Isto é tudo uma grande média

Nacional

Grande parte do que havia a ser dito sobre impostos e classe média já foi dito aqui e aqui. A vantagem do sistema capitalista, sem ironias, é a capacidade evidente que possui para se manter exactamente igual enquanto se anuncia a sua modernização, a sua adequação às necessidades e anseios das populações. A enorme dificuldade em tipificar a classe média é uma grande vantagem do sistema dominante. A impossibilidade de sabermos se a classe média, se o é, é-o através do rendimento mensal, da forma como é obtido esse rendimento, do rendimento mobiliário e imobiliário. Ninguém sabe. E isso é óptimo, porque qualquer um pode ser classe média, desde que olhe para um lado e veja alguém mais pobre; para outro e veja alguém mais rico.

Esta dinâmica capitalista dá a ilusão de que não há classes, mas apenas uma classe. Uma enorme classe média que varia de indivíduo para indivíduo consoante a sua percepção da realidade. Talvez por isso, alguns que se afirmam marxistas consigam conceber que há um paralelo entre capitalismo e marxismo e que é possível, humanizando o primeiro, chegar ao segundo. Só que, lá está, a ausência de uma percepção individual de classe não é a ausência de classes.

Atendendo à polémica absurda da semana passada, em torno da tributação dos imóveis de um valor não se sabe bem quanto, que, a verificar-se, seria um ataque à classe média, creio que há dois pontos a reter. Primeiro, a excitação do Bloco no que respeita ao anúncio de medidas do Governo para marcar a agenda, sem que estas estejam fechadas, devidamente fundamentadas e explicadas. O Bloco consegue o que quer, que é o espaço mediático, mas acaba por permitir que a contra-informação ganhe terreno. As reacções da classe dominante – média e media? – a uma medida são imediatas, perante a informação de que dispõem. Sobra o tempo para o desmentido, que nunca será o mesmo dado a comentadores, especialistas, proprietários e partes interessadas na manipulação da informação. É um método do Bloco que só ao Bloco diz respeito. A cada um, cabe avaliar se será o mais benéfico para todos.

Há uns dias, Joe Biden teve a seguinte afirmação, que escrevi num post-it: “Quando a classe média está bem, os ricos estão muito bem e os pobres têm esperança”. E aqui entra o segundo ponto. As redes sociais encheram-se de comentários mimetizados do José Gomes Ferreira, para quem é fácil uma família ter um património mobiliário no valor de 500.000 euros. Li, por acaso, vários comentários na página “As Minhas Insónias em Carvão“, onde era afirmado, e cito: “Basicamente se casado e fores filho único de Lisboa, casares com uma filha única e comprares um apartamento mal amanhado por volta dos 200 mil euros e herdares casa próprias dos teus pais e sogros um dia mais tarde chegas na boa a esses 500 mil euros”. Fiquei por aqui. Se numa página de humor os comentários já estavam neste ponto, imagino o que estariam a ser outras caixas de comentários de jornais, rádios e tv.

Daqui se prova que a classe média, ou aquilo a que os media chamam classe média, é, nem mais nem menos, composta por pessoas que não têm noção da sua condição de classe, acreditam que a sua condição de proletário, que nada tem para além da sua força de trabalho, é um estado temporário até ao dia em que o sistema lhe proporcionará a riqueza que o faz desejar, todos os dias, a riqueza dos 1%, que são os mesmos que controlam o sistema. E assim se fecha o círculo.

Em Portugal, os 10% mais pobres tiveram uma quebra de rendimentos de 25% entre 2009 e 2014, ao passo que a classe média e os mais ricos terão perdido entre 12 a 13%. É este o ponto em que nos encontramos. Os mais pobres são a classe média quando se comparam com o vizinho que tem menos. Lá está a esperança de que falava Joe Biden. É o que sobra. A classe mais rica e que detém os meios de produção, os media e os spin do comentário e da opinião, apenas precisa de continuar a fazer crer que é, ela própria, classe média. E que qualquer pessoa que trabalhe muito chegará, um dia, a esse patamar, defendendo aqueles que o oprimem.

É por isso urgente incutir consciência de classe, explicar os como e os porquê, sem a procura constante pelos holofotes. É que até os holofotes só são favoráveis enquanto forem úteis e favoráveis ao sistema.