O poder revolucionário de uma ideia em Bento de Jesus Caraça

Nacional

Natural de Vila Viçosa, onde nasceu na Rua dos Fidalgos, a 16 de Abril de 1901, Bento de Jesus Caraça, filho de trabalhadores rurais, foi um matemático, estatístico, demógrafo e professor universitário português, comprometido com a luta antifascista e a democratização da cultura e do ensino no seu país. É uma figura ímpar na cultura portuguesa, lembrado pelo seu exemplo de integridade e coerência. Militou no Partido Comunista Português, recusando a separação entre actividade intelectual e actividade política, e foi um dos fundadores do Movimento da Unidade Nacional Antifascista (MUNAF) que, posteriormente, daria origem ao Movimento de Unidade Democrática (MUD). Perseguido pelo regime, preso pela PIDE e demitido, em consequência, do lugar de professor catedrático no ISCEF, nunca abandonou as suas convicções. No dia em que se celebram os 90 anos de A Cultura Integral do Indivíduo, urge recordar Bento de Jesus Caraça como o verdadeiro marxista que era, sedento de transformar o mundo, ao invés de se limitar a descrevê-lo. Caraça morre aos 47 anos, a 25 de Junho de 1948, em Lisboa, porém, o vasto legado que nos deixa mantém vivos os ideais de liberdade.

1. Um intelectual de novo tipo e a Grande alavanca

Existem mil e uma definições possíveis, actuais ou ultrapassadas, de cultura – mais ou menos abrangentes, mais ou menos consensuais – e cada uma delas terá   desempenhado o seu papel na formulação de uma teoria da cultura, alvo de outras mil e uma mutações, representativas do pensamento e da ética dominantes, em cada um dos momentos históricos. Bento de Jesus Caraça recusou-se a entrar nessa interminável espiral de definições e preciosismos com que a academia se entretém, e propôs antes uma abordagem prática e politicamente comprometida da cultura. Não é tanto o que ela é ou deixa de ser, mas para que serve, quem serve e onde nos poderá levar enquanto colectivo. Não é um imbróglio semântico ou metafísico, não é uma abstracção com a qual devem ocupar-se as elites e não é certamente um assunto com protecção anti-proletariado. Daqui em diante, deveremos pensar a cultura como insistentemente a pensou Caraça: uma condição indispensável à tomada de consciência das massas, de modo a cumprirem a sua missão histórica. Ela inclui, de facto, os costumes, a arte, as ciências, as crenças religiosas e tudo o que poderá distinguir-nos, todavia, urge, aqui, privilegiar o que nos une. É poder transformador e revolucionário, inerente à cultura, que, em Caraça, merece destaque. É o que poderemos fazer com a cultura – e não é feito por quem se demora a aperfeiçoar a sua entrada no dicionário – que dá razão de ser a este artigo.

Além de tudo o resto, Caraça foi um impulsionador da cultura no seio das camadas populares e mormente iletradas, no Portugal salazarista. A sua missão, enquanto intelectual, era levantar-se da secretária – onde mais confortáveis se sentiam os seus pares – e voltar-se para o povo, dando amplitude à luta pelo direito à cultura e à educação, pois que todo o homem deverá estar munido de conhecimentos que lhe permitam usar consequentemente a voz que sempre teve, de modo a ganhar visibilidade através da sua intervenção social e política. É desta forma que a sua concepção de cultura, que abraça a busca incessante do saber integral, é universalizante e universalista. É também por isso que Alberto Vilaça se referia a Caraça como “um intelectual de novo tipo”. Se, por um lado, nas instituições, saltava à vista a podridão a que conduzira uma ditadura fascista aliada à cultura burguesa, por outro, Bento de Jesus Caraça soube ser lúcido aquando do confronto com essa realidade, ao constatar que “o que deve fazer-se não é destruir a cultura, mas pelo contrário intensificá-la e desenvolvê-la cada vez mais, acabando com o seu monopólio numa classe”. Só desse modo poderá a cultura ser libertadora. Na conferência A Arte e a Cultura Popular, proferida na Universidade Popular Portuguesa (UPP), em 1936, defende que a cultura não deve ser adjectivada, ou seja, não exige um qualquer sufixo que, ora a torna demasiado generalista, ora a condena a uma especificidade patética. As diferenças na cultura, na óptica de Caraça, que é uma óptica marxista, assentam no protagonismo que as classes e/ou os grupos sociais têm, ou não, no que toca à difusão de ideias. Havendo uma classe dominante, esta irá optimizar a sua cultura e, em certa medida, irá também impô-la às populações. É no seguimento desta mesma tese que Caraça é verdadeiramente inovador. Face à análise do estado das instituições e do panorama social e político, a mensagem que deixa é que não tem de ser assim; que tudo dependerá da acção que possamos ter, influenciando o rumo da história – “não há fatalidade em história”. O seu materialismo histórico é o maior contributo que dá à filosofia da cultura, que, por sua vez, não podia ser senão uma filosofia da práxis. Em Caraça, história é mudança; é a negação da existência de valores universais eternos ou de uma natureza humana imutável, sendo o ser humano um produto do seu contexto, do meio em que se encontra; o homem é um ser histórico; a concepção histórica do mundo dispensa as concepções filosóficas e/ou teológicas; cada período histórico deve analisar-se tendo em conta os seus antecedentes; é a utopia que dá cor a cada um destes períodos históricos que determina as tarefas a realizar.

O pensamento marxista de Bento de Jesus Caraça – com claríssimas raízes n’Os Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 – vê, na Revolução de Outubro de 1917, uma luz inspiradora e um oásis de esperança. Tal é o gatilho para entender a cultura como um elemento privilegiado de intervenção e transformação, no contexto de um processo revolucionário. Estará, então, na base da mais brava conquista proletária: uma sociedade nova. É sem delongas ou especulações teóricas que assevera a sua concepção dialéctica da história e a crença no domínio do colectivo que “não resulta de um acto de fé; é antes, e só, consequência de um acto de razão”. A convicção na perfectibilidade do ser humano encontra na teoria da evolução a explicação mais orgânica, já que o desenvolvimento humano se insere no desenvolvimento natural de todas as coisas, fruto que é das condições materiais que o determinam: o homem age sobre o meio e este age sobre o homem. Eis que “o fatalismo em história não é mais do que um reles biombo de papel atrás do qual se abrigam, julgam abrigar-se, os ineptos e os preguiçosos”. Em simultâneo, denuncia a preguiça dos académicos, que se desmarcam da realidade material, e crê que a ineptidão não consta no vocabulário da classe operária.

A cultura é um meio e um fim em si mesma, também, no sentido em que se trata de um instrumento imprescindível à construção da cidade nova, que “compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem” e encontra no povo a sua maior força mobilizadora. As massas populares conquistam a sua emancipação com o auxílio da cultura adquirida – que logo se converte numa arma ao seu dispor – e, posteriormente, desenvolvem-na, aprimoram-na, mantendo-a do seu lado: “esse património é obra colectiva de toda a humanidade produtora, ele está, ou deve estar, aberto a todo o homem para lhe favorecer, por sua vez, o desenvolvimento, isto é, aumentar as suas possibilidades”. Há, assim sendo, um papel decisivo a ser cumprido pela cultura: o de dar aos homens a consciência integral da sua dignidade, que consiste, acima de tudo, no conhecimento dos seus direitos, dos seus deveres e no desenvolvimento de um espírito de solidariedade. Será associada à luta pela libertação, actuando, doravante, como “condicionador e correctivo mediante a marcha da civilização”. De uma forma desempoeirada, Bento de Jesus Caraça retoma o longo debate, entre pensadores alemães e franceses, sobre cultura e civilização. Opta por distinguir os dois conceitos. Fá-lo, contudo, de uma forma distinta daquela sugerida pelos académicos alemães do século precedente, arredando, terminantemente, desta jornada, o espírito e o potencial perigoso com que estes forram a identidade nacional. Não há lugar para misticismos na definição que Caraça concebe; há um carácter prático cujo mote é refrescante – o fim da exploração do homem pelo homem e a conquista da igualdade, rompendo com uma visão de cultura como algo que nos separa uns dos outros, entre civilizados e bárbaros. A cultura é aqui a “grande alavanca que há-de impulsionar a renovação do mundo”.

2. A Cultura Integral do Indivíduo: problema ainda central dos tempos que hão-de vir

A conferência mais célebre de Bento de Jesus Caraça é aquela que melhor sintetiza a temática que aqui se quer explorar. Realizada na União Cultural «Mocidade Livre», a 25 de Maio de 1933, e publicada de acordo com a 2ª edição (Cadernos Seara Nova, 1939), pelas Edições «Avante!», em 2021, é também enriquecida por um prefácio de José Barata-Moura. Este começa por esclarecer que não é o “mecanismo automático da efeméride avulsa” que dita a pertinência desta publicação, mas a magnitude do que lá vem escrito, “numa linguagem em que o indispensável rigor dispensa as muletas chochas do hermetismo de fachada”. É a actualidade de A Cultura Integral do Indivíduo, escrita há 90 anos, que surpreende. O seu subtítulo, igualmente nonagenário – problema central do nosso tempo – merece atenção: é um nonagenário jovem, um problema que teima em preservar a sua centralidade e que, sobretudo, exige soluções.

Ainda que esta conferência tenha tido lugar num momento em que, na Europa, se consolidava, furiosamente, a extrema-direita e Portugal não era, de maneira alguma, imune ao fenómeno, estando refém da sua própria ditadura fascista, Bento de Jesus Caraça dirige-se à plateia de jovens sonhadores com uma mensagem de esperança e o rigor de quem sabe como é difícil, em tais condições, manter vivos os ideais de liberdade. Mas, sobretudo, apresenta-se diante deles com convicção. Desde logo, é reconhecido o papel fundamental da juventude, grupo esse que personifica o futuro, na construção de uma mudança estrutural, que, por seu turno, só verá a luz do dia quando os trabalhadores tiverem nas suas mãos o rumo da história. Como tal, Caraça traça um caminho. Para iniciá-lo, teremos de ter em conta algumas noções fundamentais: sem o devido arcaboiço cultural, não estaremos aptos para proceder à construção da sociedade nova que a nossa revolta exige e precisamos, portanto, de um conhecimento mínimo em todas as áreas de acção humana; cultura é sinónimo de elevação e desenvolvimento constantes, que conduzirão à conquista da liberdade, a mais preciosa aquisição de cada um; assistiremos a uma tomada de consciência cada vez mais ampla na sequência da democratização integral da cultura; a “síntese grandiosa do indivíduo e da colectividade” encontrar-se-á na génese da vitória.

Em A Cultura Integral do Indivíduo, pensa-se o passado, analisa-se o presente e convoca-se toda a humanidade para uma grande tarefa colectiva – a construção de um futuro justo. Comecemos, como Bento de Jesus Caraça, pela caracterização geral daquele período histórico e seu problema central, recorrendo, brevemente, à analepse. O surgimento do capitalismo e a escravização económica do trabalhador a que este, aliás, obriga, como consequência da conquista do poder pela burguesia, ocorre num momento em que se verificam baixíssimos níveis de literacia entre as camadas populares. Isto é, porque eram privadas do acesso à mesma, desde há séculos, sendo esse acesso concedido apenas àqueles que podiam pagá-lo. Privados das ferramentas essenciais à sua emancipação, num esforço secular por parte das classes dominantes, permaneceram agrilhoados os trabalhadores. À data em que proferida foi a conferência em questão, a situação de exploração mantinha-se em crescendo. Da forma como o colocou Caraça, estaríamos perante a “falência completa no campo da moral (…) e a falência total no campo económico” cujos óbvios constrangimentos impunham entraves à luta. A moral de Bento de Jesus Caraça será outra, avessa à moral burguesa, como havia de esclarecer, em 1974, Álvaro Cunhal, em A Superioridade Moral dos Comunistas: essa moral “tem a sua base objectiva nas condições de trabalho e de vida do proletariado, no processo da sua luta contra o capital”. A visão de cultura que Caraça acolhe e apura não é decorativa; é igualmente comprometida com um processo de luta e a libertação urgente dos interesses das classes dominantes, que se apropriam ilegitimamente de mais-valias, alienando os trabalhadores. É com base nesta necessidade que sugere uma relação dialéctica entre o individual e o colectivo aplicada às lutas sociais, pois que o desenvolvimento da sociedade se dá nessas duas frentes: “o esforço individual parece assim como indispensável para o progresso do agregado que, sem ele, permaneceria sempre tal qual nasceu”. Há que realçar, no entanto, que esta dinâmica prevê a “dissolução” do individual no colectivo e que estamos perante um erro grave acaso essa fase essencial ao progresso logo degenere, escorregando para o domínio do individual sobre o colectivo, e permitindo que um grupo restrito decida o futuro de todos. Esse conflito entre a afirmação colectiva, que beneficiará o futuro dos trabalhadores, e a afirmação individual, que poderá deitar esse projecto por terra, é um problema que Bento de Jesus Caraça não deixa de examinar. Assim sendo, o problema central passa pela criação de condições que promovam a harmonia entre o homem-individual, o homem-genérico e a Natureza, implicando essa empreitada a produção de novas ideias e a sua socialização, num quadro de convergência entre a actividade intelectual e a actividade política. Se o domínio do individual se refere a uma pretensão segundo a qual apenas um reduzido número de indivíduos está apto para conduzir o povo a desígnios de interesse colectivo, este assenta no privilégio das elites que, sistematicamente, negam a educação às massas. As elites que, aliás, só prosperam nessa lógica de exclusão das massas trabalhadoras no que concerne ao acesso a bens, que reservam para si mesmas.

Mas já vimos que não existe fatalismo em história: “a cultura não deve ser património de uma elite (…) esta deve reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria”. É esta a missão que atribui à sua geração, em 1933, e que, entretanto, não está de todo desactualizada. Neste contexto, a cultura exige a dialéctica entre o eu e o nós, mas o eu, o indivíduo, não existe para si – existe, na Terra, como executor de um projecto colectivo que deverá ocupar um lugar central na sua vida. E a sua vida será tanto mais plena quanto mais solidárias forem as relações sociais que mantém. Torna-se, então, evidente que “um reforçamento ao máximo da personalidade do homem (…), por virtude da sua realização, permitirá o desaparecimento do antagonismo entre o individual e o colectivo”. Caraça também nos diz como atingir essa plenitude, não isolando cada um dos problemas sociais, mas antes concluindo que os mesmos estão interligados. Por essa razão, realça a importância da independência financeira como condição obrigatória para que o homem possa – num tempo em que o ensino não é garantido pelo Estado – cultivar-se livremente: “o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar”.

Mas, afinal, o que é um homem culto?

Segundo Bento de Jesus Caraça, o homem culto pode definir-se considerando três aspectos fundamentais: “1) tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; 2) tem consciência da sua personalidade e dignidade que é inerente à existência como ser humano; 3) faz do aperfeiçoamento do seu interior a preocupação máxima e fim último da vida”. Ora, em nenhum ponto o homem culto é, forçosamente, um intelectual com relógio de bolso, um apreciador de Mahler ou alguém capaz de citar de cor a Ilíada. Pois se algum homem ou mulher tiver essas capacidades sem ser consciente quanto ao lugar que ocupa na sociedade, não agindo de acordo com os interesses da sua classe, não é realmente culto, na acepção que Caraça avança. Eis que a sua prioridade é inequívoca e a utilidade da cultura também – o homem culto e libertado não será um traidor da sua classe.

A comparação que faz, entre o “sábio arqueólogo” e o “camponês incomparavelmente mais culto” vai nesse mesmo sentido e não poderia ser mais clara: “há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios”, já que, se o objectivo central é a tomada de consciência das massas, a forma como olhamos para a cultura terá de ser pragmática; terá de constituir uma ferramenta para toda a humanidade “resolver o seu próprio problema (…) refazer tudo”. Caraça considera, portanto, que um sábio não está necessariamente apto para ser um agente de mudança; este pode, ao mesmo tempo, ter um conhecimento impressionante acerca do Império Mogol ou da constituição química de Neptuno, e não estar ciente dos seus direitos ou de como ser solidário. A tarefa que a humanidade esclarecida terá de realizar poderá envolver, inclusivamente, tornar cultos os sábios que ainda não o são. Essa longa jornada de luta culmina no esperado “despertar da alma colectiva das massas”, ponto de partida de uma tarefa maior, e, “ou ela (a classe operária) a realiza e ascendemos a um estado superior de unidade, ou fracassa, e amanhã assistiremos a um novo gesto de renúncia e o individual continuará a sobrepor-se ao colectivo numa adulteração criminosa da moral social”. Essa adulteração, esse insucesso, dá-se, precisamente, porque a sociedade inteira é mais lenta no processo de aquisição de cultura do que o indivíduo. É a isso que Caraça chama “um retardamento do colectivo em relação ao individual”. No entanto, afirma que tal não sucede devido ao desinteresse do povo pelo património cultural, justificando: “o facto de todos os alargamentos da civilização impostos pelas massas trazerem imediatamente, como consequência, uma maior facilidade de acesso à cultura” é a prova. Este parecer faz-nos retomar a urgência da resolução dos problemas sociais que afrontam os trabalhadores, pois são esses problemas, que monopolizam a vida e se apresentam como geradores infinitos de inquietações, que limitam a participação activa de cada um e impedem a fruição cultural.

A cultura e a educação, menosprezadas pelo dito Estado Novo, assumem-se na obra de Bento de Jesus Caraça como a preocupação mais recorrente: não são um luxo ou um privilégio; são um direito e um factor fundamental para a igualdade entre seres humanos. Em 1933, apenas seis anos após o Golpe Militar de 28 de Maio de 1926, e 41 anos antes da Revolução de Abril de 1974, à qual não pôde assistir, Bento de Jesus Caraça é um revolucionário na teoria e na prática; tão revolucionário quanto as ideias que desenvolvera. “O poder revolucionário de uma ideia”, por sua vez, mede-se “pelo grau em que interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua”. O desafio que propõe, de construir o futuro a partir de uma elevada compreensão do significado humano, conseguida através da democratização da cultura, não tem o seu poder revolucionário esgotado: “o que o mundo for amanhã, é o esforço de todos nós que o determinará”. Sem cultura, não será possível mudar o mundo para melhor e é por essa razão que ela, em Caraça, surge sempre associada à educação. Cada um destes conceitos depende do outro, apetrechados que estão de um imenso potencial político e revolucionário.

3. O papel da Universidade Popular Portuguesa e a Biblioteca Cosmos

A concepção universalizante e universalista de cultura em Bento de Jesus Caraça foi o início de uma polémica, entre o próprio e António Sérgio, que preencheu oito volumes da revista Vértice. Acaba por ser um excelente postal do idealismo elitista que predomina na academia e se revela verdadeiramente aquando confrontado com o materialismo. Em suma, Caraça afirma, em Conceitos Fundamentais da Matemática (1941-42), que a ciência é parte integrante da cultura e que, por isso mesmo, deveria estar ao alcance de todos, advogando a “simplicidade máxima na forma de exprimir” e o “rigor máximo na forma de expor” como forma de desmistificar os conceitos científicos para, assim, poderem ser compreendidos pelo homem comum. António Sérgio discorda, dizendo que “não há resumos nem vulgarizações possíveis”, pois “o que torna interessantes os problemas é a sua dificuldade” e “o vulgarizador, quase sempre, assemelha-se a um professor de equitação que para facilitar as coisas suprimisse o cavalo”. À reivindicação da cultura e da educação para todos, em prol da libertação, António Sérgio responde com sarcasmo, sintoma de uma elite que sente estar em risco; que receia deixar de ser a detentora, por excelência, dos mais elevados graus de conhecimento. Sérgio mascara, de certo modo, o seu profundo idealismo, vendendo-o como uma defesa do “valor da ciência”. O valor que lhe dá, contudo, é um que o obriga a conservar a ciência num cofre-forte longe das massas, visando apenas o usufruto de poucos. Caraça não reconhece, por conseguinte, valor a uma linguagem metafísica e/ou essencialista, considerando-a não mais que uma “evasão da realidade em que mergulhamos” e que “não tem um sentido preciso”. Em Ontologias da «Práxis» e Idealismo (1986), Barata-Moura acrescenta: “o cativeiro da filosofia numa consciência constituinte ou meramente possibilitadora do «ser» (…) é fundamentalmente um aprisionamento no idealismo, quaisquer que sejam os disfarces ou enfeites com que se pretendam remoçar as suas cadeias”. É uma lógica materialista e ligada à realidade concreta que move o pensamento de Bento de Jesus Caraça, e é a sua filosofia posta em prática, no que tem que ver com a sua acção na UPP e a fundação da Biblioteca Cosmos, que ocupará este capítulo.

Acerca dos idealistas, desabafa: “tivessem a coragem, aliás, fácil, de se voltarem para o real”, em vez de andarem perdidos nos labirintos do espírito, pois, como também evidenciara Lévi-Strauss, “quem começa por se instalar nas pretensas evidências do eu nunca mais de lá sai”. Quanto a si, Caraça começaria uma dura batalha pela massificação do ensino, em Portugal, concedendo às universidades populares um papel fundamental na instrução da classe operária. As universidades populares, fundadas em 1919 e extintas, pelo regime, em 1945, não tinham como finalidade ministrar o ensino regular, mas promover a cultura e a educação geral entre as camadas populares, como bem esclarecem os seus próprios estatutos. Evidentemente, a repressão e a censura não ajudaram a UPP a cumprir a sua tarefa. Em 1928, estava a UPP enfrentando um período de estagnação e o nome de Bento de Jesus Caraça é proposto, por António Ferreira de Macedo, para ocupar o cargo de Presidente do Conselho Administrativo. Tendo aceitado o desafio, Caraça desenha, de imediato, um plano de acção para esta instituição, que configura um esforço de compensar, através dos meios da UPP, a negligência, por parte dos governantes, relativamente à educação. De acordo com os Censos, no início dos anos 20, a taxa de analfabetismo em Portugal era de 66,2%. Ou seja, 58,1% dos homens e 73,3% das mulheres – percentagem reveladora do enorme fosso de desigualdade – não sabiam ler nem escrever. O que a breve república pré-golpe militar não conseguiu resolver, a ditadura fascista perpetuou. A missão de Bento de Jesus Caraça, na UPP, era árdua e este cedo incentiva à criação de um conselho pedagógico, convidando prestigiados vultos da área da educação como Jaime Cortesão, António Sena Faria de Vasconcelos e o próprio António Sérgio, entre outros, para integrá-lo. Em 1929, desata a publicar escritos relacionados com a UPP, que denunciam problemas velhos e novos. Destaca a pobreza do ensino oficial e o facto de a maior parte dos alunos não ter possibilidades de ir além da 3ª ou 4ª classes, fazendo com que estes, querendo continuar a cultivar-se, só o pudessem fazer com leituras “sem uma orientação definida e lançando portanto a confusão onde deveriam levar a ordem e a metodização de conhecimentos”. Ora, “a UPP pretende precisamente dar remédio a estes inconvenientes”, tendo a regularidade das leituras orientadas uma função basilar na difusão de conhecimentos gerais. Caberia aos orientadores a selecção de obras que considerassem pertinentes, de acordo com os interesses de cada um dos que procurassem integrar-se na UPP.

Se a instrução era negada ao povo pela burguesia, para que este permanecesse às escuras quanto ao seu papel na história, cabia à UPP dar uma mãozinha na emancipação dos trabalhadores, mesmo reconhecendo os seus limites. A intenção é explícita: se a escola oficial não servia as populações, a UPP deveria “preparar a classe operária para o desempenho da sua missão – o estabelecimento de justiça sobre a terra”. Foram intensificadas as relações da UPP com organizações operárias, procedendo à nomeação de um representante de todos os sindicatos operários de Lisboa, que teriam o dever de fazer a ligação entre o seu sindicato e a UPP. Se dúvidas restassem, Caraça esclarece que nem toda a cultura teria ali palco, sendo esta instituição convictamente anticapitalista. As metas por si delineadas, perante o Conselho Administrativo, em 1930, assentam na necessidade de a classe proletária, “num futuro mais ou menos próximo, tomar nas suas mãos a direcção dos destinos do mundo, transformando por completo toda a organização social existente”. Incumbia à UPP converter-se num motor para a consciencialização dessa classe. E, mais ainda: “o sistema capitalista, essência e armadura da dominação burguesa, gerou a exploração do homem pelo homem, como consequência do espírito do lucro de alguns à custa do trabalho de muitos”. Assim sendo, se a cultura e a educação não forem libertadoras e não servirem, como devem, a emancipação proletária, não estarão a cumprir a sua função.

Eram privilegiados, na UPP, diversos tipos de iniciativas, abertas a todos. Palestras, conferências, exposições e sessões de cinema, além, naturalmente, das leituras orientadas, tiveram ali lugar, num esforço hercúleo de livre difusão de ideias e conhecimento. Abrangia-se, dessa maneira, o estudo de diferentes doutrinas sociais, história global e diferentes expressões artísticas como vector de aproximação entre seres humanos; eram abordadas questões jurídicas e sobre o trabalho; discutiam-se assuntos prementes, dilemas fundamentais do mundo contemporâneo e livros contra a guerra. O cinema, que era ainda uma jovem arte, surgia como um precioso material didáctico e, por esse motivo, foi criada uma cooperativa de cinema educativo, na sequência da conferência Origem, evolução e função social do cinema. Assim era compreendida a aquisição da cultura integral e a instrução, “e não como um conjunto de coisas que estão escritas nos livros e que os estudantes têm de decorar”. A defesa, por Bento de Jesus Caraça, da abolição dos privilégios perante a cultura e o modelo de educação que introduz publicamente estão entre as razões pelas quais começa a ser perseguido pela PIDE.

Sabendo que só o Estado teria o poder de democratizar a cultura e a educação e que, para tal, a ferramenta ideal seria a escola pública, que haveria de ser “gratuita em todos os seus graus – primário; secundário; superior”, sabia também que a UPP, já frequentemente ameaçada, não tomaria conta de tudo. Começa, desde então, a pensar a Escola Única – aquela que poria fim ao privilégio, seja ele financeiro ou de sexo; que, sendo única e universal, consagraria a todos a formação básica. Em primeiro lugar, era essencial que o Estado sustentasse todos aqueles que a frequentassem, pois ainda que fosse teoricamente gratuito frequentar a escola primária, durante três ou quatro anos, os manuais escolares e os restantes materiais eram pagos, seleccionando, à partida, quem poderia realmente frequentá-la e remetendo os mais pobres à ruralidade. Na conferência de 1935 à qual dá, precisamente, o título de Escola Única, defende então “uma só condição, uma só dignidade, uma só escola”, para que impere a justiça em detrimento da desigualdade. Defende também o laicismo e a coeducação, isto é, o fim do modelo que separa os alunos de acordo com o sexo: “está no reconhecimento, hoje quase unânime no mundo pensante, de que não há, além das naturais diferenças fisiológicas, nada que inferiorize a mulher em relação ao homem em face da cultura e que nada justifica, portanto, uma escola diferente para cada um dos sexos. A sua formação humana deve ser a mesma; as diferenças, quando tiver de as haver, pertencerão às escolas profissionais especiais e não à formação cultural básica”. Avança ainda que, “enquanto a Escola não seguir no seu ensino a orientação exposta, não será um instrumento de liberdade e progresso mas sim um impeditivo de felicidade, liberdade e justiça sociais”.

Em 1946, numa outra conferência – Aspectos do panorama cultural português – realizada n’A Voz do Operário, regressa ao problema da educação, adaptando o seu discurso à nova década: o fecho das escolas normais, reflexo do crescente desinvestimento, entre 1936 e 1942, corrompeu e elitizou ainda mais o ensino infantil, convertendo-o numa miragem para os mais carenciados. A criação da figura do “regente escolar”, que veio substituir o professor primário, vinha contaminando cada vez mais o ensino com a febre da repressão fascista. Desta vez, viera salientar as deficientes condições de trabalho e o medo que tão rapidamente se apoderara “da quase totalidade da população portuguesa”.

A par do seu trabalho incansável, na UPP, está a criação, em 1941, da Biblioteca Cosmos, que permanece um marco luzidio na história da cultura, em Portugal. Defensor de que não eram a razão e a justiça que estavam em crise, mas os meios de as impor, funda esta Biblioteca Cosmos como mais um espaço alternativo onde o povo poderia encontrar, ao seu serviço, materiais que o Estado negava. Com esta iniciativa, propõe insistir na livre difusão de ideias e na des-individualização do conhecimento. Ao apresentar ao público a colecção, clarifica as suas intenções: “Quando acabar a tarefa dos homens que descem das nuvens a despejar explosivos, começará outra tarefa – a dos homens que pacientemente, conscientemente, procurarão organizar-se de tal modo que não seja mais possível a obra destruidora daqueles. Então, com o estabelecimento de novas relações e de novas estruturas, o homem achar-se-á no centro da sociedade, numa posição diferente, com outros direitos, outras responsabilidades (…) A Biblioteca Cosmos pretende ser uma pequena pedra desse edifício luminoso que está por construir”. Entre 1941 e 1948, ano da morte de Caraça, as Edições Cosmos publicam 114 títulos, correspondendo a uma tiragem de quase 800 mil exemplares, na totalidade, e divididos pelas suas sete secções: Ciências e Técnicas; Artes e Letras; Filosofia e Religiões; Povos e Civilizações; Biografias; Epopeias Humanas; Problemas do Nosso Tempo.

4. Em gesto de conclusão

É seguro dizer que, com Bento de Jesus Caraça, o marxismo ganha expressão na cena teórica portuguesa, bem como no debate nas instituições académicas, num tempo particularmente difícil. Um tempo em que irrompiam diversos autores, nomeadamente modernistas e futuristas, “a advogar o afastamento dos proletários da ideia de cultura”, sustentando tal ideia com a crença de que a cultura nos separa e nos afasta dos desígnios da civilização. Para Caraça, que muito se bateu pela união, a solução não jazia no fim da cultura, mas previa arrancá-la das mãos da burguesia, que a perverte, para logo poder avançar rumo ao futuro desejável. Como constatara Gramsci, “a crise consiste, justamente, no facto de o velho estar a morrer e o novo não poder nascer” – é essencial criar condições materiais e políticas para que o novo possa, enfim, nascer; é necessária uma ruptura com o velho para que a sociedade nova possa prosperar além das fronteiras do pensamento. Por seu turno, António Pedro Pita terá escrito um dos reparos mais cristalinos acerca do feitor da grande obra em apreço: “Bento de Jesus Caraça não tem a história no bolso”. E é isso mesmo que o distingue, pelo que, sem mais demoras, lembremos a importância de Bento de Jesus Caraça, intelectual rigoroso que sistematizou as aspirações proletárias e entendia a cultura como um processo orgânico de desmistificação – e não de complexificação labiríntica – essencial à tomada de consciência das massas e à “mudança das coisas exteriores ao homem”,  que acabará de vez com as milenares barreiras impostas à sua felicidade. Lembremos a coragem de quem dá vida às palavras e, por fim, “eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida”.

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Referências bibliográficas:

BARATA-MOURA, José, Ontologias da «Práxis» e Idealismo, Lisboa, Editorial Caminho, 1986.

CARAÇA, Bento de Jesus, A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo, Lisboa, Editorial «Avante!», 2021.

CARAÇA, Bento de Jesus, Conferências e Outros Escritos, Lisboa, 1978.

CARAÇA, Bento de Jesus, Conceitos Fundamentais da Matemática, Gravida, 1998.

CUNHAL, Álvaro, A superioridade moral dos comunistas, Editorial «Avante!», Lisboa, 1974.

PITA, António Pedro, Para Situar a Filosofia da Cultura de Bento de Jesus Caraça, Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXXVII, 1992.

PITA, António Pedro, Bento de Jesus Caraça: Crise e Enciclopedismo, Revista Intellectus, Vol. II, 2003.

1 Comment

  • Maria Ferreira

    26 Maio, 2023 às

    Muito bom.

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