A corrupção em Portugal não acontece porque há alguns vígaros que prevaricam; existe e prospera porque há gente que se apropriou indevidamente da democracia e do Estado
Uma das pessoas mais fantásticas que conheci foi a minha tia-avó. Foi expulsa do ensino pelo regime salazarista. Trabalhou para a Organização Mundial de Saúde (OMS) um pouco por todo o mundo. Há duas histórias que ela contava a que vou fazer apelo nesta crónica. Falam de coisas diferentes, mas podem ter uma relação mais profunda do que parece à partida.
A minha tia estudou nos Estados Unidos no tempo do McCartismo. Vivia-se em plena guerra fria, as autoridades de Washington imaginavam comunistas em cima de todas as árvores a destruírem o “modo de vida americano”. Vários realizadores, jornalistas, actores, professores e intelectuais foram expulsos da sua profissão devido a alegadas simpatias pelo comunismo. Na universidade os alunos temiam ser prejudicados por causa das suas ideias políticas. Numa das aulas um professor deu aos estudantes um teste para determinar a sua posição no eixo esquerda-direita. Era uma auto-avaliação, os professores não tinham acesso a ela. A minha tia e um outro português preencheram descontraidamente e deu “de extrema-esquerda”. Já o americano que estava ao lado, com medo de represálias, respondeu a tudo “não sei”: deu da “direita liberal”.
Segunda história. Durante o seu trabalho, a minha parente viveu no Irão do xá. Dava aulas de Enfermagem na universidade e trabalhava para a OMS. Na universidade, a omnipresente polícia política, Savak, fazia desaparecer qualquer estudante vagamente opositor. No entanto, a vida económica pretendia reger-se por padrões do “mercado livre” de uma forma cinicamente transparente. Um dia a minha tia foi ao banco trocar dólares pela moeda local e a pessoa do guichet quase se recusou a fazer-lhe o câmbio e apontava reiteradamente para um senhor que tinha uma mesinha junto ao banco e que fazia as trocas de divisas do mercado negro. Num regime despótico, desigual e de mercado, como a ditadura do xá, o mercado negro fazia parte do sistema. Era uma componente importante do que permitia a manutenção do estado das coisas.
Temos normalmente a ideia que a corrupção é um desvio do sistema, algo que é um caso de polícia e não de política. Mas isso é na maioria das vezes falso. Os casos de corrupção reiterada a que assistimos em Portugal, os das falências fraudulentas dos bancos, os dos contratos desastrosos que o Estado fez das PPP, os do tráfico de influências potenciados pela circulação directa dos políticos entre ministérios e altos cargos nos grupos financeiros, as tramóias nos vistos gold, a contratação de escritórios que preparam simultaneamente as privatizações para o Estado e para os tipos que vão comprar as empresas por tuta-e-meia, não se devem a termos em cada esquina um Vale e Azevedo, mas a termos um regime de poder político em que um grupo social se apoderou dos bens públicos e do Estado em seu benefício.
Não é preciso ser particularmente revolucionário para perceber que a corrupção é um dado permanente deste regime que expulsou o povo da democracia. Como escrevia o historiador social-democrata Tony Judt: “A desigualdade é corrosiva. Apodrece as sociedades a partir de dentro.” E isto liga-se à primeira história. Num país cada vez mais injusto do ponto de vista económico, político, social, o que se pede não é que se diga “não sei”, mas que as pessoas sejam capazes de mostrar que não querem mais esta situação. Aquilo que sustenta os corruptos é o nosso silêncio e a nossa incapacidade de imaginar uma solução radicalmente diferente da rotatividade contentinha que temos vivido nos últimos 40 anos entre os mesmos grupos de interesses.
Texto publicado no Jornal I
* Autor Convidado
Nuno Ramos de Almeida