitalismo.