Imagina que o Código do Trabalho dizia que em caso de incumprimento por parte do patrão, o trabalhador tem direito de rescindir o contrato.
Ou comes e calas, ou vais para o olho da rua.
Distópico, né?
Mas é exactamente isto que acontece com um contrato de arrendamento. Tu cumpres a tua parte, pagas a tua renda, mas a casa que estás a pagar já não é a casa que alugaste há uns tempos. Tem humidade, mete água, os canos do vizinho de cima lixam-te o tecto, o isolamento da placa foi de vela. Está a precisar de obras. O senhorio não se chega à frente, e a lei mete-te à frente duas hipóteses: a) Pagas as obras do teu bolso, com acordo do senhorio ou sem acordo se for por motivo de força maior ou b) Podes rescindir contrato.
É isto, parça. Ou comes e calas, ou vais para o olho da rua.
E então tu aguentas, porque não encontras uma casa ao preço a que apanhaste esta há uns anos. E o teu senhorio também não faz as obras, porque assim que te fartares e saíres, ele gasta uns tostões numa renovação mal enjorcada, tapa as rachas com estuque, pinta por cima do bolor e volta a colocá-la no mercado pelo dobro ou o triplo daquilo que tu estás a pagar.
Fim. Epá, isto hoje foi curto. Só que não.
Mas afinal, e o direito à habitação? Aquele que está inscrito no Artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa? A formulação é linda. “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” “ESTÁ NA LEI!”, né? “EU CONHEÇO OS MEUS DIREITOS!”. Acorda, compa. Um direito não existe. Não se colhe nem se fabrica, não se come nem se veste. A classe dominante aceita meter na DUDH e na CRP aquilo que for o suficiente para sossegar as massas no momento da assinatura, mas sem intenção alguma de cumprir seja o que for. Entre a tinta preta em papel branco e o mundo material existe um fosso em que cabem todas as injustiças. Tamo junto? Então vamos voltar à casa:
Há umas décadas os centros das cidades foram erguidos e povoados por uma aristocracia laboral emergente que podia pagar as casas nesses centros, e as periferias foram povoadas por bairros operários em que era mais comum o arrendamento do que a propriedade da casa. Nesses tempos, o arrendamento era superior à habitação própria. Entretanto vieram os anos 90 e a banca convenceu a classe trabalhadora que de o rumo a tomar era a “democratização” da aquisição de casa própria, que provocou a multiplicação da propriedade da terra. Esta realização do direito humano à habitação sujeita a uma lógica neoliberal desmobilizou e desmembrou as lutas colectivas em torno da habitação, de que são exemplo as comissões de moradores, e comprometeu o trabalhador que se tornou proprietário de casa com a financeirização do capitalismo.
A aquisição de casa própria a crédito propiciou a construção desenfreada de moradias isoladas ou geminadas, que nasceram como cogumelos nas periferias, mal servidas de transportes públicos e onde um morador só consegue chegar com viatura própria, foi o sonho europeu da “classe média” urbana, abandonar os prédios urbanos onde começavam a aparecer as famílias pobres e racializadas. O Zé Tuga endividou-se para comprar uma casita, o capitalismo financeiro rejubilou com os créditos à habitação, o capitalismo industrial adorou o boom da construção, assente na exploração de mão de obra imigrante que ainda hoje vive em bairros degradados, e os autarcas ficaram com um brilhozinho nos olhos com todas as licenças de construção que emitiram. Foi um banquete em que toda a gente encheu a tromba, e o prato principal foi a classe trabalhadora.
A partir dos inícios da década de 2000, e concretizada com o Novo Regime de Arrendamento Urbano de 2012 – a tal “Lei Cristas” – entramos numa espiral vertiginosa de financeirização do mercado imobiliário, desprezando completamente os moradores, que não precisa sequer de fingir o respeito pelo “direito à habitação”, em que as casas passaram a ser tratadas, quer por investidores quer pelos poderes central e local não como meios de realização do direito à habitação, mas única e exclusivamente como activos financeiros, com o Estado a apoiar com fundos públicos lógicas de reabilitação urbana e a criar incentivos ao investimento imobiliário por parte de capitais estrangeiros, e autarcas a promoverem os seus concelhos em feiras do turismo e do imobiliário. Como resultado desta viragem, temos nas grandes cidades portuguesas uma vaga de despejos graças à precariedade dos contratos de arrendamento, um análogo da precariedade laboral com os seus contratos a termo. No final do contrato, seja o de trabalho, seja o de arrendamento, cabe à parte forte – o patrão ou o senhorio, capitalistas de estirpes diferentes – decidir se tu vais ou não vais para o olho da rua.
Vamos à parte da seca? Siga.
Como tudo o resto num contexto capitalista, a habitação é uma mercadoria. As casas não são construídas pelo seu valor de uso, mas pelo seu valor de troca. Quando o seu valor de troca se torna superior ao valor que está efectivamente a ser cobrado, surge um “rent gap”, ou diferencial de renda. Aquela mercadoria tem um valor potencial superior ao valor actual, e o capitalista que a possui está a perder um valor hipotético. O valor de uso duma casa diminui com o tempo, porque enquanto bem material, a casa sofre deterioriação. Mas o valor de uso e o valor de troca não estão relacionados, e o valor de troca oscila no tempo consoante ciclos de investimento, desinvestimento e reinvestimento. O capitalismo rentista, o mais parasitário da família, investe (compra/constrói) habitação com o objectivo de retirar lucro da mesma. Colocando a casa no mercado de arrendamento, está a retirar dali uma renda fixa, apesar da casa desvalorizar com o tempo. Durante uns tempos, essa relação é aceitável para o capital. Para reduzir os custos, logo, maximizar os lucros, o capital rentista foge como o diabo da cruz de fazer obras nas casas. Quando a “classe média” – a aristocracia laboral – começou a comprar casa (como vimos mais acima), a maneira de manter essas casas habitadas e a render foi alugá-las a famílias pobres, mais desesperadas por ter um tecto e menos picuinhas com coisas como a humidade, o caruncho ou zonas envolventes degradadas.
Mas assim que o tal diferencial de renda se torna apetecível, ou seja, quando o valor potencial que o senhorio podia estar a ganhar compensa o risco de perder a renda fixa garantida e o custo de renovar a casa e metê-la de novo no mercado, o senhorio age nesse sentido. Não é uma decisão individual nem é um traço de carácter daquele senhorio em particular, é o mercado a funcionar. É por isso que na tua zona o tasco do Manel das Malas onde um gajo comia um cozido bom e barato foi substituído por um restaurante de sushi de fusão cantonês-guatemalteco e é por isso que todos os dias quando sais para trabalhar vês malta em roupa desportiva a passear buldogues franceses. É porque a classe trabalhadora da zona onde moras está a ser substituída pela aristocracia laboral, impregnada até ao tutano da sua subjectividade burguesa, capaz de pagar as rendas exorbitantes que agora se pedem no centro de qualquer cidade. Confia: A quantidade de buldogues franceses na rua tem uma relação directa com o aumento das rendas, e é um bom prenúncio de que estás quase a ser substituído.
A tendência actual é esta. Na grandes cidades já se inverteu a tendência de crescimento da compra de habitação própria que se observava desde os anos 80 e o arrendamento tem subido, correspondendo já a cerca de metade dos agregados familiares nas cidades de Lisboa e Porto. Ao mesmo tempo, a financeirização do imobiliário faz disparar o preço dos novos contratos. A renda média dos novos contratos de arrendamento a nível nacional aumentou 11,5%, com picos, obviamente, nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Na AML e na AMP já é practicamente impossível viver sozinho. Um salário não sustenta uma casa, e mesmo com dois salários é difícil. Em alguns municípios o preço do arrendamento já ronda os 12€ por m2. E todos estes novos contratos são, obviamente, a termo. Assim que chegarem ao fim, estes novos moradores correm o risco de serem também desalojados pelos “nómadas digitais” – um aristocracia laboral globalizada cujo poder aquisitivo supera até mesmo o poder aquisitivo da aristocracia laboral local, limitada pela natureza dependente da burguesia nacional.
Ok. Certo. Então, está tudo a ir pelo cano abaixo, a fossa está quase cheia e se o senhorio não manda cá um canalizador tratar disto estamos perante uma bomba-relógio que não tarda nada rebenta e nos deixa todos cobertos de merda. Já percebemos o problema, e soluções?
Resposta curta – Luta de Classes. Revolução. Ponto Final. Parágrafo.
Resposta longa – Sem a superação do capitalismo enquanto modo de produção, qualquer solução que proponhamos será sempre temporária e dependente da correlação de forças. Mas adiante. Há perspectivas de luta no horizonte. Primeiro, é preciso perceber que a luta de classes não se circunscreve ao ambiente laboral; quando o que está em causa é a propriedade da cidade, também existem classes em conflito, tornando a cidade o palco dessa luta. A organização popular dos moradores em torno do descontentamento e da exploração do capitalismo rentista é essencial, e enquanto propostas a exigir ao poder, é urgente o controlo de rendas, é urgente que se criem entraves ao despejo no final do contrato, que existam penalizações quando um senhorio não cumpre as suas obrigações. É urgente a indexação do preço do metro quadrado ao salário mínimo, caso contrário qualquer ganho material é rapidamente absorvido pelo senhorio. Caso prático: quando as famílias passaram a poupar um balúrdio em passe social graças à introdução do Passe Social Intermodal, essa folga no orçamento familiar foi rapidamente absorvida pelos senhorios das habitações na periferia que de repente se tornou mais acessível. E acima de tudo, é urgente a construção de habitação popular. Não é habitação social, em que um trabalhador tem que fazer prova de pobreza para estar habilitado a ter tecto. É habitação pública, acessível, com renda indexada ao salário.
É exigir que o tal direito humano à habitação seja realizado, e para que ele seja um direito e não um privilégio tem de estar ao alcance de todos, sem condições.
6 Maio, 2022 às
Boa tarde .
O vosso artigo ajuda a esclarecer o problema sempre presente
do direito à habitação .
Obrigado.