A ameaça comunista e o revisionismo histórico – entre o Tiktok, o 25 de Abril e “Holodomor”

Internacional / Nacional

Três coordenadas exemplares

1) “Sabe de outros empregados da ByteDance [empresa chinesa de tecnologia que detém o TikTok] que façam parte do Partido Comunista Chinês?” pergunta, pleno de hostilidade, Dan Crenshaw, congressista representante do Estado do Texas, a um visivelmente incrédulo Shou Chew, CEO do TikTok, durante a audiência congressional estadunidense ocorrida no final do passado mês de Fevereiro.

2) “Não podemos esquecer que a Primavera de Abril só é possível porque o Outono de Novembro impediu males maiores”, “A corrupção não era tolerada nem se conhecem episódios antes do regime democrático,” proferem os deputados municipais da IL e CH, respectivamente, no passado dia 25 de Abril em sessão solene na cidade de Setúbal.

3) “Este horror teve a sua origem no Kremlin – aí, o ditador tomou a cruel decisão de promover a colectivização forçada e provocar a fome”, afirma Robin Wagner, deputado dos Verdes (partido da coligação no poder) a propósito da resolução aprovada no Parlamento Alemão, a 30 de Novembro de 2022, instituindo “Holodomor” como genocídio.

A ameaça comunista

A ideologia (da classe) dominante, incutindo-nos a alienante ideia de que a transformação radical é, não só infrutífera, mas terminantemente impossível, deixa-nos o capitalismo como “único caminho possível”, “o único que resulta”, “o único que se comprovou empiricamente resultar”. Esta posição ideológica esconde continuamente o seu reverso: escolhe-se o capitalismo pela ausência, isto é, pensa-se o capitalismo a partir da inexorável ameaça da sua oposição, o comunismo. E é a partir do descartar deste seu reverso, o seu suposto negativo, que o paradigma capitalista é idealizado como única forma sustentável de organização humana.

Reconhecendo as contradições estruturais do capitalismo, a sua efectiva derrota, e a necessária (e concretizável) alternativa, o comunismo constitui a mais terrível ameaça ao presente sistema de exploração e expropriação. E é intuindo, naturalmente, na ameaça comunista, a dissimulada insustentabilidade absoluta e global do capitalismo, que o neo-liberalismo e neo-conservadorismo tecerão as mais fantasiosas fabulações sobre a impossibilidade última do comunismo. Para tal, servir-se-ão de uma fiel e persistente ferramenta de alienação, máquina da propaganda de classe: o obtuso anti-comunismo elevado a paradigma de interpretação histórica do século XX, i.e., o revisionismo histórico como se viu legitimado, no Ocidente, a partir do final da década de 1980.

O revisionismo histórico

A querela dos historiadores alemães, “Historikerstreit”, iniciada em 1986, é palco de um despontar, não sem cerrada e valorosa oposição, de um flagrante branqueamento do nazi-fascismo através desta lógica de viciosa condenação do comunismo.
Ernst Nolte, influente historiador alemão conservador, vinha defender a natureza dos crimes do nazi-fascismo como resposta compreensível e necessária à União Soviética. Localizando o genocídio Nazi num fantasioso contexto de guerra civil global que teria tido início com a Revolução de Outubro de 1917, desconsiderava e branqueava, deste modo, o manifesto carácter antissemita do nazi-fascismo, posicionando-o como vítima. Numa ginástica intelectual pueril, anedótica não fosse tão grave, Nolte aponta o povo Judeu como responsável pelos massacres que teriam sido levados a cabo pelos Bolcheviques, face aos quais os Nazis teriam concluído haver necessidade de extermínio daquele enquanto, a um tempo, retaliação e medida preventiva. O revisionismo histórico é assim colocado, seguindo o exemplo da propaganda Nazi, ao serviço de uma renovação nacionalista da identidade alemã cúmplice absoluta dos valores do nazi-fascismo.

É Habermas, herdeiro de Adorno, que lhe lança o mais feroz desafio, respondendo directamente a Nolte em “A Kind of Settlement of Damages: The Apologetic Tendencies in German History Writing” (1986). O autor acusa esta estratégia relativista – de comparação grosseira entre o regime nazi-fascista e o soviético – de permitir que os crimes daquele regime percam a sua singularidade e tremenda magnitude. Com o contributo de Habermas e demais historiadores ligados à segunda geração da Escola de Frankfurt, Nolte é, à época, isolado na arena do debate alemão.

Poucos anos volvidos, a queda da URSS e o aparente findar da “guerra fria” vêm, ao contrário do que poderia ser esperado, exacerbar a reacção revisionista à “ameaça comunista”, não fosse o ideal comunista continuar a germinar nos punhos dos trabalhadores e tornar a erguer-se. É neste contexto que o anteriormente desacreditado Nolte é recuperado como herói encontrando, na historiografia Ocidental, terreno fértil para uma renovada vaga anti-comunista, propagando a ficção de um comunismo infinitamente mais terrível que o nazismo e de uma Revolução Russa como génese do totalitarismo moderno. Assume-se, assim, o anti-comunismo como paradigma histórico e ferramenta essencial para um olhar “sério” sobre o século XX.
Caído o muro, o contexto francês receberia Nolte de braços abertos, com a publicação de vários textos seus e do seu derradeiro elogio por François Furet, seguido da publicação da infame antologia “The Black Book of Communism” editada por Stephane Courtois. De modo análogo, também o contexto Norte-Americano se depara com uma renovada popularização da condenação do passado soviético, reabilitando as teorizações de Nolte e o bafiento revisionismo.

Em todos estes autores revisionistas percebemos uma constante: um altamente superficial e deficiente conhecimento dos factos históricos (em particular, do contexto histórico da URSS), e a consequente carência absoluta de fontes legítimas sobre as quais erguem uma base “factual” profundamente frágil, ostensivamente contraditória, controversa e contestável.
Se ler insofríveis autores como Nolte, Furet ou Courtois nos serve para alguma coisa, será para tomarmos nota da atmosfera de tremenda e irracional fobia face ao projecto comunista e à ameaça que este apresenta para o sistema capitalista vigente. Deixam, inadvertidamente, a descoberto, uma característica essencial do fascismo: a sua natureza contra-revolucionária e anti-comunista. É precisamente esta natureza que determina o monstruoso empenho em branquear a sua genealogia.

1) O TikTok e a renovada vaga da ameaça vermelha

O TikTok, aplicação de vídeos que ganhou popularidade sem par entre as gerações mais novas nos últimos anos, é levado a Congresso sob a ideia de protecção da juventude norte-americana face a uma terrível influência chinesa e comunista. A potencial proibição do uso da aplicação em solo estadunidense é, pois, discutida numa audiência surrealista nos mais variados aspectos: da ignorância grotesca dos membros do congresso sobre a matéria de facto, à fantasiosa conspiração sobre a recolha de dados de cidadãos americanos pelo Partido Comunista Chinês.
É difícil não estabelecer um paralelo directo entre os moldes em que é conduzida esta audiência e as políticas de McCarthy, na década de 1950, ou a influência de J. Edgar Hoover na política norte-americana da década de 1920. Estas duas iterações daquilo que se tomaria por “ameaça vermelha” (“Red Scare”) – o catapultado medo de uma ascensão do comunismo no Ocidente após a Revolução Russa e a fundação da República Popular da China –, rotulavam qualquer pensamento dissidente como ameaça aos EUA e subversão absoluta dos valores americanos.

Instalava-se um clima de colossal amedrontamento marcado pelo violento acossamento de quem quer que se atrevesse a questionar o status quo, membro do Partido Comunista Americano ou não – pouco importava. O que importava era travar o movimento e organização dos trabalhadores que vinham ganhando, nestes dois momentos históricos, ampla dimensão com as robustas e continuadas greves nos mais variados sectores.
Um patriotismo exacerbado marcava as tensões sociais e políticas das duas épocas e a imprensa fazia eco e amplificava os sentimentos xenófobos e contra-revolucionários correntes. Da criminalização de linguagem tida por “desleal” ao governo dos EUA, da deportação em massa e perfeitamente infundada de cidadãos tidos por “dissidentes”, do aumento brutal da repressão e cargas policiais, em 1918 e 1920, à exoneração e copiosos despedimentos de trabalhadores do Estado por “deslealdade” ao governo dos EUA, aos atropelos legislativos, à constituição de comités dedicados à perseguição activa de suspeitos de actividades “não-americanas” (como seria o fantasma da espionagem soviética), durante a década de 1950.

Quando o ignóbil Crenshaw insiste “Reconhece que muitos empregados da ByteDance carregam o cartão de membro do PCC?” devemos manter-nos alerta. Podemos ter muito pouco interesse no TikTok ou ainda menor comiseração por grandes corporações como a ByteDance e os seus representantes, mas não devemos menosprezar o contexto desta audiência congressional enquanto sintomático de um tenebroso passado e daquilo que, simultaneamente, se avizinha.

2) A reabilitação do fascismo português

Temos assistido nos últimos anos, em contexto português, à consolidação de um esforço quase burlesco de revisionismo histórico, particularmente exacerbado durante os meses de Novembro e Abril. Bebendo do populismo que assegura a propagação dos odiosos discursos da extrema-direita, um abominável sensacionalismo vai-se contorcendo na justificação de uma narrativa ideológica que ignora e obscurece o conhecimento histórico de reconhecida base científica e metodológica.
Os discursos proferidos na sessão solene do 25 de Abril em Setúbal são fruto dessa mesma sucessão de saudações ao 25 de Novembro e seus abjectos protagonistas que vão, por todo o país, normalizando e branqueando o carácter fascista e profundamente contra-revolucionário deste momento de absoluto pesar na história do país. Intenso e longo esforço contra-revolucionário que culmina no cobarde golpe militar, apoiado pelos sectores mais reaccionários da sociedade portuguesa, pelos sectores esquerdistas, pelo PS e pelas potências europeias, EUA e NATO, tenta pôr fim ao processo revolucionário iniciado com a Revolução de Abril. Para credibilizar tão desprezível data é preciso descredibilizar as extensas e incomparáveis transformações trazidas por Abril; para esquecer o potencial (ainda) revolucionário de Abril, é preciso reescrever o 25 de Novembro num esforço de deliberada repressão e apagamento, sob um filtro de orientação universalista de valores. Recordamos, a este propósito, os obrigatórios textos do Ricardo e do André.
Caminhando sempre a lado de um esforço boçal pela propagação da ficção de um colonialismo português de bondade e brandura, a reabilitação do 25 de Novembro e do fascismo português tenta encerrar a nossa memória histórica na mão de quem sempre nos explorou e explora ainda. Este engodo serve, pois, o leque infindável de políticas de direita feitas em cima da arcaica chantagem da maioria absoluta.

3) A UE, carrasco anti-comunista

A resolução aprovada a 30 de Novembro passado, no Parlamento Alemão, vem declarar “Holodomor” como extermínio em massa do povo ucraniano por meio de uma extensa fome arquitectada pela URSS. Esta falsificação histórica, de génese na velha e fantasiosa propaganda nazi, aceita acriticamente fontes desprovidas de qualquer valor factual à revelia de toda a estabelecida – e factualmente comprovada – produção historiográfica séria sobre o assunto. Lembramos a valiosa entrada no Dicionário de Confusões Conceptuais, do António.
Apagando, da História, a luta de classes e a apropriação colectiva dos meios de produção que caracterizou a URSS – que no final da década de 1980, havia erradicado o desemprego e permitido que a família trabalhadora comum conseguisse facilmente suprir as suas necessidades materiais imediatas, tendo amplo acesso a habitação, bens essenciais (que aliás mantinham os preços da primeira metade da década de 1960) e a outras comodidades (que, no caso da rádio ou televisão, entre outros tantos, tinham visto o seu preço significativamente reduzido) –, o caminho fica aberto para a democracia burguesa como única alternativa concebível.

A fantasia da direita nacionalista que conduz a esta declaração sobre “Holodomor” cabe numa generalizada e abjecta tendência que se empenha em fazer confluir fascismo e comunismo, vilificando este último. Veja-se a aprovação – com 535 votos a favor, 66 contra e 52 abstenções –, a Setembro de 2019, em sede de Parlamento Europeu, da resolução que condenava fascismo e comunismo como duas faces da mesma moeda, apagando necessariamente os seus contextos históricos, relativizando os crimes cometidos pelo regime nazi e retomando, não obstante de modo mais ou menos velado, a lógica de derivação já presente em Nolte – o genocídio de Judeus enquanto cópia de um “extermínio de classe” levado a cabo pelos Bolcheviques.
Será importante lembrar, pela sua proximidade lógica a este contexto, as respostas de Domenico Losurdo e Enzo Traverso ao revisionismo histórico de Nolte. Em “War and Revolution: Rethinking the Twenthieth Century,” Losurdo lembra que a génese do projecto nazi-fascista não se esgosta, evidentemente, na dimensão reactiva, de simples resposta aos avanços bolcheviques; está, antes, irredutivelmente ligada ao modelo anglo-americano de colonialismo. O revisionismo histórico esforça-se, pois, segundo Losurdo, por negligenciar e branquear a violência que caracteriza a história do liberalismo clássico e o seu visceral vínculo ao colonialismo, culminando na reabilitação e celebração da tradição colonial na figura do Terceiro Reich e do imperialismo Japonês. De modo análogo, Traverso defende, em “The New Anti-Communism: Rereading the Twentieth Century” (2007), que não lidamos com teses no revisionismo histórico, mas com uma espécie de colecção de citações que enformam uma certa ambiência em relação à qual os autores mostram não ter qualquer tipo de distância crítica. Traverso lembra que Nolte acabaria por tropeçar, inadvertidamente, numa verdade histórica que importará manter presente: a natureza contra-revolucionária do fascismo que se viu ameaçada, como aliás toda a europa burguesa, pelo sonho soviético. A classe dominante sentir-se-á continuamente sob ataque enquanto a dialéctica revolucionária clamar que o fascismo é a mais perniciosa face do capitalismo.

Contra-coordenadas

Lidamos hoje com os enraizados e perniciosos tentáculos do paradigma desconstrutivista, fruto maior da tradição pós-modernista que tudo abarcou no contexto académico e que vai impregnando, de relativismo histórico e demais falácias, todas as áreas da vida humana. Abre-se terreno fértil para um questionar da realidade histórica, material, em função de plurais verdades “posicionais” que validam qualquer interpretação histórica sem necessidade de a ver sustentada por factos comprováveis ou fontes credíveis.
Isto apresenta-se, naturalmente, muito distante da necessária actualização histórica com base em factos verificáveis, que não iliba a historiografia de se submeter continuamente a crivo crítico. O objectivo do revisionismo histórico não é o aprofundar do conhecimento humano mas uma sua manipulação e destruição, abrindo mão de qualquer semblante de método científico sério em prol da fabulação de eventos factualmente inverificáveis. Este espaço é evidentemente usurpado pelo esforço da extrema-direita na distorção e falsificação da história com base em concepções reaccionárias e ardilosas do passado e presente, desacreditando factos e fenómenos historicamente comprováveis e legitimando um discurso fantasioso sobre o passado e o mundo, num esforço último por erradicar a tradição revolucionária, denegrindo a história das lutas emancipatórias. A sua propagação acrítica não mais é que exemplo das tentativas conservadoras do neo-liberalismo em reprimir uma alternativa comunista reabilitando o seu contrário.

As largas e consternadoras coordenadas revisionistas de que os três casos apontados neste texto são ínfimo exemplo, dizem-nos de uma cartografia que aponta para uma mesma coisa: a apologia do liberalismo numa cristalização da ideia do capitalismo como intransponível horizonte da contemporaneidade. Lembramos Jodi Dean em “The Communist Horizon” (2012), que avança, em contraponto, um “horizonte comunista” como dimensão da experiência que não podemos perder de vista “mesmo que, perdidos no nevoeiro ou focados nos nossos pés, falhemos em olhá-la”. É este horizonte que deve suplantar aquele outro que vemos desdito pela realidade material: o mito da invencibilidade do capitalismo não é conciliável com a realidade do estado de permanente emergência económica em que as políticas neo-liberais afundam os países e os povos.

É o potencial borbulhante da luta e solidariedade colectiva, dos sindicatos de classe, das transversais reivindicações por igualdade e por uma vida mais justa, o único capaz de travar a consolidação daquelas coordenadas reaccionárias em realidade concreta. No horizonte da sua destruição está um modo de produção e distribuição distinto, justo e igualitário – de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades. A todos os trabalhadores o alerta da dureza das lutas que se aproximam, a todos os trabalhadores a inexorável coragem de as travarmos.

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