Na passada sexta-feira o primeiro-ministro, de visita a Moçambique, fez um pedido de desculpas pelo Massacre de Wiriyamu. Foi o quebrar da nossa versão do “Pacto del Olvido”, e afronta uma série de gente. Durante décadas o Massacre de Wiriyamu (entre outros) foi olimpicamente ignorado. Mas aconteceu.
O que aconteceu em Wiriyamu, Djemusse, Riachu, Juwau e Chawola, com o nome de código “Operação Marosca”, foi um chacina organizada e concertada, com direito a bombardeamento levado a cabo por quatro caças-bombardeiros e uma incursão terrestre com elementos dos Comandos, Grupos Especiais de Pára-Quedistas, o Batalhão de Caçadores 17 e agentes da PIDE. Centenas de pessoas, muitas delas mulheres e crianças, foram mortas com um requinte de malvadez de dar a volta ao estomâgo. Transcrevo abaixo uma descrição feita pelos padres que acudiram aos sobreviventes, que consta da reportagem “A Guerra”, do jornalista Joaquim Furtado:
“os militares cercaram as povoações de Wiriyamu e Juwau, cujas populações estavam já em pânico, devido aos bombardeamentos. Depois juntaram parte da população no terreiro,obrigando-a sentar-se no chão em dois grupos,um de homens, outro de mulheres. Um dos soldados escolhia então a sua vítima – homem, mulher, ou criança. O designado punha-se de pé, destacava-se, o soldado disparava e a vitima caia fulminada. O relatório identifica 85 mortos, a maioria sacrificados por este processo, enquanto soldados obrigavam pessoas a entrar para as cubatas,que depois incendiavam, morrendo assim várias pessoas. Outras vezes, antes de lançarem fogo às palhotas, atiravam para dentro delas granadas, que explodiam sobre as vítimas. Mortas por este métodos o relatório conta 36 pessoas. Identifica mais 14 vítimas, enumera outras, massacradas de diversas formas, muitas vezes sob o aplauso de outros militares. Havia espancamentos até a morte, soldados que violavam e sacrificavam mulheres e outros que matavam crianças, agarrando-as pelas pernas e arremessando-as contra o solo ou contra as árvores. relatado o caso de uma criança que chorava pela mãe fuzilada que um soldado matou, com um forte pontapé, esfacelando-lhe a cabeça. E situações idênticas com mais crianças. A uma menina que chora, um soldado simulando um biberão mete-lhe o cano da arma pela boca, grita “Chupa!” e dispara. A uma mulher grávida é retirado o feto e a ambos é lançado fogo.”
Foi isto. Em nome do estado português. Uma página negra na nossa história, na nossa memória colectiva, que não foi caso isolado. Aconteceu um massacre em Wiriyamu, como aconteceram massacres em Batepá (São Tomé – 1953), Pidjiguiti (Guiné-Bissau – 1959), Mueda (Moçambique – 1960), Baixa do Cassange (Angola – 1961), etc. São vários os casos de militares portugueses que mutilavam cadáveres para recolher troféus de guerra. O meu pai, que foi aluno no Instituto dos Pupilos do Exército em finais de 60 e inícios de 70, teve um instrutor dos Comandos cuja bolsa do tabaco era feita da pele do seio duma negra. O Marcelino da Mata contou, em discurso directo e sem o menor pejo, no documentário “Anos de Guerra – Guiné 1963-1974”, o que fizeram a um membro do PAIGC que apanharam: “Cortamos-lhe a piça e metemos na boca.”
Portanto, neste contexto, o que interessa o pedido de desculpas do Costa? Pouco ou nada. Reconhecer que o que aconteceu foi um massacre, logo, um crime de guerra, implica, no mínimo dos mínimos, retirar postumamente todas as condecorações ao Jaime Neves, responsável operacional dos Comandos em Moçambique à data do acontecimento. Importa tornar público tudo isto, dá-lo a conhecer às massas, lecioná-lo, condenar o fascismo e desmontar décadas de propaganda do regime sobre a brandura e bondade do colonialismo português. Como dizia um amigo historiador há uns dias, “História não é passado, História é presente”. Está a ser feita neste momento, e como parte da superestrutura da sociedade, também ela é palco da luta de classes. Não há 25 de Abril ou 25 de Novembro em que uma parte significativa da direita (onde incluo, obviamente, o PS) não louve a figura de Jaime Neves por ter salvado o país duma “ditadura comunista”. Essa mesma direita fez questão de prestar honras fúnebres a Marcelino da Mata.
Ou resgatamos das mãos da classe dominante a nossa memória histórica, ou dentro de algumas gerações não há ninguém vivo para contar as coisas como elas aconteceram para o lado dos explorados.