De precários a flexíveis

Nacional

Manda o beneficio da dúvida esperar de um novo executivo a vontade de resolver os problemas da sociedade. Sem por isso cair na ingenuidade é bom ouvir que a missão do novo ministro da Ciência é unir para reforçar em vez de dividir para reinar. Mesmo que só palavras é uma atitude bem diferente de uma comunidade que nos últimos quatro anos se habituou, sem se conformar, a ouvir que estava de má fé cada vez que se insurgia contra políticas públicas de destruição do Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN).

O actual sistema científico assenta numa lógica de precariedade alargada que atinge a maioria dos seus recursos humanos. Os seus principais integrantes são um exército de investigadores que trabalham sob uma lei única e original denominada de Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI). Contabilizados como trabalhadores para todas as estatísticas e indicadores de potencial e avaliação da ciência em Portugal são mantidos por um contrato de bolsa que não salvaguarda a maioria dos direitos de qualquer outro trabalhador. O uso das bolsas deflagrou de tal forma que existem já inúmeros casos de necessidades permanentes nas instituições resolvidas com recurso a estes contratos. Entre os mais famosos a contratação de jardineiros, pedreiros e electricistas.

O trabalho de investigação científica é de extrema importância para uma sociedade que se quer desenvolvida, importância esta que é reconhecida pela população em geral, que mesmo continuando com níveis de formação académica abaixo da média europeia não desarma na luta por um país mais desenvolvido. O SCTN com a sua capacidade única de modernização económica presta ainda o papel de divulgação do conhecimento, instrumento essencial para o progresso social rumo a uma sociedade mais justa. Este trabalho requer uma qualificação extremamente exigente de uma camada significativa da população em todas as áreas do conhecimento, com uma forte incidência nos campos onde se define um interesse estratégico nacional intimamente ligado ao sector produtivo e à boa exploração dos recursos nacionais. A necessidade destes recursos é um imperativo nacional e é este o facto que leva ao investimento de recursos na sua formação e na constituição de um SCTN capaz e orientado para as necessidades do povo.

O SCTN é ainda um poderoso instrumento de distribuição de riqueza, principalmente na sua vertente geográfica, com a capacidade de gerar desenvolvimento fora das áreas que hoje são naturalmente populadas criando potencial de fixação humana e de infraestruturas onde o investimento privado não existe nem existirá sem o público.

Os trabalhadores do SCTN são assim vitais para um país mais justo e desenvolvido e a sua formação uma necessidade pública assumida que requer investimento em quantidade e qualidade. A sua integração nas carreiras de docência e investigação nos vários organismos públicos, como as universidades e Laboratórios de Estado é essencial para a dignificação do trabalho de produção científica, de forma a que traga estabilidade à vida das pessoas e estabilidade ao próprio sistema.

Quem estivesse, não há muito tempo, no salão nobre do IST por motivo da apresentação de uma proposta de flexibilização da carreira de investigador (pela ANICT) ficaria a saber que na sala cheia (200 pessoas?) de investigadores de carreira, docentes, investigadores bolseiros, investigadores FCT e outros ninguém se pronunciou favorável ao ataque à carreira com a desculpa que tornaria mais fácil a renovação dos quadros. Os vários investigadores mostraram-se bem cientes que as carreiras que existem são suficientes e recomendam-se, apontando o dedo à falta de vontade política para que se invista no STCN. Apontaram as cada vez maiores restrições à contratação pública e aos orçamentos sempre decrescentes das Universidades e Laboratórios de Estado. Lembraram que atentar contra a carreira de investigador e torna-la precária (o ministro prefere flexível) seria precarizar a de docência também, pois alberga profissionais com níveis e competências académicas idênticas. Recusam-se também ao nivelamento pelo menor denominador comum, exigindo emprego de qualidade. Mostraram que o confronto geracional ou entre investigadores de carreira e precários não existe, e que todos alinham para políticas de emprego sérias que tragam estabilidade e dignidade ao trabalhador em ciência.

Tenho pena que o actual ministro tenha perdido este debate feito na sua casa. Saberia que escolhe um caminho que em pouco difere do anterior executivo a quem empresta agora palavras serenas.

* Autor Convidado
Tiago Domingues