Enquanto escuto a mexicana Amparo Ochoa, recordo o entusiasmo sincero de uns e oportunista de outros quando os índios zapatistas se levantaram em armas em Chiapas. Foi a 1 de Janeiro de 1994 e, desde então, não mais cessou a romaria política àquela região da América do Norte. Os mesmos que alimentavam o eurocomunismo e abriam as portas à União Europeia desfaziam-se em simpatias por aqueles rebeldes que subcomandados por Marcos se sublevaram no mesmo dia em que entrava em vigor o Tratado de Livre Comércio entre o México, os Estados Unidos e o Canadá.
Os netos de Emiliano Zapata revoltavam-se contra as imposições do Estado mexicano à realidade própria dos indígenas, rejeitavam a submissão económica aos sempre suspeitos vizinhos do norte e exigiam uma democracia participativa. Caminhavam em sentido contrário àqueles que do outro lado do Atlântico pouca ou nenhuma oposição levantavam à construção de uma Europa submetida ao directório político e económico das grandes potências. Já então boa parte da esquerda europeísta estava contaminada por Malinche.
Maldición de Malinche
Em 1519, um dos líderes indígenas oferece vinte escravas, algumas peças em ouro e um conjunto de tecidos ao espanhol Cortés. Uma das escravas, Malinche, tornou-se numa peça importante na ocupação do México. Para além de intérprete, ajudou os espanhóis a obter informações sobre os costumes sociais e os hábitos militares dos nativos. Terá também realizado tarefas de inteligência a favor dos colonizadores. A canção eternizada por Amparo Ochoa, Maldición de Malinche, fala dos que em pleno século XX humilham o nativo e abrem os braços ao estrangeiro.
Hoy en pleno siglo 20/ nos siguen llegando rubios/ y les abrimos la casa/ y los llamamos amigos. Pero si llega cansado/ un indio de andar la sierra/ lo humillamos y lo vemos/ como extraño por su tierra. Tu/ hipócrita que te muestras/ humilde ante el extranjero/ pero te vuelves soberbio/ con tus hermanos del pueblo. Oh/ maldición de malinche/ enfermedad del presente/ cuando dejaras mi tierra/ cuando harás libre a mi gente.
A esquerda europeísta
Em nome de um suposto internacionalismo, há quem cuspa que os que lutam contra a União Europeia e o euro não estão mais do que contaminados pela deriva nacionalista e que partilham, ainda que não saibam, o mesmo trilho que a extrema-direita eurocéptica. Estes, que se atrevem, em muitos casos, a pôr em causa a luta anti-imperialista de outros povos, como por exemplo, o papel de Hugo Chávez na construção de uma alternativa política na América Latina, não fazem mais do que reforçar o projecto das grandes potências capitalistas. Defender a União Europeia não é mais do que defender um instrumento que não teve e não tem outro objectivo que o de garantir e reforçar o poder político e económico das oligarquias do norte da Europa.
Não se trata aqui de defender uma guerra entre o norte e o sul. Trata-se de defender a luta dos trabalhadores de cada país pela defesa da sua soberania económica e política. Os destinos dos que trabalham em Portugal devem ser determinados por eles próprios. Não devem ser determinados pela burguesia portuguesa e muito menos pela alemã. Também os destinos dos que trabalham na Alemanha devem ser determinados por eles próprios. Senão for assim continuaremos a ser colonizados por uma estrutura que tem sido o eixo central da desgraça que nos acompanha há três décadas.
Há gente que diz: pois, bem, então, que se juntem os povos e que tomem o poder na União Europeia. Esta é a perspectiva clássica dos que acham que enquanto não estivermos todos em condições de fazer a revolução e de conquistar o socialismo devemos esperar. Ou seja, devem esperar por um conjunto de condições que muito dificilmente se darão simultâneamente entre tantos povos com características, histórias, condições objectivas e subjectivas, em cada momento, distintos. Os sábios europeístas acham que só quando todos marcharmos juntos é que podemos partir para a revolução, mesmo que alguns já as venham a ter antes de outros e mesmo que esses acabem por perder a oportunidade de pôr fim à miséria só porque outros não o puderam fazer ao mesmo tempo.
Estes são os que idolatram tudo o que vem de fora. Rejeitam soluções nacionais em nome de um continente sem fronteiras ao mesmo tempo que submetem cada povo a uma lógica supranacional de luta que parte do topo para a base. É esta a maldição de Malinche de um género que se diz de esquerda e que se sente superior em relação aos trabalhadores e aos povos. Que pertence às ideias mais em voga na esquerda moderna europeia – tão velhas como o eurocomunismo – e que esquece que está colonizado por correntes políticas que são alimentadas e toleradas pela ideologia dominante. A ingenuidade tem limites e da mesma forma que as fronteiras da União Europeia não foram derrubadas para beneficiar os trabalhadores também a luta pela libertação económica e política de cada povo não serve os interesses do capital.
Durante a longa noite fascista, havia quem entendesse que Portugal só se libertaria do jugo salazarista depois da queda do franquismo. Ficava nas mãos dos povos oprimidos por Franco o destino do povo português. Não foi assim. Também agora, devemos criar as condições para que os trabalhadores assumam nas suas mãos as rédeas do futuro. Independentemente da fundamental solidariedade entre quem trabalha em diferentes países, a batalha, em cada sítio, pela derrota do projecto capitalista europeu é a melhor forma de ajudar a luta de outros povos. Os trabalhadores alemães terão tudo a ganhar com a vitória dos trabalhadores portugueses.