Os animais (não humanos) não são vingativos.

Nacional

Não é minha intenção entrar na corrida para ver quem defende mais os animais. Até porque essa corrida está ganha à partida por aqueles que defendem a superação do capitalismo. A superação do capitalismo, o fim do modo de produção baseado na maximização do lucro, trará também o fim da economia orientada para o lucro fácil, como tal, trará o fim do tráfico de animais, o fim da sobreprodução animal para alimentação, o fim da devastação florestal e de outros habitats de milhões de animais. Talvez a superação do capitalismo possa também pôr fim à utilização de animais para fazer testes de cosméticos e outros produtos que nos “embelezam” à custa do sofrimento de milhões de seres vivos. Eventualmente, a superação do capitalismo porá um fim à chacina de animais para produzir roupagens de luxo. Provavelmente, um dia mais tarde, o fim de uma economia orientada exclusivamente para o lucro, acabará com o apuramento genético de animais doentes e deficientes para fazer bibelots ou peluches que ficam bem na ponta de uma trela. A superação do Capitalismo possibilitará uma relação com a Natureza e os outros animais completamente diferente daquela que o Capitalismo nos impõe.

Todavia, a superação do Capitalismo pode estar longe e há um longo caminho que temos de percorrer hoje. Sobre isso, era importante deixar de lado simplismos, populismos e engodos, principalmente para que possamos, de facto, tomar as melhores medidas para salvaguardar a Natureza e os animais não-humanos ao invés de cedermos a pomposos nomes que escondem miseráveis soluções. Neste preciso momento, por exemplo, muitos se questionam sobre a “criminalização dos maus –tratos a animais de companhia” e sobre a forma como o PCP terá votado essa proposta do PSD/PS.

Introduzo apenas uma nota: não partilho o argumento de que este momento não é para nos preocuparmos com os animais porque há muitos outros problemas mais graves, apenas porque nunca a resolução de um problema impediu a resolução de outros. Ou seja, o momento pode ser oportuno, mas isso não pode implicar falsas soluções, simplismos ou populismos.

É muito importante, antes de mais, abandonar o simplismo falacioso de que só pode defender os animais que acha que os animais humanos devem ir presos. Em primeiro lugar porque há outras sanções além de prisão e em segundo lugar porque é legítimo que haja quem – como o PCP – julgue que outros passos e outras sanções são mais ajustadas (do ponto de vista jurídico mas também do ponto de vista do bem-estar do animal) para solucionar o problema.

A questão não é se se é contra ou a favor de penalizar quem mal trata, abandona ou fere um animal. A questão é: que mecanismos deve o Estado utilizar para assegurar que esses comportamentos diminuem. A prisão, tal como é vista pelos defensores da pena de prisão para maus-tratos animais, como um castigo, uma penitência, uma espécie de instrumento para a expiação da culpa. Mas tudo isso são conceitos humanos, conceitos que se aproximam perigosamente de conceitos religiosos e de conceitos de vingança, retaliação e retribuição. Ou seja, a prisão como castigo é resultado de uma construção humana. Se é verdade que o Ser humano sente um alívio quando retribui uma ofensa, já o mesmo não se poderá certamente dizer de um cão. Ora, para o animal, o agressor ir preso ou não é indiferente. Portanto, aquilo em que se deve centrar a actuação do Estado é na defesa do animal, não colocando na prisão o agressor, mas criando as condições para que não suceda o mau-trato e o abandono. Claro que a prisão pode ser um recurso, na medida em que pode resultar como dissuasor. Mas será o mais eficaz? Serão os termos do projecto de lei eficazes? A lei como está construída não terá qualquer eficácia. A lei desresponsabiliza o Estado de todos os seus papéis, remetendo todas as soluções para o Código Penal, para a prisão. Ora, se este fosse o caminho, todos os agressores de animais teriam de ser condenados à cadeia, de onde sairiam certamente como pessoas novas passado um ano, incapazes de tornar a fazer mal a um animal. Tal cenário é, escuso-me a explicar porquê, manifestamente inconcretizável.

O que o país precisa não é de prisões, não é de tomar por simples o que é complexo. O que o país precisa é de olhar os animais não-humanos de outra forma. O país não precisa fingir que a comunidade rural vê os cães da mesma forma que as camadas urbanas. Não podemos fingir que as comunidades nómadas olham os cavalos da mesma forma que o cidadão da cidade. Não podemos fingir que um grilo numa gaiola, um peixe num aquário, um papagaio numa gaiola, um cão num apartamento, têm o mesmo significado para toda a gente. Porque a partir do momento em que o Estado se demite da sua função educativa, de elevação da consciência ambiental e social, então a lei mais não faz senão impor uma visão obrigatória indiscriminada e em função do populismo vigente. Os animais, nem mesmo os de companhia, terão nada a ganhar.

Porque é que o projecto de lei não só não resolve como é prejudicial para os animais de companhia?

1. O projecto do PSD e do PS é tecnicamente mau, incapaz de gerar um texto jurídico que tipifique os elementos do crime e a forma de o provar. Isso significa que não terá aplicabilidade, até por pôr em pé de igualdade uma pessoa que deixa o peixe no aquário morrer de fome e uma pessoa que abandone um cão.

2. O projecto demite o Estado de toda a intervenção, colocando a resolução dos problemas de maus tratos e abandono única e exclusivamente nas mãos dos cidadãos e das associações de protecção animal. É precisamente por isso que resulta, na minha opinião, num retrocesso. Ou seja, ao invés de estimular a prevenção e a presença do Estado, substitui o actual regime legal (que apesar de bom, nunca foi cumprido) por um regime de desculpabilização do Estado e de encarceramento do agressor, sendo que não cabe ao Estado detectar as agressões.

3. O projecto usa a pena de prisão como solução para um problema que deve ser resolvido com sanções de correcção de comportamentos. Um mês obrigado a trabalhar com uma associação de protecção dos animais seria muito mais produtivo e eficaz para a maior parte dos casos do que um ano de cadeia.

4. O projecto, ao fragilizar ou destruir outras formas de intervenção do Estado, acaba por deixar os animais em situação ainda mais desprotegida do que aquela em que se encontram actualmente.

5. O Projecto não tem sequer preocupação com os animais, pois não cria nenhuma solução para o animal maltratado. Ou seja, o agressor vai preso um ano e o animal não tem para onde ir, pois a lei não cria nenhum normativo para isso. Em última instância, o animal será encaminhado para um canil, onde será abatido.

6. Se a lei actual não é cumprida, não significa que não seja boa, significa apenas que nunca ninguém a quis cumprir, nunca nenhum Governo dotou o Estado de meios para a cumprir. Mas a Constituição da República também diz que a Educação é gratuita e não é o facto de isso não ser cumprido que me faz dizer que a Constituição é má.

7. Quando, passados alguns anos, verificarmos que a aplicabilidade da lei é próxima de nula, a sensação de impunidade por maltratar um animal será ainda maior do que a actual, os animais continuarão a sofrer e ninguém estará preso, nem ninguém terá multas, e ninguém se lembrará de que o PCP tinha razão quando à ineficácia da prisão para salvaguardar o bem-estar animal.

Nada de novo.

Além da forma do documento que vai ser votado, é também ainda importante referir o seguinte,por ser ilustrativo da falta de boa-vontade de PS e PSD e da perspectiva meramente populista com que encaram os animais: PS e PSD apresentaram dois projectos, que foram aprovados na generalidade com a abstenção do PCP. Logo nesse dia, o PCP disse que pretendia melhorar os diplomas para poder votar a favor na versão final.

Todavia, os documentos desapareceram quase seis meses da discussão. O PCP não podia apresentar propostas de alteração porque não sabia qual era o texto que iria ser discutido – se o de PSD, o do PS, ou um híbrido que representasse um consenso entre esses partidos.

Quando ambos os partidos chegam a um texto final apresentam um texto que apenas preconiza penas de prisão para maus tratos e morte, nada mais. Ainda assim, retiram o texto e adiam a votação uma vez mais. Só umas semanas mais tarde, surge finalmente o texto final, que contempla também a pena de prisão para quem abandona. Nessa mesma semana, apresentam o texto a votação na especialidade. O CDS solicita adiamento. Uma semana mais tarde é finalmente votado. Ou seja, PSD e PS quiseram fazer tudo sem os contributos de nenhum outro Grupo, optando por esconder o texto até ao último momento. Quando o texto final foi conhecido, estávamos perante um texto baseado única e exclusivamente em penas de prisão, que revoga as restantes sanções até aqui vigentes.

Ora, o PCP foi praticamente impedido de apresentar propostas porque o ponto de partida era radialmente distinto, não encaixa na perspectiva do PCP estar a propor que a pena deve ser de seis meses em vez de um ano, porque para o PCP a pena de prisão não pode ser tomada como única opção. Eventualmente, algum deputado quererá ficar para a História como pai da lei e por isso recusou contributos. Infelizmente, estou certo de que esta lei ficará para a História como embuste. Como alimento para as almas que genuinamente se preocupam com os animais, mas que não podem satisfazer-se com leis irrazoáveis. Nada é pior para uma causa que uma má lei, que uma má solução. Estou convencido de que este é o caminho do retrocesso. Não para mim, não para as associações de protecção de animais, não para os amantes de animais, mas para os animais.

Em suma, passamos de uma lei que obriga o Estado a fiscalizar e a penalizar os agressores, que pode ser melhorada e aperfeiçoada, para uma lei que coloca nos cidadãos a capacidade de andar a apresentar queixa-crime uns contra os outros, alhenado o Estado de qualquer resposta no terreno. Para mim é muito claro: entre uma lei que previne e penaliza e uma lei que só pune, escolho a primeira. E quando uma lei não é aplicada nem cumprida, exijo o seu cumprimento ao invés de exigir uma nova que é ainda mais injusta e inaplicável. Infelizmente, estes assuntos são tratados levianamente pelos jornais e infelizmente, muitas pessoas pensam mais numa perspectiva religiosa da expiação da culpa, da vingança e retribuição, do que propriamente no animal em si. Os animais em Portugal não vão viver melhor. Infelizmente.

E é claro que para o PSD e PS, é muito mais simples criar uma lei que priva cidadãos do direito à liberdade do que garantir uma rede de fiscalização veterinária que cubra todo o território, que ponha fim ao tráfico de animais, que investir em canis e gatis com condições, que fazer campanhas de esterilização de animais errantes, que pôr fim ao abate de animais errantes saudáveis, que investir num ICNF e num SEPNA capazes de estar onde são necessários, que impedir a utilização de animais para experimentação científica sem necessidade, que impedir a criação de raças doentes, que criar santuários ou encaminhar animais para santuários, que impedir a renovação de animais em circos, que criar programas de sensibilização, que apoiar as associações de protecção da natureza e dos animais a levar a cabo o seu trabalho, que introduzir nas escolas a preocupação com o bom convívio entre humanos e outros animais e seres vivos. É muito, mas muito mais simples.

E dir-me-ão que uma coisa não impede a outra. Isso é verdade. Todavia, neste contexto específico, a pena de prisão impede tudo o resto, porque arruma o assunto e tão cedo PSD e PS não tocarão na questão nem permitirão que outros toquem e porque anulou outros campos de intervenção. Na prática, começou a casa pelo telhado, destruindo as frágeis fundações que já existiam. E o problema principal é que este telhado está mal construído e vai minar esforços para fundações sólidas no futuro.