Na pedra secular do castelo está fixado um quadro que honra Hernán Cortés, conquistador divinamente destacado entre os povos mesoamericanos que o circundam em meia mesura, denunciando o classismo da coisa, afinal matar em nome de deus, da pátria e do rei, era tão legítimo e dignificante como o é hoje em nome do imperialismo, do capital e da urbanidade ocidental. O sol vai-se pousando por detrás das ameias do castelo medieval raiano, purpureando o céu à exacta medida com que as gravatas deslaçam a tempos o frouxo nó da noção, o dia foi longo e ao calor deu-se combate com gelo emagrecendo entre o álcool. As horas prazenteiras despertam com a história de um companheiro, vindo de uma ida aos sanitários, “saiu um dizendo que cheirava a merda e outro afirmou: – huele a comisiones obreras”.
O comentário, porventura, irritou mais do que seria suposto; ainda assim a origem da merda, do seu nauseabundo cheiro e de quem, por fim, se propõe a tratar do assunto é uma analogia de classe bastante reveladora sobre a íntima correlação entre o capitalismo e o fascismo, e a quem compete travar batalha. Se por um lado, no contexto classista da epopeia dos lavabos, o conteúdo fecal fermentado em entranhas franquistas que desavergonhadamente aportam essa responsabilidade a traseiros sindicalizados por ódio de classe, sabendo que serão as classes exploradas a mundificar as latrinas, por outro lado, é também o capitalismo que conjura, nos seus fojos, o fascismo, medida paliativa para evitar a sua implosão, responsabilizando os movimentos de organização popular no crescimento da besta enquanto os tentam destruir.
Existem atributos comuns no actual processo de reorganização fascista no panorama mundial, e em particular no contexto europeu, numa conjugação de um esforço de mobilização internacional de âmbito ideológico entre o capital, as forças políticas de extrema-direita e os sectores mais reaccionários das sociedades europeias.
Os sectores “democratas” e burgueses
O capitalismo impõe um cíclico regime de crises económicas e financeiras para sua própria sustentação de modelo de exploração e lucro, movendo-se dentro das linhas da “democracia” burguesa entre os seus períodos mais degenerantes, para efeito meramente estético é certo, e recorrendo ao seu biológico prolongamento autoritário do fascismo para que não se resvale para a definitiva implosão do sistema nos pontos históricos de reset do ciclo, para manutenir o status quo da sua imposta ordem mundial. À alternância da fisionomia dos projectos políticos capitalistas, conforme imperiosa necessidade, os sectores conservadores das sociedades reorganizam fileiras em seu torno, nunca de facto desaparecendo, cambaleando entre os colarinhos e golas democratas e as garras e dentição vampiresca do fascismo conforme exija o seu deus, o seu rei ou o seu amo. Essa preconização do poder do capital encontra configuração humana, de forma primeira, nos senhores da alta finança que direccionam recursos para os projectos políticos, seja na sua fase de implementação seja na sua cimentação entre os sectores sociais mais conservadores, de acordo com a defesa dos seus interesses económicos e de classe em coadunação com o momento determinado pela realidade geopolítica e geoeconómica. Não é de desconsiderar a conveniente coincidência entre o esvaziamento de peso político das vertentes burguesas, como a social-democracia, a democracia-cristã ou o socialismo dito democrático e/ou liberal, em utilidade do reforço de partidos de índole neofascista, como verificado em diversos pontos da europa e do mundo. Esta auto-infligida desocupação e migração de recursos e foco, faz-se rapidamente acompanhar numa primeira instância pelo sector mais reaccionário das sociedades civis, onde agentes políticos, financeiros, associativos e religiosos, historicamente acostumados a pulular na ténue linha entre a autocracia e a democracia burguesa, para que, independentemente da sua génese protofascista de aparente fisionomia democrata, se possam continuar a mover nos círculos de poder e decisão, que para isso, e, em particular nestes momentos de crise, replicam em vários lugares, em simultâneo, pequenos, ridículos e megalómanos líderes populistas, e respectivas agremiações politizadas, de cariz fascista. Para onde ordena e aponta a prata e o cobre, como leais cães-de-fila do capital e dos seus interesses, se juntam por fim as vagas da pequena burguesia, ora desempenhando o esfaimado papel de se poderem ir substituindo entre si, alternadamente, na posição de opressão e exploração, ora na esparsa fé de que os próprios venham, por direito de fidelidade canina, a configurar-se como agentes privilegiados na acumulação indevida de riqueza.
O atributo comum deste fasces lictoris é o seu ódio visceral ao povo e às suas organizações de vanguarda e aos seus movimentos de classes, pois são estes que idealizam a política que os combate e preconizam o seu fim.
O capital e o quarto poder
Parte indispensável à manutenção do capitalismo é o controlo económico e político dos media. O sequestro da informação é fundamental para estruturação das sociedades capitalistas, que se insere num âmbito mais alargado da estupidificação das massas por parte do capitalismo completamente alheio a qualquer conceito democrático, onde a sonegação premeditada, contínua e transversal da educação e formação política à sociedade civil, a par do enviesamento e manipulação do conteúdo informativo produzido pelos (seus) media constituem forma e corpo do recorrente revisionismo e mentira, em função do seu interesse e objectivo. Será apenas, porventura, uma mais conveniente coincidência, que sejam sempre, e só, as linhas políticas mais conservadoras e reaccionárias a promoverem os ataques aos serviços públicos de informação, acusando de desbaratamento do erário público em órgãos de comunicação estatais, ou ainda outro mais útil acaso, que desses sectores surjam fundados aqui, ali e em todo o lado e ao mesmo tempo, mais e mais e sempre mais, órgãos de comunicação social, todos apregoando o seu altíssimo nível de independência e rigor, não fossem (quase) sempre os rabos de fora de quem os promoveu ou deu origem ou os mantêm. A premissa é bastante simples: de que forma se pode conceber a independência de imprensa, se esta não configura um serviço, mas antes um negócio; acreditar no contrário deste pressuposto é uma infantilidade, independentemente das boas vontades e intenções que a sustentem, uma infantilidade de igual forma. A imensamente badalada liberdade de imprensa ocidental, que como em quase tudo se crê que é coisa de exportar e fielmente repetir o exemplo mundo fora, é a mesma que promove debates unidireccionais, espaços de opinião reaccionários e conservadores, e largas vezes, ou mesmo todas, sem lugar ao contraditório, e é a principal obreira do pensamento político único, uniforme e formatado, acrítico e acéfalo, que deriva da narrativa das organizações e do lóbi que a sustenta. Em paralelo é a mesma que obedece e cala quando os seus mais proeminentes nomes, e verdadeiramente independentes, informam e denunciam e, por isso, são votados ao silenciamento e encarceramento indeterminado no tempo; ou compactuando com a proibição da distribuição de informação, desde que provenientes de outros recantos geopoliticamente colocados noutros campos, ostracizando os seus promotores; ou dedica uma desproporcional atenção mediática aos pequenos salazares, francos ou mussolinis, de trazer por casa, pretensamente espantados pela consequência mediática e crescimento do produto que vendem e exultam, berrando “ele não, ele não“, mas que se revela num “ele sim, ele sim“, encontrando nos intervalos da apologia sempre espaço para afirmar que a culpa é da esquerda, da greve, da pandemia ou da guerra, colocando sempre a responsabilidade por detrás destas os movimentos de base popular, políticos e sindicais.
O atributo comum do conteúdo informativo de financiamento ou controlo capitalista é o seu ódio visceral ao povo e às suas organizações de vanguarda e aos seus movimentos de classes, manietando a opinião pública, artificiando rupturas e divisionismos na classe trabalhadora, que serve os propósitos dos seus senhores de dividir para reinar.
O capital e a guerra
O principal motor económico da ordem mundial imperialista e belicista é a guerra, uma qualquer que sirva e cumpra, seja ela de cariz inter-capitalista, de imposição ideológica ou de regime ou ainda de âmbito colonialista. A barricada alevanta-se com o primeiro tiro ou mentira se houver tempo de a montar e espalhar ao vento antes da contenda, e o pensamento dominante ocidental vende o cenário de conflito numa configuração neandertal: nós bons, os outros maus. Qualquer tentativa de enquadramento histórico e interpretação processual de um determinado conflito é colocado no campo da subversão e oposicionismo aos verdadeiros valores democratas. Valores que comportam em si uma veracidade, tão questionável quanto indefensável, sobre conceitos como a democracia e cultura ocidentais serem passíveis de exportação e implementação em qualquer recanto do planeta, mesmo que à lei da bomba, sem qualquer consideração às aspirações populares sobre os seus próprios métodos e caminhos de progresso e desenvolvimento. Se a democratização à força da bala é o engodo para a legitimação de um determinado esforço de guerra, que cria realidades orwellianas sobre os reais porquês dos conflitos bélicos, a verdade encontra suporte unicamente nos processos (relativamente antigos) de neocolonialismo, que pretendem o controlo económico dos recursos e dos meios de produção dos países sob o jugo do fogo imperialista, e que pelo caminho ainda se forjam governos inorgânicos que escamoteiem e camuflem a mão invisível do mercado ditando a sua política; o ajuste do império colonial ocidental foi tão-somente saber cicatrizar a ferida de ego, de não deixar pelos campos de batalha e morte a bandeira da sacra nação que ali abriu covas e valas, não chamando a si o domínio das terras em forma de toponímia, mas parasitando todas as estruturas de poder dos países invadidos. E, por iniciativa própria, ou em esforços conjuntos, o capital através dos seus estados fetiche, ou os blocos político-militares resultantes desse empenho belicista comum, distribuí caridosamente pelo globo fora os seus ditames e visões uniformizadas de como o mundo deve andar, com ou sem capataz à frente, em todo o lado e desde o início do seu período político hegemónico, onde se destaca que mais de sessenta países tenham sido alvo de incursões militares desde a segunda guerra mundial por parte dos americanos e os seus lacaios.
O atributo comum deste império de guerra é o seu ódio visceral ao povo e às suas organizações de vanguarda e aos seus movimentos de classes, pois são estes que idealizam a política de paz entre os povos e preconizam o fim das organizações criminosas que promovem a guerra.
Reabilitar para reinar
Reabilitar é a palavra de ordem do capital, seja pela via da justificação da intervenção militar, num complexo exercício (mas não novo) de revisionismo histórico, seja pela recuperação (também uma não novidade) de sinistras personagens e do que elas representam. Se, porventura, não houver lugar possível a uma reabilitação integral o caminho do imperialismo empedra-se pela equiparação dos carrascos aos libertadores, tudo valendo. A derrota do nazi-fascismo circunscreveu-se à destruição dos aparelhos de estado, repressor e militar, coisa que não deve ser, e não o é por esta afirmação, diminuída, mas o Dia da Vitória configura não um fim por si só da estrutura ideológica nazi-fascista, combate que prossegue e seguirá prosseguindo até à construção de uma sociedade nova. O capitalismo determina como seu principal inimigo os construtores dessa transformação revolucionária, e é-lhe circunstancialmente indiferente o tipo de regime que lhe dá respaldo desde que caminhe no sentido dos seus interesses, considerando em particular e historicamente, a relevância do fascismo e dos seus proponentes para o cumprimento destes seus desideratos. Após a Segunda Guerra Mundial foram recuperados pelo ocidente, em particular pelos americanos, diversos altos quadros nazis, militares, científicos e políticos, enquadrados em distintas organizações como a NATO, a NASA, a CIA ou o FBI, sobrepondo a meritocracia ao crime ideológico, numa política de recrutamento baseado no get shit done. O processo de recuperação e revisionismo conhece contornos mais alargados, nomeadamente nos processos de legitimação dos resquícios de estados fascistas, nomeadamente Portugal e Espanha, por parte das democracias ditas liberais, que por via da sua incorporação nos blocos político-militares em muito contribuíram para a perpetuação destes regimes e retardaram em outro tanto a luta política e social dos povos subjugados. Em linha com a reabilitação do fascismo, individual e de estado, no reforço de um bloco capitalista em conflito ideológico com os movimentos proletários, o revisionismo foi muleta neste processo, de formatação cultural e histórica em relação ao papel do comunismo no avanço e progresso da humanidade, descaracterizando profundamente a experiência e processo soviético, mas também na desconsideração da centralidade e importância da URSS na derrota do nazismo. Em 1945 a percepção generalizada da população mundial sobre o contributo da União Soviética era a de que esta teria sido a principal responsável pela queda de Hitler, questão que ganhou diferentes contornos e resposta em algumas décadas, por uma insistente e enviesada campanha sobre o papel dos norte americanos no conflito, e, mais recentemente, prosseguida pela equiparação, formal e institucional, entre o comunismo e o nazismo, construção final que foi sendo promovida durante todo o período da denominada Guerra Fria. Se por força e poder de influência dos movimentos populares e unitários, a reabilitação ou o revisionismo não cumprem o seu objectivo de controlo hegemónico, encontrou sempre, o capitalismo, outros mecanismos e ferramentas assassinas de imposição do sistema e regime; orquestrando contra-revoluções, financiando grupos terroristas, patrocinando golpes reaccionários ou promovendo guerras fratricidas, “democracia sim”, mas a deles só, contando o sangue de milhões de mortos em suas mãos, em territórios tão vastos e longínquos desde o “quintal americano” no continente sul-americano, a “democratização” do médio-oriente, o processo de “civilizar” o continente africano, a “pacificação” da europa ou a “libertação” dos povos asiáticos. A lista é infinda, e da mesma forma, que a reabilitação combinou os parâmetros individuais e de estado, o capitalismo no seu processo de hegemonização, o mesmo fez num âmbito de pátria, como também combateu, descredibilizou e assassinou vários dos seus intervenientes de forma individual e calculada, dentro e fora de portas.
O processo não conheceu fim e o ataque ideológico prossegue o seu caminho, com mais ou menos resistência, em todos os campos, do proibicionismo de organização política dos povos em torno dos seus projectos de classe, da validação dos movimentos fascistas e reforço dos partidos políticos fascizantes, da recuperação das figuras nacionalistas identitárias como referências de pretensos processos democráticos, da destruição de referências físicas e intelectuais dos processos históricos de libertação dos povos, da normalização política dos projectos antidemocráticos e das suas simbologias, da renegação da verdade e da história, da instrumentalização do ódio e da promoção das ferramentas de divisão das classes trabalhadoras.
O atributo comum da reabilitação e promoção do fascismo por parte do capital é o seu ódio visceral ao povo e às suas organizações de vanguarda e aos seus movimentos de classes, pois são estes que idealizam a política patriótica, democrática e soberana e preconizam o fim do sistema opressor, colonialista e imperialista.
A diabolização dos movimentos populares e de classe
Em grande parte dos palcos ocidentais, os movimentos populares e de classe deparam-se com cenários altamente desfavoráveis à sua luta, em grande parte devido à impregnação capitalista e ao seu domínio e esfera de influência em todos os estágios do poder. A emancipação dos povos é aparente e encontra-se ainda por concretizar, entre avanços importantes e recuos reaccionários, a conjugação dos esforços capitalistas resulta na grande deriva revisionista e classista dos dias de hoje, com a demonização dos movimentos de organização de raiz popular. A intensidade com que decorre actualmente a campanha de propaganda anticomunista e de ataque ao movimento sindical e associativo de classe, só encontra paralelo em contextos históricos de similaridades incontestáveis com o actual panorama de crise económica do modelo vigente e da falência ideológica de quem o sustenta. Se não é de desconsiderar a enormíssima tarefa com que se confrontam os povos na concretização das suas aspirações colectivas, não é de desconsiderar na mesma medida a vantagem da experiência histórica de processos análogos e o termo de comparação com o modus operandi da classe dominante, que em aperto se congrega em torno dos seus projectos políticos diametralmente opostos aos interesses dos povos e dos trabalhadores, projectos fascistas. O crescimento inorgânico, porém efectivamente tangível, das forças reaccionárias não configuram, de facto, boas notícias, mas são profundamente reveladores da insustentabilidade do capitalismo enquanto promotor da democracia, da liberdade e da paz, pelo que é bastante representativo da imperiosa necessidade de organização e luta, tanto unitária quanto possível. Esse peso do movimento político popular não está, como nunca esteve, dependente de uma pretensa representação e peso eleitoral inserido ou transferido para o sistema democrático burguês e suas instituições, facto, aliás, que os inimigos de classe o reconhecem quando perpetuam os ataques dirigidos ao movimento comunista, de um ponto de vista histórico e actual, ao mesmo tempo que o consideram propositadamente e paradoxalmente “irrelevante e ultrapassado”. A questão é que existe também a consciência de que o comunismo não acabará, assim não acabem as massas trabalhadoras e exploradas; com este ou outro nome, pouco importa, porque o povo, conhecendo agora os trilhos para a sua emancipação e à luz de uma ideologia de carácter científico e prático, saber-se-á sempre organizar em torno das suas aspirações e dos seus ideais, incontornavelmente comunistas, pois é esse o seu projecto de classe.
O capitalismo e o fascismo, faces da mesma moeda, a da exploração e opressão, terão sempre o mesmo inimigo comum: o ideal comunista; porque é essa caracterização invencível e indestrutível, reconhecida pelo poder dominante, a grande força do poder popular e dos seus movimentos.
Afinal por tanto quanto afirmem que a culpa é da condição social ou económica, do soldo do campesino, do proleta ou do operário, da preguiça do explorado, do rendimento “dado” ao pobre miserável ou da organização ou da greve que os pariu a todos, ou de todos que aqueles que tomam o destino nas mãos e de picareta alargam a travessa para que passe todo o mundo sem excepção, há algo em parte que têm razão: de que, sim, aqui cheira a merda, cheira a capitalismo.