Morte, a Santa Redentora

Nacional

A inevitabilidade da circunstância não determina o Homem e a sua natureza, – se assim fosse, o mundo seria um lugar bem pior, pela fatalidade aparente da exploração. O Homem salva-se da sua própria circunstância por determinações de consciência e de consciencialização de classe, o Homem perpetua-se pelos seus posicionamentos e opções políticas, pelos caminhos que decide trilhar e pelas escolhas que, de forma livre, decide tomar. Independentemente do quanto se possa dobrar a narrativa, a verdade é o cru e duro reflexo, mas, sempre justo, da realidade e do passado; para o bem ou para o mal, os homens e as mulheres são a sua história e a memória dos seus actos.

A obrigação moral que nos impele, aos justos, a assumir um compromisso com a verdade, é-lhe reconhecer o seu papel transformador, o seu papel revolucionário. Esse compromisso com a verdade não é somente um dever moral: é a ferramenta indispensável e insubstituível à construção da democracia e da liberdade. Assim, não há exultação na morte, o que existe é a necessidade de, por um lado, não deixar esquecer outras mortes e honrar outras vidas encarceradas e torturadas em nome da ditadura e pela ditadura e, por outro, prosseguir o combate ao revisionismo histórico do fascismo português.

A Morte reclama a si a excepcionalidade blasfema de perdoar pecados e lavar retratos, mas há nódoas que não se limpam, nem almas que se purificam por nuances ou traços benevolentes circunstanciais ou, menos ainda, por intelectualidades maiores. Não é só sobre o que somos, é sobretudo sobre o que fazemos e o que defendemos, sobre a consequência das nossas decisões na vida dos outros, na vida de todos e a questão é que existem decisões que não são “erros” – são crimes.

Adriano Moreira morreu e não é, uma vez mais, sobre a sua ausência que se torna imperioso, como outras vezes mais, desmistificar o homem, o político e o fascista, como é também necessário dar cobro a um luto aparentemente transversal ao cenário político-partidário – com excepção do Partido Comunista Português -, que assenta à direita num saudosismo conservador e à esquerda numa encenação infantil tão necessária à manutenção do status quo da democracia burguesa e liberal, imposta pelos seus autodenominados senadores. Afirma-se muitas vezes que o homem ou a mulher não se separam da sua obra, então, e assim sendo, porque se haveria de desvincular os trajectos fascistas dos dirigentes do estado novo?

Adriano Moreira foi subsecretário de estado, primeiro, e ministro do ultramar, depois, durante o longo reinado de Salazar, chamado ao governo pelo gabarito da sua craveira intelectual, instado a desenvolver e aplicar a quase-teoria do luso-tropicalismo que encontrava nele próprio, Adriano Moreira, grande defensor. Durante a sua vigília da tutela ultramarina dá-se início à Guerra Colonial e, por decreto seu e do seu ministério reabre-se o Campo de Concentração do Tarrafal, rebaptizado pelo mesmo decreto como o Campo de Trabalho de Chão Bom, que campos de concentração já não faziam boa figura no que à nomenclatura dizia respeito, pese embora a nazificação da coisa com a palavra ‘trabalho’ associada ao encarceramento e à punição. Os seus prisioneiros preferiam outros termos: “Campo da Morte Lenta”; “Aldeia da Morte”; “O Pântano da Morte” ou “O Inferno Amarelo”.

Entre 1936 e 1954, conhecida como a primeira fase do Tarrafal, passaram 340 antifascistas, 34 não sobreviveram. Na segunda fase de 1961 a 1974, o Campo de Trabalho do Chão Bom, reaberto por Adriano Moreira, foi cárcere imposto a 226 líderes dos movimentos de libertação dos povos africanos sob o jugo colonialista e fascista português, foram mortos três. O Tarrafal não era, afinal, uma simples prisão fascista, mas sim um antro de tortura e desumanização, promovido pelo Estado Novo, nele eram sujeitos à “frigideira” grande parte dos seus forçados hóspedes que, privados de água e luz, estavam sujeitos a temperaturas que rondavam os 55º celsius. Adriano Moreira não era, não foi, um mero espectador do regime que, por eventual inacção, seria cúmplice moral de Salazar; Adriano Moreira foi um convicto fascista e actor preponderante do estado novo e das suas piores políticas.

Domingos Abrantes, ex-preso político e antigo conselheiro de estado, coincidiu com Adriano Moreira no Conselho de Estado e respondeu à questão levantada sobre a ironia desse convívio político da seguinte forma: “O Portugal democrático tem várias ironias, e uma delas é a reciclagem de fascistas”. Outra ironia é que a forçada reciclagem do fascismo e dos seus fascistas ouse afirmar que pode ter sido a falta de escolha que impeliu Adriano Moreira a aceitar o convite de Salazar, que se este chamava ter-se-ia de acorrer ao apelo. Domingos Abrantes passou onze anos em cadeias fascistas, foi torturado, humilhado e privado da sua vida; a prisão de Domingos Abrantes é contemporânea do momento ministerial de Adriano Moreira, como foi a prisão de outros tantos homens e mulheres antifascistas. É, portanto, fácil perspectivar se o povo oprimido e desprovido encontrou escolha (e dignidade) na resistência e luta ao fascismo, também seriam capazes do mesmo os algozes intelectuais daquele país cinzento.

Ou seriam mesmo fascistas?

Adriano Moreira não é caso único nesta alquimia distópica, de que tudo que é tocado pela democracia liberal pós 25 de Novembro se transforma miraculosamente em distinto democrata. José Hermano Saraiva, contador de histórias mais ou menos verosímeis, dependendo do momento e do tempo que a verdade também não era coisa que lhe fosse cara, sentiu esse efeito da recauchutagem burguesa e desceu também sobre ele a padroeira dos mortos que, entre outras tantas coisas, garante à sua chegada que todos foram bons em vida. Entre outros distintos cargos na Mocidade Portuguesa, na Câmara de Lisboa ou na Assembleia Nacional, Hermano Saraiva foi Ministro da Educação do regime fascista, onde nos tempos conturbados de agitamento estudantil na crise académica de Coimbra ordenou uma “democrática” carga policial sobre os estudantes, mandando-se prender muitos e enviando para a guerra colonial outros tantos. A crise alargou-se a outras academias e a persecução a docentes, não alinhados e solidários com os estudantes, teve também o seu alto patrocínio.

A lista é longa. A verdade, essa, é mais sucinta. O término do período revolucionário e o início do processo contra-revolucionário promoveu o perdão em catadupa às forças reaccionárias como: o fim dos processos contra agentes da PIDE/DGS com acórdãos e sentenças benévolas, carregada de atenuantes e indultos; a repescagem e revalidação ideológica de inúmeros deputados da União Nacional, que se tornaram fundadores ou figuras de proa de partidos políticos, agora todos convictos democratas; a lavagem de várias figuras do regime, ministros, como já visto, outros colaboracionistas e dirigentes “associativos”, que também eles, como os anteriores, se incorporaram em todas fases e estados do novo regime democrático português, de deputados aos cargos de magistratura mais altos da república portuguesa; o regresso das famílias monopolistas donas e senhoras do dinheiro, muito do que manteve e alimentou a besta fascista; em muitos outros aspectos as próprias estruturas do aparelho repressor fascista encontraram continuidade na democracia.

Aparentemente, o Estado Novo encerrou em si um e um só Salazarista, o próprio Salazar, mesmo que o regime tenha caído já bem depois da sua morte, ou será esta apenas mais uma ironia da democracia portuguesa? Seria de esperar que, seguindo a premissa da nata intelectual do país, castrada nas opções de vida, podendo ser só do e pelo regime fascista, pobres coitados, que entenderam a fome, a miséria e o analfabetismo, não como culpa sua e da sua classe governativa, mas como uma determinação celestial ou um fenómeno meteorológico, se Salazar fosse vivo para lá de 1974 nem este seria salazarista à hora da sua morte, numa rocambolesca volta para “eu acredito em bruxas, mas que não as há, não as há”.

Durante o estado novo passaram pelas cadeias fascistas portuguesas mais de 30 mil presos políticos, dezenas de milhares de mortos, entre antifascistas, soldados e povos colonizados, se este é o legado destes preciosos “humanistas”, são então precisos outros. Porque parece inevitável a resposta à questão: terá sido o período pós-revolucionário que “democratizou” os fascistas, ou foi a democracia que num processo lento, intencional e camuflado se encontra numa transição fascizante, com o intuito da manutenção de uma liberdade e cultura democrática burguesa, liberal, castradora e opressora?

É verdade que os fascistas podem viver cem anos, mas os que não se vergaram à longa noite fascista, que transportaram em si a luta da liberdade e pela liberdade, viverão para sempre. Essa estirpe heróica de resistentes está destinada à honra e à memória.

24 Comments

  • José Carlos Barata Fernandes

    8 Novembro, 2022 às

    Não é possível transformar excelentes textos sem recorrer aos filmes de terror, “pois este filme é isso mesmo terror”. várias são as opiniões de memória aqui manifestadas, sublinho que estamos perante um mundo prevertido, com tantos milhares de mortos, com tanta tortura, destapar este manto enganador das “verdades”, O Escultor José Dias Coelho, Alex, general Humberto Delgado e tantos outros assassinados. em plena via pública, a defesa da Democracia e da Liberdade, teve muitos responsáveis mas não, Adriano Moreira, infelizmente neste Portugal à beira mar plantado, não se fez justiça antes pelo contrário, ainda hoje existe uma grande perseguição aos que deram a vida pelo Povo, o maior exemplo de todos como expoente máximo o Partido Comunista Português e todos os seus militante. O 25 de Abril de 1974 abriu as Portas da Liberdade, o 25 de Novembro fechou essas mesmas portas. Adriano Moreira, pela sua cumplicidade e apoio à existência do Campo de Concentração do Tarrafal, só por este facto deveria ter sido preso, não alinho com fascistas que se assumiram como tal.

  • henrique menino

    6 Novembro, 2022 às

    Quando uma personalidade destas, que arrastou consigo todos os “feitos” que o artigo expos, foi alvo de variadíssimos comentários, mais ou menos elogiosos após a sua morte, eu só posso concluir que a nossa democracia está muuuito doente.

    Amigos, este e outros artigos desta índole, já mais devem parar nosso mail. divulgam-los até aos quatro ventos. Que a Verdade seja sempre uma bandeira desfraldada.

  • Jorge Nunes

    6 Novembro, 2022 às

    Para aqueles que apelam ao ódio e à violência neste país, como André Ventura, Adriano Moreira é um verdadeiro senador da política portuguesa e um pensador incomparável.
    Para aqueles que sabem e que são esclarecidos o nome de Adriano Moreira ficará sempre ligado à palavra «Tarrafal».
    Poderão tentar branquear, distrair, fingir, ludibriar, mas aqueles que sabem e que sentem não querem nada com esse tipo de pessoa ou figura.

  • Manuel Martins da Cruz

    2 Novembro, 2022 às

    O fascismo durou 48 anos. Salazar classificou-o oficialmente como “estado corporativo”. Todos os que inetegraram o sistema deverão ser analisados, em primeiro lugar, por esse facto.

  • Ricardo Jorge Castanheira

    2 Novembro, 2022 às

    Quem sou eu para criticar o texto ou apreciar o escritor, reconheço o estilo, o cuidado da escrita, o rigor temporal a sintaxe objectiva e directa. No entanto saliento do texto: “o fim dos processos contra agentes da PIDE/DGS com acórdãos e sentenças benévolas, carregada de atenuantes e indultos; a repescagem e revalidação ideológica de inúmeros deputados da União Nacional, que se tornaram fundadores ou figuras de proa de partidos políticos, agora todos convictos democratas; a lavagem de várias figuras do regime, ministros, como já visto, outros colaboracionistas e dirigentes “associativos”, que também eles, como os anteriores, se incorporaram em todas fases e estados do novo regime democrático português, de deputados aos cargos de magistratura mais altos da república portuguesa; o regresso das famílias monopolistas donas e senhoras do dinheiro, muito do que manteve e alimentou a besta fascista; em muitos outros aspectos as próprias estruturas do aparelho repressor fascista encontraram continuidade na democracia.”
    Agora, todos os dias te vou ler, para nunca esquecer de como quero eu viver. Obrigado.

  • Cecília Vaz

    1 Novembro, 2022 às

    Foi meu professor e um bom professor.Mas nunca me esqueci que ele inventou os polrtugueses de 2ª e reabriu o campo do Tarrafal.
    Excelente texto e ainda bem, que há pessoas que ainda estão vivas e não deixam passar a verdade da História

  • José Manuel Lima Carvalho Gonçalves

    1 Novembro, 2022 às

    Cheguei quase a pensar, que estava sozinho no contra ao laudatório, que estava grassante, neste país desmemoriado sobre o passado recente. Mas não. Ainda há seres bem pensantes. Já não me sinto como ” cana agitada pelo vento no deserto “. Grande texto democrático antifascista e de recolocação da HISTÓRIA no cerne da memória colectiva. Apreço aos comentários exactos e referentes, não só ao textual, mas e sobretudo à tendência larvante, de incensar pós mortem, aqueles que nunca ” por obras valerosas, se foram da morte libertando “. Bem hajam. PARABÉNS. A LUTA PELA DEMOCRATIZAÇÃO CONTINUA.

  • Hugo Pereira

    1 Novembro, 2022 às

    Sendo eu filho de Abril 76 o que sempre me intrigou foi como o fascismo se tranvestiu de revolucionário num ápice, uma espantosa metamorfose de um por do sol cinzento em 24/04/74 desabrochou num nascer do dia 25 radiante.
    Para onde foram todos? E quem eram estes Homens Novos?
    Um texto brilhante para não nos esquecermos de quem somos e de que nada nos foi dado como garantido.
    Obrigado

  • João Eduardo Coutinho Duarte

    30 Outubro, 2022 às

    O mais grave, ou mais triste em Adriano Moreira é que sua grande inteligência foi posta ao serviço de uma política e ideologia brutais. Uma grande nódoa na vida de quem, se as suas escolhas de vida fossem outras, as que esboçou na juventude, poderia ser hoje uma referência democrática

  • Carlos Sotto-Mayor

    30 Outubro, 2022 às

    Excelente texto, pedrada neste charco de mediocridade satisfeita

  • João Bilstein Sequeira

    29 Outubro, 2022 às

    É altamente chocante verificar como tantos jovens da era atual passaram a viver o “faz de conta” desta mesma era, não se sentindo minimamente revoltados ou mesmo atingidos com as mentiras e as injustiças e até a crueldade do “stacatto quo” que mantém este mundo pervertido, cruel e injusto especialmente em relação aos mais pobres, fracos e injustiçados.
    Este desabafo não são apenas palavras, são golpes que empurram a juventude atual para o egoísmo, para a cobardia e para a indiferença.
    Haja Deus que as novas gerações acordem para a luta e se revoltem com este mar de vergonha e cobardia.

  • Sergio Coelho

    29 Outubro, 2022 às

    Aqui aplica-se aquele habitual lugar comum, “morreu mas, apesar de tudo, era um gajo porreiro. Apesar de tudo”.
    Falta uma referência ao Veiga Simão, um amante da natureza com predilecção por gorilas.

  • Gastão Francisco Gonçalves de Barros

    28 Outubro, 2022 às

    Vou passar este belíssimo texto a todos os amigos que puder.

    É preciso manter a memória bem viva.

    O Fascismo existiu e o Adriano Moreira foi sempre um fascista convicto.

  • José Viegas

    28 Outubro, 2022 às

    A tendência, quasi generalizada, de conferir a quem morre o epíteto de “boa pessoa”, não pode servir de branqueamento para gente que, de facto, não foi “boa pessoa”. Texto de grande qualidade e verdade.

  • antónio lameira

    28 Outubro, 2022 às

    Nem mais. Passe-se esta mensagem para os vindouros.
    A consciência individual vale na medida em que se plasma com e se vincula com toda a comunidade

  • Manuel Filipe Barbosa

    27 Outubro, 2022 às

    Que maravilha de texto! Infelizmente tem de ser recordado para que a memória nunca esqueça o maldito que aconteceu!

  • Teresa Preto

    26 Outubro, 2022 às

    Avivar as memórias, destapar este manto enganador das “verdades”desta democracia que só parece ser, e um acto revolucionária fundamental para continuar a Luta. Este texto magistral é disso testemunho.

  • João da Silva Rodrigues

    26 Outubro, 2022 às

    Só os burros não mudam de opinião, mas que em vez de avançar, recuam.

  • António Rodrigues

    26 Outubro, 2022 às

    Não é preciso acrescentar nada. O texto contém as verdades que muitos querem fazer esquecer.

  • Olinda Peixoto

    25 Outubro, 2022 às

    Quando me confronto com uma opinião que,sobretudo,é fiel à verdade histórica,defende-a,e não recorre à indiferença e à mentira ,dá-me alento para seguir acreditando que há futuro para os nossos filhos e netos.

  • Bernardino Vieira dos Santos

    25 Outubro, 2022 às

    Fiquei mais esclarecido. Muito obrigado.

  • cid simões

    25 Outubro, 2022 às

    Obrigado!
    Há muito tempo que não lia um texto de análise tão subtil e ao mesmo tempo incisivo.
    Vou divulgar.

  • Eduardo Viana

    25 Outubro, 2022 às

    Finalmente uma pedrada no charco dos churrilhos de elogios mais ou menos fúnebres. Adriano Moreira foi um fascista convicto e ponto final!

  • Emílio Antunes Rodrigues

    25 Outubro, 2022 às

    Saudar o regresso de textos ao Manifesto e dizer que era preciso lermos um texto que pusesse os pontos nos iis, esperemos por outros no mesmo sentido. Estamos muito necessitados da verdade a que temos direito porque vivemos dominados pela mentira, pela propaganda manipuladora de consciências.

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