Tornar-se imortal e, depois, morrer: homenagem a Godard

Nacional

No filme À bout de souffle, Jean Seberg, na pele de uma jornalista, pergunta ao escritor famoso encarnado por Jean-Pierre Melville qual é a sua maior ambição na vida. Este tira os óculos escuros e a sua resposta é já proverbial: devenir immortel, et puis, mourir. Tornar-se imortal e, depois, morrer. Na eventualidade de Jean-Luc Godard ter ambicionado o mesmo, é seguro dizer agora que, se alguém o conseguiu, em 91 anos de vida e 63 de cinema, foi o próprio, teimoso como a obra que deixa, bela como um decreto de expropriação

Godard é para várias gerações um capitão, um timoneiro, um avô honorário ou uma criatura fantástica que em boa hora terá rasgado caminho. Foi com ele que muitos começaram a gostar do cinema que o canal Hollywood não mostra; foi com ele que outros tantos perceberam que são de esquerda – impacientes como Anna Karina, curiosos como Anne Wiazemsky e em busca da adorável rebeldia de Jean-Pierre Léaud. Les enfants de Marx et de Coca-Cola, talvez, mas cada vez mais de Marx. Cada vez menos de Coca-Cola. De charuto na boca em cada entrevista, ou empoleirado numa árvore de câmara na mão para que pudéssemos hoje ver as cores do Maio de 68, lembramos o cineasta que fez ao Oscar o que Sartre fez ao Nobel. O Godard revolucionário, a sua verdade 24 vezes por segundo, o filho mais aventureiro do cinema, esse que dizia ser a infância da arte. Uma figura de tal forma omnipresente que aparece até no Google Street View.

I

Realizador-crítico, Godard é inextricável da Nouvelle Vague francesa da década de 1960, cedendo-lhe as coordenadas-génese e construindo, com ela, um contra-cinema permanentemente insubmisso. Vendo no cinema uma ferramenta de solidificação da consciência de classe e de um programa político marxista, herda de Eisenstein um novo conceito de edição, onde a narrativa é o resultado da combativa sequência de imagens/texto/ideias. Para o soviético e, posteriormente, para Godard, a edição não se cingia ao processo de ligar uma cena à outra, mas era uma forma de, através de um jogo de emoções, fazer passar uma mensagem. No caso de ambos, para expressar, de um modo tão imaculado quanto inovador, a dialéctica mais radical.

Esta Nova Vaga vinha, assim, consolidar-se feroz insurreição à hegemonia do liberalismo norte-americano, cristalizado nas estruturas narrativas do cinema estadunidense que sufocavam o desejo de liberdade. A geração de 68 descobria em Godard um eco do seu descontentamento, mas também Godard descobria nela uma companheira de luta contra um sistema burguês decadente que impiedosamente explorava a classe trabalhadora. Truffaut era o contador das histórias dos insubordinados enquanto Chabrol preferia a intriga; Resnais era o romântico, Rohmer, o abstracto, e Demy, o musical. Rivette seria o mais parisiense do grupo, pensador e renitente como o seu Out 1. Varda, sempre igual a si própria, com tanto de doçura quanto de acutilância, permanece sem paralelo e, por fim, Marker, o mais felino, o documentarista vermelho que ao lado de Godard constituía a frente mais politizada do movimento. Le fond de l’air est rouge. Ao seu lado não faltaram Jean Eustache, Louis Malle, George Franju, Alain Robbe-Grillet ou Marguerite Duras, entre outros teimosos.

Godard abre decididamente mão do sucesso comercial que começava a ter, e assume o anonimato nas produções do Colectivo Dziga Vertov, anunciado que estava o fim do cinema. Integrado nesse colectivo, o cineasta deixou claro que não seria biombo de sala. A sua obra não serviria o entretenimento, mas seria ressonância ousada e firme das reivindicações políticas da classe trabalhadora. É então que no ano de 1968, em solidariedade com o movimento estudantil e operário, o Festival de Cannes, cujo glamour, e não os protestos, tinham por hábito ocupar o mês de Maio, foi suspenso. À frente desta brigada, além do próprio Godard, estavam François Truffaut, Jean-Pierre Léaud, Jean-Gabriel Albicocco e Claude Berri. Juntaram-se Jean-Claude Carrière e os membros do júri Louis Malle, Monica Vitti, Terrence Young e Roman Polanski. Carlos Saura, Claude Lelouch, Milos Forman e Alain Resnais pediram a retirada dos seus filmes da competição. Tal como afirmou Truffaut, se param os comboios e as fábricas, também tem de parar o Festival. A sétima arte estava com os trabalhadores.

II

Que não nos engane a aparente leveza despreocupada da sua primeira longa-metragem, o já citado À bout de souffle. No mesmo ano (1960), Godard fez Le Petit Soldat, que só conheceria o grande ecrã três anos depois. É, nada mais nada menos, do que a dura crítica à Guerra da Argélia que precisava de ser feita. Depois de feita a crítica à guerra num país real, Godard também faz questão de repudiá-la num país imaginário, em Les Carabiniers. Ainda em 1963 temos Desprezo, um dos seus mais deslumbrantes. E eis que a beleza – em Godard, sempre munida de ilimitadas doses de rebeldia, de teoria e de prática – se alonga, no seu esplendor, a Pierrot le Fou (1965), um hino à liberdade. Alphaville, dos seus guiões mais poéticos, uma distopia à moda do film-noir, apresenta-nos a personagem de Lemmy Caution, interpretada por Eddie Constantine, que viria a revisitar em Allemagne année 90 neuf zéro (1991), numa reflexão pós-queda do muro de Berlim. 

Para Godard, cinema não é escapismo, mas o mais sério compromisso com a realidade material. Lembramos Duas ou Três Coisas que Sei Dela (1967), crítica cerrada à superficialidade e à tecnocracia na base da vivência moderna e burguesa, em França, que invoca em “elle” (“ela”) uma pluralidade de acepções: a personagem principal Juliette, a mulher-abstracção, as mulheres reais, a revista de moda Elle, a sociedade de consumo e os ideais burgueses. O filme caminha a passos seguros para a necessidade de destruição da sociedade burguesa e de um novo começo. É na consciência de classe que Godard vê o caminho, estabelecendo, com a câmara, ligações entre as vidas da classe trabalhadora e desmantelando o que a separa. Afinal, o que interessa é o que a une e o seu destino comum. É a imagem final do filme, à qual se sobrepõe a voz sussurrada de Godard, que o clarifica: havendo sido conduzido ao zero, é aí que é necessário começar.

É isso que faz perante o ilusionismo do cinema que lhe precede. Às câmaras estanques, à iluminação de estúdio, aos cenários, aos diálogos repetidos palavra a palavra, à música que acompanha a cena em intensidade, ao implacável império do simulacro e à prisão da continuidade temporal, responde com revolução. É também o que faz através das ideias que atravessam a película, as vidas que conta e a forma como as conta.

No final da primeira parte de Week-End (também de 67), que ao contrário de Duas ou Três Coisas, é um grito e não um sussurro, a destruição dos carros – símbolos do aburguesamento sem retorno da sociedade francesa – culmina numa voz-off que nos é dito pertencer a Engels e Lewis Henry Morgan. É essa voz que nos desenha um caminho a partir do ponto zero. O mote, claro está, é a morte do ideal burguês do individualismo, rumo a uma sociedade sem classes. A segunda parte de Week-End é a premonição da sociedade francesa pós-68, exigindo-lhe seriedade e acção consequente. Os jovens armados identificados como Front de Libération de la Seine et Oise (FLSO) demoram-se na floresta em jogos surrealistas e num massacre tribal, condenando ao fracasso os processos revolucionários em curso. Face à fetichização da revolução por uma burguesia que se diz progressista e o desencanto de parte da esquerda que acaba por render-se à direita, Godard aponta desde logo o trajecto oposto, esse que se constrói junto das massas.

É neste contexto que filma La Chinoise (ainda de 67), um manifesto visual que declara o compromisso ideológico do realizador com o comunismo ao denunciar, de modo mordaz, as falácias do radicalismo pequeno-burguês. Do acto de violência que deveria dar início à revolução – o assassinato que as personagens planeiam durante todo o filme – sobra apenas a frustração que despoleta o seu regresso conformado ao status quo da sociedade capitalista. É necessário, pois, que a classe trabalhadora confronte definitivamente a classe que a oprime, e que um Partido Comunista assuma o seu lugar na vanguarda.

Le Gai Savoir encerra a década de 60 com a alegria da aprendizagem e do debate, o entusiasmo latente à ideia revolução e, simultaneamente, vem alertar-nos para esse perigo, essa praga que é não passar das palavras aos actos. Os filmes de Godard, da radicalidade iniciática dos anos 60 à indagação da relação elusiva entre cinéma vérité e encenação das décadas procedentes, são coordenadas precisas de um programa político que se adapta, mas que jamais é descartado. Godard, como as suas personagens, nunca precisou de se explicar. Os seus ideais foram – e são – os mais claros.

III

No meio de tanta adoração, Godard ainda consegue ser vítima de injustiça: lembrá-lo só pelo que fez nos anos 60 é esquecer cinco décadas de genialidade e ousadia que nada têm de inferior. Têm sim a capacidade de superação com que nos presenteou activamente até Le Livre d’Image (2018), o mais pertinente e sóbrio dos testamentos. Lá iremos.

Em 1972, Tout va bien – produzido em conjunto com Jean-Pierre Gorin – vem retratar a greve dos trabalhadores de uma fábrica de salsichas. É escancarado de que lado está. Sauve qui peut (la vie), de 1980, é, isocronicamente, um tratado, uma auto-crítica e um par de binóculos voltados para a sua geração, explorando, como nunca, a sexualidade e as decisões humanas. É nesta década que começa um projecto que só viria a terminar em 1998. Os 266 minutos que compõem Histoire(s) du Cinéma são os mais decisivos para compreender a totalidade da sua obra e da sua personalidade, todos os seus valores e inquietações. É também um estudo intensivo acerca do cinema e do século, sobre como o cinema terá influenciado o século e vice-versa. A sua voz rouca torna-se oracular, fundindo imagens e desvendando mistérios através de um “metacinema” que o crítico Dave Kehr apenas pôde comparar a Finnegans Wake de James Joyce.

Era Junho de 1985 e Je vous salue, Marie estreava, em Portugal. Cruz Abecassis, do CDS, à data presidente da Câmara Municipal de Lisboa, não gostou da notícia e declarou guerra à Cinemateca Portuguesa, até que esta concordasse em retirar o filme – que fez questão de não ver – de sala. Felizmente, também o seu partido foi, diga-se, “retirado de sala”. Anos mais tarde, Sousa Lara, igualmente ofendido por tamanha heresia, achou que podia fazer o mesmo com O Evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago.

O movimento dos anos 60 baptiza Nouvelle Vague (1990), que, composto quase na totalidade por citações literárias dos mais distintos períodos, admira ao longe e nostalgicamente a estrutura dos filmes dessa década, num desejo de rejuvenescimento. Nostalgia à parte, em 1996, não se abstém de pensar a guerra na Bósnia-Herzegovina, ou de condenar os seus contornos mais trágicos, em For Ever Mozart (“faut rêver Mozart”). A sua ligação a Sarajevo era cada vez mais forte. Notre Musique (2004), sobretudo, falará por si. É o seu mais maturo, eximiamente escrito e estruturado. Além de um filme, é aula que percorre um ancho leque de feridas, do colonialismo à violenta ocupação da Palestina, que analisa de alto a baixo, contando com a participação sábia do poeta Mahmoud Darwish, além da do próprio Godard, cujo cachecol vermelho relembra ainda a sede de uma bandeira da mesma cor. A Palestina é, para Godard, uma temática da mais alta importância e uma que também explora em Film Socialisme (2010), no seu último andamento. Antes disso, a bordo do navio Costa Concordia, cruzam-se um criminoso de guerra, um representante da ONU, um detective russo e Patti Smith. Reflectem e inspeccionam, mas será que isso é suficiente para evitar que o navio afunde de novo? Qualquer dia saberemos. 

IV

Um filme em cinco capítulos como os cinco dedos da mão, Le Livre d’Image é uma colectânea de pensamentos e imagens cuja lucidez arrepia, e que cobre até a crise energética e petrolífera, sabendo quem a pagará e quem lucrará com isso. É como se toda a sua filmografia pudesse ali desaguar, mais revolta e comprometida que nunca, lembrando sempre o sorriso de uma mulher num filme soviético – e não de outro lado. Aqui, a sua voz já trémula suplica, nas entrelinhas, que a continuemos quando chegar o momento de a calar.

Como Leos Carax, agradecemos a Godard por nunca ter descansado em paz. Há quem lhe esteja a dizer adeus, mas não percebemos porquê. Godard há-de viver enquanto jovens ao redor do globo continuarem a trocar Coca-Cola por Marx, e enquanto não for cumprido o que ficou por cumprir. O fumo do seu charuto ainda há-de pintar muitas paredes.

de Joana Tomé e Milene Vale