A 20 minutos do final de “O Sol do Futuro” (filme de 2023, de Nanni Moretti), Giovanni, um idealista e impetuoso realizador a braços com uma tripartida crise artística, ideológica e conjugal, interpretado por Moretti num estreitamento da linha que delimita ficção e realidade, encontra-se sentado à mesa com a produtora e recente ex-companheira. Ponderações sobre o desgaste da sua relação e a perda de financiamento para o filme que se encontra a realizar imiscuem-se e atropelam-se. Interrompe-o o extasiado veredito do grupo de investidores sul-coreanos sobre o guião, a última esperança que tem, o filme, de ver a luz do dia. Agrada-lhes particularmente o suicídio na cena final: “tão dramático e sem esperança. É um filme sobre a morte da arte e do comunismo.”
O principiante e incrédulo sorriso de Giovanni precipita-se agora em repulsa e o filme entra numa desconcertante vertigem de si mesmo. O final transforma-se para dizer, não da inacção e do desespero, mas da determinada e incansável esperança que nos guia o olhar para um obstinadamente vivo e colectivo horizonte comunista. Reconhecê-lo e sonhá-lo em acção é uma arma crucial nas mãos na classe trabalhadora. Lembremo-nos dela quando exigem de nós, por estes dias, o mais infértil desespero e o “voto útil”.
O horizonte comunista
A cena de suicídio assumia-se ponto de partida para o filme de Giovanni, tinha sido a primeira a desenhar-se, só depois o resto do filme havia ganhado forma: na Roma dos anos 50, um bairro operário, de militantes do Partido Comunista Italiano, recebe um Circo Húngaro e debate-se com a ligação do PCI à URSS de Stalin.
“O Sol do Futuro” é mais que um filme-dentro-de-um-filme que, em vincada reciprocidade, espelha Giovanni e Moretti, arte e vida; é um filme que contém em si um conjunto de outros filmes, como contém, em si, um conjunto de vozes – um “nós” em vez de um “eu”.
Colocar as coisas nestes moldes pode parecer insólito, dada a carregada marca da mão de Moretti, que tanto se confunde com Giovanni, num “non finito” tão caro à história da escultura – uma obra aparentando um deliberado inacabado, cortando com a tradição clássica do polimento absoluto e deificação da Obra, permitindo, antes, reconhecer-se nela os vestígios da mão do escultor (muitas vezes a impressão digital, num tornar visível do gesto escultórico, que Rodin retoma e transforma de Miguel Ângelo). Mas essa marca da mão, deixada no filme por Moretti, não é a marca do indivíduo, da personalidade, é a marca de um colectivo.
Moretti demonstra-nos, ao longo do filme mas com particular robustez na sua cena final, que a exploração e expropriação não se confrontam senão através da organização colectiva. Actos individuais de resistência cederão sempre à fantasia individualista neoliberal; a sua retórica de pluralidade e individualidade não constitui uma oposição real ao capitalismo, pelo contrário.
É o comunismo como horizonte que nos permite rejeitar uma política pensada em termos de actividades micro-políticas, de auto-cultivo e de escolhas de consumo individuais, disrupções momentâneas e superficiais. O horizonte comunista (noção que Jodi Dean recupera de Bruno Bosteels, em “The Communist Horizon” de 2012) apresenta-se como dimensão concreta da nossa experiência do mundo, lembrando-nos que a determinação (colectiva) das (colectivas) condições materiais é efectivamente possível.
Assim, o horizonte comunista só se forjará verdadeiramente com a organização no Partido – a asserção explícita de colectividade – porque é aí que se afirma a actualidade da revolução (lembrando Lukács a propósito do Partido Bolchevique).
O nosso Partido é um organismo vivo, afirmação do poder colectivo, que continuamente avançará a revolução proletária face ao sistema capitalista de exploração e expropriação; e, para nos debatermos com a instabilidade característica de um processo revolucionário, será necessário que o nosso olhar se fixe na certeza de que este virá. A actualidade da revolução requer disciplina e preparação; não serão as dinâmicas capitalistas ou a espontaneidade massificada a determinar o fim da exploração.
Mesmo quando Giovanni irrompe no set de um violento e sensacionalista filme americanizado, criticando a degeneração do cinema num veículo por demais raso (talvez irreversivelmente) desligado da (auto)reflexão, fá-lo para defender, não a sua opinião/sujectividade/posição de autor, mas para defender o transformador e revolucionário poder do cinema, veiculando uma perspectiva conjunta e não individual. Nesta cena caótica e pejada de humor, ouvimos um arquitecto, um jornalista, uma escritora e matemática; em cenas posteriores ouviremos actores, ex-mulher, filha, investidores, genro, membros da equipa de filmagem, etc. Pode parecer que é a visão neurótica, teimosa, cómica, singular de Giovanni-Moretti que impulsiona o filme, mas sabemo-lo ser, antes, um horizonte pensado em conjunto.
É, neste sentido, também do delírio da singularidade individual que acordamos quando olhamos a invulgar postura de Paulo Raimundo em qualquer debate mas, sobretudo, frente a Ventura. Perante as mais variadas ofensas pessoais, o nosso camarada mantém a serenidade de quem sabe que o que está em causa não é ele próprio, a sua capacidade ou subjectividade, mas uma ideia de projecto colectivo.
Tomar Partido
Como terminar, então, o filme de Giovanni? O suicídio por enforcamento da sua personagem principal, Ennio, editor do jornal L’Unitá e dirigente do PCI, diz-lhe agora apenas do desespero, “já não gosto da cena final. Não gosto que seja a última cena, não gosto do que conta.”
Parece ser de Gramsci que emana a resposta: pessimismo da razão e optimismo da vontade. (O revolucionário italiano dá, aliás, nome à célula do PCI a que pertence o bairro operário onde decorre a acção do filme de Giovanni).
Do pessimismo frente ao reconhecimento da correlação de forças e à dificuldade da superação da sociedade de classes, decorre a sua imprescindível análise objectiva; o seu contraponto será o optimismo que convoca o compromisso último com a transformadora acção colectiva, em detrimento da alienação e niilismo. O desânimo resultante da lúcida análise da realidade objectiva que envolve Ennio, Giovanni e Moretti, deverá ser por eles contrastado com a decisão derradeira, esperançosa e corajosa, de agir na transformação daquela realidade.
À análise séria das sucessivas e devastadoras crises do capitalismo, do alargado levantar da extrema-direita, do desenfreado avanço do militarismo, deve suceder-se uma acção colectiva transformadora. Da meticulosa análise do incessante e obsceno ataque aos direitos e condições de vida dos trabalhadores e do povo enquanto se favorece os interesses dos grupos económicos e degrada os serviços públicos em Portugal, deve decorrer a desafiadora alegria de tomar Partido e, assim, a coragem de enfrentar a direita e as suas forças reaccionárias.
A ilusão neoliberal de que as nossas actividades e posicionamentos individuais convergiriam necessariamente, e de forma inata, para uma pluralidade de práticas pós-capitalistas (ou, pior, anti-capitalistas), deve ser expressamente contrariada com a tomada de Partido – a coragem para existir como uma presença política colectiva, um “nós” em vez de um “eu”. No horizonte está um modo de produção e distribuição onde a emancipação de cada um é, não só compatível, mas inequivocamente dependente da emancipação de todos.
Ir às urnas no próximo Domingo e votar no PS para “afastar” a AD é dissimular o irreconciliável fosso entre capitalismo e pessoas; é ceder ao desespero sem nunca concretizar a segunda parte da máxima de Gramsci; deixar que o suicídio de Ennio feche o filme de Giovanni. É preciso não deixar que a fantasiosa demagogia das sondagens nos oriente para uma disputa bipolarizada onde o artifício aritmético não serve nada senão o poder instalado. O “voto útil” só é útil à classe dominante.
Votar em qualquer outra força que não a CDU é seguir o entorpecedor embalo de uma saída ilusória que, instrumentalizando as justas reivindicações dos trabalhadores, se disfarça de ruptura com políticas e partidos a quem sempre deu a mão, ou, do outro lado, se dissimula em expressão de diversidades que mina a força do colectivo e nos separa irreversivelmente uns dos outros.
“E se” colectivo, em marcha
A desorientação de Giovanni em torno do final do filme, espelhando Moretti em torno do rumo do cinema e do mundo, transforma-se numa poderosa e disruptiva polifonia ao jeito de Dostoievski – nenhuma voz se impondo sobre outra, nenhum narrador/autoridade/individualização não desafiado pelo colectivo. À mesa com todas as entusiasmadas vozes, Giovanni sorri: “A História não se escreve com ‘e se’ (…) Eu, pelo contrário, quero precisamente escrevê-la com ‘ses’”. Mais Rodin que Miguel Ângelo, “O Sol do Futuro”, e o seu filme-dentro-de-um-filme, é obra em aberto, em transformação, é momento vivo.
Na cena final, Ennio e Vera desfilam, arrebatados, pela Via dei Fori Imperiali em Roma, montados em elefantes numa espécie de realidade delirante, um quase aceno ao realismo mágico, numa dialógica ligação entre presente, passado e a libertadora possibilidade da transformação social do futuro. O filme transforma-se numa grande e alegre manifestação popular.
Porque também a cultura é terreno da luta de classes e, o cinema, profícuo espaço de memória, resistência e diálogo, Giovanni, e Moretti por extensão (como, aliás, ao longo de toda a carreira), assume um papel que extravasa o campo da estética: é ético e político. E, por reconhecer essa responsabilidade última, será para a esperança que aponta.
Entre as personagens do filme de Giovanni, marcham, nesta cena final, personagens outras da obra de Moretti, actores e equipas de filmes anteriores, figuras grandes do cinema italiano, colaboradores antigos e promessas do cinema italiano contemporâneo (nota-se Alice Rohrwacher, talvez a mais alegre e possante esperança do cinema do porvir). As personagens e figuras reais desfilam com bandeiras vermelhas, vincando a continuidade, não só do cinema italiano como instrumento de transformação colectiva, mas do horizonte comunista para que ele pode, se corajoso e sonhador o suficiente, apontar. Giovanni (Moretti) acena-nos e sorri.
O comunismo não morre, no filme ou na vida, porque o carregamos nós, juntos, nos locais de trabalho, nas casas, nas ruas, no voto deste Domingo, como horizonte último. Contra a fantasia da derrota da esquerda ou da CDU, a arma mais transformadora que temos é traçar o olhar para este horizonte comunista, sabendo que, porque muito mais é aquilo que nos une que o que nos separa, um dia a vitória será nossa.