Identidade, opressão e luta de classes

Nacional

Depois de, no meu último contributo, me ter debruçado sobre a génese do racismo no seio do capitalismo e o seu papel na subalternização do sujeito racializado, é agora vez de clarificar a posição materialista histórica e dialéctica sobre as opressões de grupos que divergem da identidade natural burguesa – branca, europeia ou euro-descendente, heterossexual e culturalmente judaico-cristã, para finalmente concluir o porquê da opção pela crítica marxista e não pela interseccionalidade para estudar as opressões.

Antes de mais, notas prévias:
1 – Se alguém, identificando-se como comunista (o que é em si mesmo uma patetice, porque ser comunista não é uma identidade mas uma práxis), disser que só as desigualdades económicas são verdadeiras, esse alguém precisa de aprender mais, estudar mais, reflectir mais. Vejamos:
“Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmámos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento económico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstracta, absurda. A situação [Lage] económica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superstrutura [Uberbau] — formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc, formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas — exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas.” – Friedrich Engels, Carta a Joseph Bloch, in “Obras Escolhidas em três tomos”, Editorial Avante!, tomo III, página 547, tradução de José Barata-Moura.

Portanto, aquilo que é dito por comunistas, é que todas as desigualdades radicam na desigualdade de classe, o que não permite hierarquizá-las enquanto desigualdades de primeira e de segunda, mas permite concluir que só eliminando a raiz das desigualdades – o modo de produção capitalista, a sociedade de classes e a propriedade privada – será possível erradicá-las de vez.

2 – “Ser proletário, parece, é uma identidade, certo?” – perguntava há uns tempos a Fernanda Câncio.
Não, errado. A classe define-se com uma base material: uma pessoa que vende a sua força de trabalho pertence à classe trabalhadora – definição simplista e insuficiente, mas que bastará por agora. Classe, enquanto categoria política, define-se na relação com a propriedade e com o poder. O que determina a classe dum sujeito não é o seu sentir, nem a forma como esse sujeito é lido pela sociedade, mas a forma como o sujeito participa no processo produtivo.

E é aqui que a classe se distingue da identidade. A identidade não tem uma natureza material, antes é uma construção social, que assenta na forma como o sujeito se vê e, mais importante do que isso, como é visto pela sociedade, e determina o seu papel nos processos de opressão e exclusão inerentes à sociedade de classes e que determinarão a posição desse sujeito na divisão social (e sexual, racial e internacional) do trabalho. É importante neste ponto dizer que, apesar da incapacidade de reconciliação teórica entre o materialismo histórico e dialéctico e a noção de identidade, isto não invalida as lutas em torno da identidade, entendida enquanto grupo social dentro da classe. E embora alguns possam dizer que as lutas anti-opressão são divisionistas, é importante deixar claro que nenhuma luta anti-opressão divide, a divisão já foi feita à partida pela opressão da classe dominante. As lutas identitárias dos sujeitos com identidades oprimidas, enquanto lutas anti-opressão, devem ter o apoio e participação dos comunistas, principalmente com vista à sua integração numa luta global contra a raiz de todas as opressões, mas também contra o discurso liberal dominante dentro de cada um desses movimentos, que se fica pela luta por igualdade e representatividade, mas não dá o passo adiante rumo à abolição da raiz da opressão.

Feitos estes esclarecimentos, cabe dizer:
Os comunistas não ignoram nem menorizam as diferentes formas de opressão que se abatem sobre diferentes grupos sociais, antes procuram explicá-las através duma ferramenta unificadora – o materialismo histórico e dialéctico – que traz todos os oprimidos à luta pelo fim da opressão de todos, isto é, pelo derrube das condições objectivas que servem de berço e pilar da opressão: a sociedade de classes e o modo de produção capitalista.

Nada disto deve ser novidade. 100 anos antes do surgimento da política identitária dos oprimidos – porque a política identitária dos opressores é tão velha quanto a propriedade privada, embora seja naturalizada e consequentemente ocultada enquanto ideologia da classe dominante – já Engels nos tinha dito que a família é o embrião da propriedade privada, na qual mulher e descendência são administradas enquanto subalternos do homem, que dispõe da sua força de trabalho na extracção de sustento da terra que é sua propriedade.
E aqui temos provavelmente a origem da primeira opressão com base numa identidade – a divisão sexual do trabalho, que incumbe às mulheres, não por sua autodeterminação mas por disposição da classe dominante da sua ideologia, o trabalho reprodutivo: não só gerar descendência, mas cuidar e educar a mesma, transformar o produto da terra em bens de consumo, manter o espaço doméstico limpo, preparar as refeições a tempo, etc. Tudo isto são tarefas necessárias que promovem a saúde e o bem estar da classe trabalhadora, e consequentemente sua produtividade, e representa um custo não contabilizado nem recompensado pela burguesia que explora essa classe trabalhadora.

E apesar de assegurar a continuidade da sociedade, produzir e manter a mão-de-obra, o capital não consegue dele extrair mais-valia de forma directa. É no trabalho reprodutivo que assentam as opressões de cariz sexual: não só das mulheres, mas de todos os sujeitos não-cisheteronormativos, porque a sua fuga ao papel que a ideologia da família lhes impõe compromete a família tradicional enquanto nexo do trabalho reprodutivo e consequente geração e manutenção de mão de obra, do qual o capital precisa como de pão para a boca.

A emancipação da mulher e a sua participação no processo produtivo de forma massiva também corresponderam no ocidente a uma necessidade do capital: Os homens foram para duas guerras mundiais matar e morrer que nem tordos, e dum momento para o outro existiam imensos postos de trabalho desocupados, o que significou um imenso prejuízo para a classe dominante. E portanto, a mulher foi progressivamente apartada do processo reprodutivo para ser inserida no processo produtivo, mas a opressão que nasceu na família tradicional não se esbateu, manteve-se viva porque continua a ser necessária para coagir as mulheres a desempenhar o trabalho reprodutivo, resultando numa maior carga laboral diária.

Mas então, porquê optar pela crítica marxista das opressões, em vez da teoria identitária e interseccional? Primeiro, porque a conversão da identidade em política se operou muito antes no seio da burguesia e na naturalização da identidade burguesa, e como tal está, enquanto ferramenta, sujeita aos propósitos da classe dominante. Depois, porque ao considerar as identidades como categorias estanques que se somam num sujeito, falha em compreender que essa soma não é possível, que ninguém é (por exemplo) mulher+negra+homossexual, mas sim mulher, e negra, e homossexual, num processo dialéctico que não pode ser dividido nos seus componentes. Por último, porque as próprias categorias a que chamamos identidades são construções abstractas forjadas pela cultura dominante como forma de dividir os explorados. É ao projectar essas construções sobre a classe trabalhadora que elas adquirem materialidade. Um trabalhador pode então ver projectadas sobre si uma ou mais dessas identidades, mas essas identidades nunca se projectam sobre a classe dominante. A burguesia não se divide por raça, sexo ou orientação sexual, não são esses os eixos de divisão nos conflitos inter-burgueses. Ainda que numa análise superficial, possamos identificar tendências anti-racistas ou anti-sexistas no seio da burguesia liberal, essa opção tem uma natureza estritamente económica: por não ser vítima da alienação da sua própria cultura, a burguesia toma decisões com base nos seus interesses materiais, isto é, consoante o que for melhor para a apropriação privada da riqueza socialmente produzida. A título de exemplo, por vezes o melhor para essa apropriação é ser favorável à imigração, mas subjugando essa imigração às necessidades de mão de obra do capital nacional.

Daí que, para um marxista, empregar essas categorias numa matriz interseccional seja insuficiente. Peca por ser essencialista, individualista e a-histórica. Só uma análise histórica e dialéctica pode servir para compreender as diversas formas de opressão que se abatem sobre os explorados, de onde nasceram, porque é que se perpetuam, quem as promove e a quem servem essas formas de opressão.

Compreender o processo histórico que hierarquiza e subalterniza sujeitos na divisão social, sexual, racial e internacional do trabalho é fundamental para um feminismo de classe, um anti-racismo de classe, um anti-sexismo de classe, revolucionários, com vista à abolição desta subalternização.

17 Comments

  • RenataM

    24 Agosto, 2020 às

    Este comentário foi removido pelo autor.

  • RenataM

    23 Agosto, 2020 às

    Como uma (mais ou menos) recente Comunista assumida, aprecio muito os teus textos e muitas vezes tenho vontade de os discutir. Neste caso, ficou-me particularmente este aspecto:

    "falha em compreender que essa soma não é possível, que ninguém é (por exemplo) mulher+negra+homossexual, mas sim mulher, e negra, e homossexual, num processo dialéctico que não pode ser dividido nos seus componentes."

    Recentemente vi a série da BBC "Mrs. America" que demonstra muito bem as dificuldades de lutar pelos direitos de igualdade, neste cado, das mulheres por entre as separações de raça, sexualidade, classe e ideais políticos. É muito claro que, ao mesmo tempo que as mulheres existem como grupo oprimido em relação aos homens, não existe, como tu dizes no texto, um conceito de mulher separado das outras componentes, e isso enfraquece a luta. Os movimentos de libertação e igualdade dos negros nos EUA demonstram exactamente o mesmo. A luta de classes é, sem dúvida, muito mais unificadora porque o mundo divide-se mais claramente entre opressores e oprimidos (e os processos económicos estão na base dessa divisão). No entanto, estes movimentos feministas e anti-racistas foram importantes e sem dúvida trouxeram mudanças muito positivas para os grupos envolvidos e para a sociedade em geral. Nesse contexto, qual deve ser a posição Comunista em relação aos vários movimentos de luta à nossa volta neste momento e como é que a luta Comunista lida com o facto de que ninguém é mulher+negra+homosexual+trabalhadora mas sim mulher, e negra, e homossexual, e trabalhadora (porque a luta de classes deveria ser mais unificadora mas ao mesmo tempo é inegável que todos os processos revolucionários à data continuam a privilegiar os grupos dominantes, e.g. homens/heterossexuais/brancos)? Mais concretamente, apercebo-me por exemplo de que não é muito aceite as mulheres Comunistas dizerem-se feministas (“porque o mundo não se divide entre homens e mulheres, mas entre classes”) e eu questiono-me se essa abordagem não deve ser debatida e o feminismo Marxista fazer mais parte dos nossos discursos?
    Abraço solidário.

    • Jose

      23 Agosto, 2020 às

      Problemática muito complexa que em final acaba em feminismo, uma pretensa classe nova que, como qualquer outra, ambiciona uma maior fatia de poder invocando o sexismo que censura no sexo oposto.
      Ora o sexismo está muito arruinado, não só pela constante diversificação de variantes, como pela inadequada adaptação biológica que atrapalhando o muito legítimo direito ao orgasmo, o mantem nos machos com uma clara e muito chocante vantagem, só minorada por muito menor capacidade de exercerem a mais antiga das profissões.
      Assim, recomenda-se que adira a uma das classes tradicionalmente incontroversas: a classe dos opressores que se define pelo facto unificador de não pertença à classe do assalariados-sem-mais.
      Para o caso de essa justa luta acabar com uma sociedade sem classes (Solha dixit), à cautela, vá-se posicionado do lado dos dirigentes, que os dirigidos poderão não ter grande futuro.

    • Nunes

      25 Agosto, 2020 às

      Uma vez mais, não se percebe nada do que o «Jose Mental» escreve.
      Escreve para si próprio, pobrezinho.

    • RenataM

      25 Agosto, 2020 às

      Acho que o José se devia informar melhor sobre orgasmos femininos, nessa frente não tenho queixa nenhuma e agradeço muito à adaptação biológica a parte que me calhou.

    • Jose

      25 Agosto, 2020 às

      Felicidade sua, com a qual me congratulo.
      Isso não altera que seja suposto que o orgasmo feminino sucede ao caminhar erectus, o que é atraso evolutivo significativo.

    • Nunes

      25 Agosto, 2020 às

      A caminhar «erectus», Jose? Ó Jose, o que foste tu fazer?

    • Jose

      26 Agosto, 2020 às

      Nunes, tem fé!
      A ignorância não é um mal irremediável… experimenta o google.

    • Nunes

      26 Agosto, 2020 às

      E tu, já experimentaste um tiro nos cornos?

    • RenataM

      11 Setembro, 2020 às

      Este comentário foi removido pelo autor.

    • RenataM

      11 Setembro, 2020 às

      Caro Jose, com a devida demora porque a Festa do Avante chamou mais alto, aqui fica uma reflexão na continuação da nossa interessante conversa (e na tentativa de canalizar a energia crítica que o Jose mostra em quase todos os posts deste blog para algo um bocadinho mais produtivo).

      Portanto, orgasmos e sarcasmos à parte, o sexo masculine teve (e tem) vantagem física e isso é claramente relevante na análise da sociedade patriarcal e sexista que temos hoje. O capitalismo não inventou o sexismo, simplesmente serviu-se e apropriou-se dele. E fê-lo de tal forma que não haja dúvidas que é absolutamente impossível sonhar com uma sociedade capitalista com igualdade de géneros. Mesmo onde esse sonho se aproxima mais da realidade, como no caso dos países Nórdicos, em último caso as mudanças positivas estão mais à superfície do inicialmente parecem e muitos dos mesmos problemas partilhados pelas mulheres por todo o mundo

      Os contornos e origens do racismo são bastante diferentes daqueles do sexismo mas também é certo que o capitalismo não inventou o conceito de escravatura, uma vez mais usou-se dele. E neste caso os dois estão provavelmente ainda mais interligados do que a questão do género (nos EUA é impossível desligar a escravatura com o desenvolvimento capitalista).

      Lutar contra o sexismo, contra o racismo, ou, já agora, contra a destruição do ambiente sem questionar o sistema capitalista é, em ultimo caso, uma luta perdida (como disse Chico Mendes: “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, e poderíamos dizer, embora não tão eloquentemente, que anti-racismo sem luta de classes é camaradagem ou que igualdade de géneros sem luta de classes é um jantar à luz de velas – a única coisa que muda é o nosso “jardim” e por muito positivo que isso seja, não é suficiente). No entanto, o se sente às vezes entre comunistas é um colocar destes assuntos num patamar que lhes tira o devido significado e pode alienar quem os enfrenta mais agudamente. Eu creio que não basta dizer que somos comunistas porque a luta de classes está na base dos problemas e com isso quer imediatamente dizer que somos anti-racistas, feministas ou ambientalistas, creio que como comunistas devemos ser activamente anti-racistas, feministas, ambientalistas e por todas as outras causas e lutas de igualdade, justiça e dignidade. Como exemplo, deixo aqui uma recente entrevista muito interessante do recém camarada Caetano Veloso ao jovem comunista Jones Manoel, em que, mais ou menos nos 5 minutos finais, Caetano explica com algum detalhe algumas das reservas que teve na vida em relação ao comunismo por achar que este considerava as questões raciais um problema de segunda classe: https://www.youtube.com/watch?v=afrQvy2Y7Is.

  • Jose

    16 Agosto, 2020 às

    Ó Solha, estás pouco confiante!

    • Maria

      22 Agosto, 2020 às

      Palhaço.

  • Jose

    15 Agosto, 2020 às

    Com «o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogma» não se formam identidades, mas praxis?

    • Maria

      22 Agosto, 2020 às

      Um…

  • Jose

    15 Agosto, 2020 às

    «ser comunista não é uma identidade mas uma práxis»

    Fiquei chocado!
    Então já não se pode falar da superioridade moral dos comunistas?

    • Maria

      22 Agosto, 2020 às

      És…

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