Guterres e a Constituição

Nacional

Os “Frente a Frente” das 21h30 na SIC Notícias são frequentemente espectáculos tristes mas pedagógicos e reveladores da pobreza de ideias e de convicções de boa parte dos seus protagonistas. Desconfio que muito do que dizem não é certamente o que pensam, embora pensem que o devem dizer. Outra boa parte do que defendem resulta (só pode…) de pura ignorância ou, pior, consciente vontade de contornar o óbvio através de uma pirueta e meia seguida de mortal encarpado, verdadeiras olímpiadas do contorcionismo político.

No “Frente a Frente” de ontem, o representante do PS – figura ligada à facção derrotada no último contencioso interno dos “socialistas” portugueses – dedicou parte do seu tempo ao elogio de António Guterres, desdobrando um enorme cardápio de qualidades que, no seu entendimento, o colocam como candidato natural (“o melhor candidato d esquerda”, afirmou sem se rir) à presidência da República.

Sentido de Estado, blá-blá-blá, experiência, blá-blá-blá, credibilidade e confiança, blá-blá-blá. A retórica do costume, navegando as águas estagnadas da subjectividade inerente às qualidades enaltecidas. O problema é que o comentador vinculado ao PS avançou para terreno mais sólido, e paradoxalmente menos firme no que à sua argumentação diz respeito, quando afirmou (novamente sem se rir) que Guterres tem “uma noção clara daquilo que é o exercício das funções presidenciais e do respeito pela Constituição”, o que – com o devido respeito – é falso.

António Guterres não foi apenas um mau primeiro-ministro (e um dos motivos centrais da minha adesão à JCP, pouco depois da sua eleição). António Guterres não foi apenas o primeiro-ministro que no essencial terminou a obra cavaquista no que se refere a privatizações (lembram-se de Penedos, secretário de Estado do governo do PS de então, afirmar que abria uma garrafa de champagne por cada empresa privatizada?) e que deu um impulso essencial à privatização camuflada de amplos sectores da nossa economia através da generalização das PPP. Nem foi apenas um líder “socialista” que procurou sempre à sua direita os acordos que lhe facilitaram a governação. Guterres, o homem da “paixão pela educação”, foi também um primeiro-ministro que governou contra Abril e contra a Constituição, aliás revista em 1997 de forma globalmente negativa durante o período do seu primeiro mandato como chefe do governo. O pacote laboral de Guterres/Ferro Rodrigues é disso mesmo um bom exemplo, contendo ideias e princípios que viriam a ser mais tarde concretizados por Bagão Félix e pelos governos seguintes, incluindo o actual.

E para que não se pense que Guterres governou contra a Constituição sem que disso tivesse consciência, ou se diga que são acusações vagas e sem fundamento aquelas que aqui deixo relativamente ao XIII governo constitucional, é bom recordar recentes declarações do seu ministro da educação (a pasta da sua “paixão”) Marçal Grilo. Disse a referida figura, em declarações sobre o aumento das propinas do ensino superior reproduzidas pelo Jornal de Negócios em Fevereiro de 2013, que “obviamente que era inconstitucional. Mas o Tribunal Constitucional, e bem, defendeu o Governo da altura“.

Que boa parte do PS considere Guterres o melhor candidato para as presidenciais que se aproximam é coisa que não me espanta. Guterres posiciona-se, em conformidade com as sucessivas direcções do PS, no canto esquerdo da direita portuguesa, tendo disso mesmo dado abundamentes e inequívocas provas ao longo do seu tempo como primeiro-ministro de Portugal, entre 1995 e 2002. Que fundamentem essa avaliação em proclamações envoltas em mistificações já não me parece contribuir de forma alguma para a “dignificação da política” que tanto advogam.