Fronteiras de Abril

Nacional

O discurso camaleónico, que se alapa mediante a circunstância e pouco sobre a realidade, é já a marca d’água de Marcelo Rebelo de Sousa. Soará familiar a todos, num ou noutro momento de intervenção pública, o Presidente da República exultar o facto de Portugal ser um dos países do mundo com as fronteiras mais antigas e geograficamente estáveis. Não obstante, o que ontem era verdade hoje já não o será necessariamente, ou antes o contrário. Afirmou recentemente, Marcelo Rebelo de Sousa, que as fronteiras portuguesas “já não são o que eram, e hoje passam por África, pelo Golfo da Guiné, pelo Atlântico, pela fronteira de vários países da União Europeia, da NATO com a Ucrânia”. Entendemos então que as fronteiras e outras noções são agora concepções abstractas, subservientes a estados de espíritos e a afectos políticos.

Mas nem tudo é mau e valha, a alguém, a consistência do mais alto magistrado da nação, que desta decomposição da verdade e da história, redefinidas que estão para a posterioridade as fronteiras de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa prepara-se para continuar o projecto de alguns, na redefinição das Fronteiras de Abril. Marcelo anunciou a intenção de condecorar todos os membros da Junta de Salvação Nacional no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, alargando a proposta de Vasco Lourenço, pasme-se, que tinha proposto apenas Costa Gomes, Spínola e Rosa Coutinho, para a atribuição da Ordem da Liberdade.

A Junta de Salvação Nacional (JSN) era um organismo que vinha previsto no programa do Movimento das Forças Armadas para que se sustentasse o poder pós-revolução no incerto período transitório entre o fascismo e a democracia. No Largo do Carmo, distinto palco da Revolução dos Cravos, Salgueiro Maia comandava o cerco ao Quartel do Carmo, no qual estava refugiado o então Presidente do Conselho do Estado Novo, Marcello Caetano. Num golpe palaciano de íntima cooperação reaccionária, o General António de Spínola sedento de palco e Marcello Caetano acertaram a rendição deste em favor do primeiro, condição inegociável para que o “poder não caia na rua”. O MFA acede ao pedido crendo que o juntar das altas patentes do Exército traria estabilidade, mas sobretudo legitimidade ao processo revolucionário, bem como crê que esta é a porta que resolverá o impasse no Carmo, numa revolução que se quer limpa de sangue.

A Junta de Salvação Nacional integra então sete nomes, com António de Spínola à cabeça, e, cedo se conspurca o novo órgão de soberania que tenta travar a transformação do golpe de estado em revolução em simultâneo com a pretensão de manter o aparelho do Estado Novo intacto e prosseguir o caminho da noite longa fascista. De facto e de forma pública, Spínola e por arrasto a JSN, que contém em si distintos corporativistas e reaccionários, opõe-se à libertação imediata dos presos políticos por considerar que haveria a necessidade de “distinguir aqueles que se encontravam detidos por motivos ideológicos dos que eram réus de crimes comuns”, numa tentativa de protelar no tempo a libertação de todos os antifascistas e anular ou mitigar a sua participação e contributo no levantar de um Portugal democrático. A oposição democrática com sustento no apoio popular de massas e cariz unitário afirmou “ou todos ou ninguém”, pressão que deu continuidade ao processo de libertação de todos os presos políticos.

A saga retrógrada da JSN teve seguimento quando Spínola e coadjuvantes perspectivaram a continuidade da PIDE, reconhecendo-lhe um papel num futuro regime. É, aliás, tido como certo que os agentes da PIDE que se foram rendendo, tendo conhecimento de que se rendiam efectivamente a António de Spínola e à JSN, tinham a convicção que o regime não estava caindo, mas apenas trocando de mãos o poder. Sobre a questão colonial e da sua guerra, A JSN colocava reservas sobre o fim imediato dos conflitos em África e mais ainda sobre a independência imediata das, então, colónias portuguesas. O posicionamento não era novidade, até olhando às perspectivas de vários integrantes da JSN sobre esta questão colonial, como Costa Gomes ou Galvão de Melo, que se pontualmente do ponto de vista militar e da insustentabilidade económica da guerra, aliás como o próprio Spínola, ponderariam a abertura de uma via diplomática para o tema, que ora não abrisse porta à independência unilateral destes povos ou que sendo esse o inexorável caminho, pelo menos que se colocasse as instituições e instrumentos fascistas ou fascizantes ao serviço do combate das organizações partidárias de base popular e progressista como MPLA ou o PAIGC.

Spínola e a JSN não conseguiram concretizar os seus projectos para destruir Abril, mas não perderam alento em continuar a tentativa. Numa primeira reunião de recepção às delegações políticas, Spínola disse a Álvaro Cunhal, com uma desfaçatez própria de um fascista, que se fosse um imperativo continuar a imprimir o jornal Avante! (isto depois de ter encetado a tentativa de convencer do desnecessário que seria, dado o golpe de estado), que então o PCP o fizesse, mas abdicando do martelo e da foice e do enunciado dizendo tratar-se do órgão central de comunicação do Partido. Cunhal manteve a postura e replicou “se nem o Salazar e a ditadura fascista o conseguiram fazer, não será com certeza o General a consegui-lo”.

Spínola, liderando a famigerada JSN sente-lhe os pés fugindo do seu projecto reaccionário para o país e embarca numa cruzada contra Vasco Gonçalves, primeiro-ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios, que representa diametralmente o oposto do General Spínola. Com medidas reformistas e progressistas, Vasco Gonçalves conquista uma base de apoio popular e associativo que Spínola considera abjecto, humilhando publicamente e em diversas ocasiões o primeiro-ministro, alinhando com uma campanha internacional que coloca sobre Portugal uma falsa ideia de sovietização do país. No seguimento destes acontecimentos um Spínola ostracizado pelo processo revolucionário demite-se do cargo de Presidente da República em Setembro de 1974, mas a JSN segue caminho onde se integram novos nomes face à saída de quatro oficiais.

Fracassada a tentativa pela via democrática, até porque não era um conceito onde Spínola se sentisse confortável, este lidera por fim uma tentativa de golpe a 11 de Março de 1975 (a Intentona) que resulta em nova derrota, obrigando-o a fugir do país e a exilar-se em Espanha e provoca a tardia extinção da JSN. Mas se já gabámos a consistência de Marcelo Rebelo de Sousa, é também hora de o fazer perante a resiliência e sanha fascista de Spínola. Em Madrid funda a organização terrorista de extrema-direita, o MDLP, que irá estar presente no “Verão Quente” desse ano, responsável por assassinatos e agressões a militantes comunistas e de esquerda e pelo ataque a várias sedes do PCP e outros.

António de Spínola e a JSN foram motores da resistência sucedânea do fascismo, actuando contra o interesse do povo português e do processo democrático. Promoveram um espírito de guerra civil e tornaram-se fortes opositores dos valores e concretizações de Abril e da sua Revolução. É portanto, uma escandalosa indecência que Marcelo Rebelo de Sousa apadrinhe esta pretensão de honrá-los, de honrar as suas vidas e actos; acrescendo ao claro objectivo da intenção de lavar a sua imagem pública e histórica associando Spínola e os restantes integrantes da JSN ao 25 de Abril e ao que Abril preconiza. Atentar contra a verdade histórica é atentar contra a liberdade e a democracia, e Marcelo Rebelo de Sousa será cúmplice desse ataque. Condecorar os constituintes da Junta de Salvação Nacional é promover novas e falsas fronteiras para o processo revolucionário, legado maior do povo português e da sua história.

4 Comments

  • Manuel Gouveia

    18 Abril, 2022 às

    «Abjecta JSN» é um exagero e uma injustiça, é confundir a JSN com Spínola. Na primeira JSN havia reaccionários, como Spínola, Galvão de Melo e Diogo Neto, mas também havia revolucionários como Rosa Coutinho, e homens como Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo, que acompanharam o MFA quase sempre. E em Setembro de 1974, depois de derrotado o golpe reaccionário de 28 Setembro, entram novos militares revolucionários na JSN como, por exemplo, Carlos Fabião.
    É claro que condecorar a JSN e não o MFA ou a sua Comissão Coordenadora, é um sinal reaccionário. Mas os capitães de Abril – mesmo os que então eram já majores ou coronéis – não precisam de medalhas do Marcelo.
    Um abraço,

  • Manuel de Lima Bastos

    18 Abril, 2022 às

    Inteiramente de acordo com o articulista. Com esta despudorada iniciativa Marcelo Rebelo de Sousa mostra a sua verdadeira face política deixando cair a máscara que tão habilidosamente exibiu desde a queda do regime ditatorial.

  • Jorge Nunes

    15 Abril, 2022 às

    Obrigado pelo texto, Alexandre Hoffmann.

    Para mim, tanto a presidência, como os presentes membros do governo já nada dizem respeito ao 25 de Abril de 1974.

    Esta gente que se vendeu aos interesses americanos e europeus são traidores ao espírito do 25 de Abril. São também promotores e ajudantes de fascistas e nazis ucranianos. O próprio Estado português vai fornecer ajuda militar a um país que suspendeu liberdades e que prende e persegue democratas e comunistas.

    Vasili Volga, dirigente da esquerda ucraniano continua detido e já foi torturado pelo regime brutal e corrupto de Zeleski, assim como também o comunista Alexander Matiushenko, também ele detido e torturado.

    O parlamento português prepara-se para ouvir mais um anúncio do presidente fantoche ucraniano que todos sabemos ser refém de fascistas e nazis. A última reunião que Zeleski teve com os líderes da extrema-direita da Polónia, Estónia, Lituânia e Letónia passou despercebida por todos aqueles que agora vão ouvir e aplaudir o discurso do presidente fantoche (aqui incluo os parlamentares do BE e do Livre que constituem não só um dilema mas uma imensa vergonha na nossa democracia).

    Um país que ajuda militarmente uma nação fascista que detém e tortura democratas, mais está ligada ao anterior regime do 25 de Abril de 1974 do que aqueles que compuseram a JSN em Abril de 1974.

  • Ricardo Ramos

    15 Abril, 2022 às

    A bela da esponja no passado.
    Até às comemorações dos 50 anos ainda vai achar maneira de condecorar o outro Marcello.

Comments are closed.