O Afeganistão progressista que alguns tentam esquecer

Internacional

Ninguém consegue ficar indiferente ao que se passa no Afeganistão mas sejamos claros. A tragédia não começou agora e também não começou há 20 anos. Se há quem ingenuamente possa pensar que a política norte-americana naquele país era o de garantir os direitos das mulheres, das minorias e dos trabalhadores está enganado. O único regime que garantiu direitos, liberdades e garantias para as afegãs e para a maioria trabalhadora foi assediado militarmente pelos mujahidins com o apoio de 4 mil sauditas, incluindo Osama Bin Laden, todos financiados, treinados e armados pelos Estados Unidos e pelo Paquistão. A organização e muitos dos homens que atacaram as Torres Gémeas a 11 de Setembro de 2001 são produto das escolhas de Washington.

A correspondente do People’s World e editora da revista bimestral New World Review, Marilyn Bechtel, visitou duas vezes o Afeganistão, em 1980 e em 1981, para conhecer a revolução Saur. A 6 de Outubro de 2001, um dia antes de os Estados Unidos invadirem o Afeganistão depois da declaração de guerra aos ex-aliados, a jornalista publicou “Afeganistão: alguns ignoraram a história“.

Contava Marilyn Bechtel que se falava de forma distorcida sobre o papel da União Soviética entre 1978 a 1989 e que se subestimava o papel dos Estados Unidos na construção das forças mujahidin, incluindo os talibans. Do que ninguém falava, como agora, era do esforço que o povo afegão fez nos finais dos anos 70 e 80 para se libertar “do legado de tribos incessantemente beligerantes e feudais e começar a construir um Estado democrático moderno”.

“O Afeganistão foi um prémio geopolítico para os construtores de impérios do século XIX, contestado tanto pela Rússia czarista como pelo Império Britânico. Foi finalmente forçado pelos britânicos a uma semi-dependência”, explicou a jornalista.

Em 1921, Amanullah Khan chegou ao poder e procurou reafirmar a soberania do seu país e modernizá-lo. Nesse sentido, aproximou-se do governo russo, liderado por Lénine, que respondeu reconhecendo a independência do Afeganistão e assinando o primeiro tratado de amizade afegão-soviético.

Entre 1921 e 1929, apesar da oposição de elementos reaccionários, apoiados pelos britânicos, os soviéticos ajudaram a lançar projectos de infraestruturas como centrais eléctricas, recursos hídricos, transportes e comunicações. Milhares de estudantes afegãos frequentaram escolas técnicas e universidades soviéticas. Amanullah Khan acabou por ser forçado a abdicar.

Depois de várias convulsões políticas com sucessivas lideranças derrubadas, Mohammed Zahir Shah assume o poder naquele que seria o último reinado no Afeganistão que durou entre 1933 e 1973. Nos anos 60, o ressurgimento de projectos conjuntos afegão-soviéticos incluiu o Instituto Politécnico de Cabul, o principal recurso educativo do país para engenheiros, geólogos e outros especialistas.

A partir da década de 20, foram muitas as correntes progressistas de luta que beberam da experiência da revolução de Outubro, na Rússia. No Afeganistão, em meados dos anos 60, estes grupos uniram-se para fundar o Partido Democrático do Povo (PDP). Em 1973, descreveu Marilyn Bechtel, forças burguesas locais, ajudadas por alguns elementos do PDPA, derrubaram o reinado de 40 anos de Mohammad Zahir Shah que, em 2001, era apresentado pelos republicanos, nos Estados Unidos, como o homem que podia voltar a unir os afegãos.

Em 1978, os comunistas do PDPA protagonizaram uma revolução junto ao povo afegão que derrubou o governo de Mohammed Daoud Khan e começaram a desenvolver políticas para tornar a distribuição da riqueza mais equitativa. Entre os seus objectivos estavam a emancipação da mulher, subjugada até então à servidão tribal, a igualdade de direitos para as nacionalidades minoritárias, incluindo o grupo mais oprimido do país, os Hazara, e a democratização do acesso à educação, saúde e habitação.

A jornalista recordou que durante as duas visitas viu o princípio deste processo progressista. Viu mulheres a trabalharem juntas em cooperativas de artesanato, onde pela primeira vez podiam ser pagas decentemente pelo seu trabalho e controlar o dinheiro que ganhavam, também testemunhou adultos, tanto mulheres como homens, que aprendiam a ler. Por outro lado, observou que havia mulheres já a ocupar cargos de governo, incluindo a Ministra da Educação.

De facto, as família trabalhadores mais pobres passaram a ter acesso a cuidados médicos e ver os seus filhos na escola. As dívidas dos trabalhadores agrícolas foi anulada e deu-se início à reforma agrária. No âmbito do custo de vida, o governo promoveu o controlo de preços e a redução dos preços de alimentos essenciais. Apoios aos nómadas interessados em ter uma vida estável foi outra das políticas de inclusão. Muitas destas políticas foram possíveis graças aos acordos de amizade com a União Soviética. Também aqui se pode ver a diferença dos papéis que Moscovo e Washington tiveram no país. Enquanto os soviéticos apoiavam o desenvolvimento económico, social e cultural do país, os Estados Unidos financiavam quem atacava escolas e professores nas zonas rurais.

Assediado pelos senhores da guerra e por diferentes tribos, o governo afegão pediu a ajuda militar soviética. Mesmo depois da saída das tropas do Exército Vermelho do Afeganistão por decisão de Mikhail Gorbachev, coveiro da União Soviética, o governo liderado pelo PDPA resistiu mais três anos apesar do cerco das futuras sementes dos taliban e da al-Qaeda.

A agressão e ocupação militar norte-americana, que incluiu a participação de Portugal, não conseguiu, nem quis, alterar as razões estruturais que mantêm o Afeganistão agrilhoado ao atraso económico e social. Para lá das lágrimas de crocodilo de quem se diz agora preocupado com o destino das mulheres e da população afegã, importa entender que o imperialismo norte-americano não age em função da necessidade de promover direitos sociais e políticos. Age em função de proteger os seus próprios interesses.

5 Comments

  • maria filomena abreu

    31 Agosto, 2021 às

    Para que não esqueça

  • Miguel Moises

    19 Agosto, 2021 às

    Excelente artigo

  • José Braz

    17 Agosto, 2021 às

    Obrigado pela memória 😉

  • Beta Ornelas

    16 Agosto, 2021 às

    Excelente informação! Os crimes hediondos dos Estados Unidos contra os Países!!!

  • João Gil Ferreira

    16 Agosto, 2021 às

    Gostei muito! Mas não concordo com “A organização e muitos dos homens que atacaram as Torres Gémeas a 11 de Setembro de 2011 são produto das escolhas de Washington.”, porque dá ideia de que foram os taliban e/ou a al-Qaeda os autores dos ataques de 11 de Setembro de 2001, o que não é verdade. Ainda na mesma frase deve ler-se 2001 em vez de 2011.
    Saudações revolucionárias!

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