Se inimigo do meu inimigo meu amigo fosse, já Henrique Raposo, Helena Matos, Raquel Varela e Renato Teixeira teriam parido um novo blog ou revista. Não é provocação: pode ser que os separem densos renques de fumo ideológico e gigabytes de sangrentos diatribes por essa rede fora, mas a verdade é que as suas agendas coincidem num ponto capital: o combate sem tréguas aos privilégios políticos, morais e históricos dos comunistas.
À extrema-esquerda como à direita, esgrimem que o PCP é uma prima-dona. Cheia de não me toques, não admite ser criticada: uma flor de estufa agarrada a uma suposta superioridade moral que não se digna sequer a rebater as acusações dos adversários, uma menina mimada que à mínima contrariedade se faz valer do seu passado antifascista para questionar as credenciais democráticas dos outros.
À direita, o libelo do privilégio serve para exigir mais repressão e menos direitos “ninguém tem coragem de pôr mão nos comunistas!” ou “Bloqueiam as pontes, param transportes públicos e ninguém tem coragem de lhes dizer que não!”. À extrema-esquerda, o mesmo argumento é usado para reclamar contra a falta de atenção que os comunistas dedicam aos esquerdistas.”Se tivessem argumentos, discutiam cada post que escrevemos e seguiam o nosso programa”. E tanto a esquerda como a direita comungam que o pior privilégio comunista é a sua influência na luta de massas e junto dos sindicatos.
Esquerdistas e reaccionários, uni-vos! O que vos une é mais forte do que o que vos separa! Os terríveis privilégios do PCP exigem a unidade de todos os anti-comunistas. Afinal, até agora, a desunião parcos frutos vos tem rendido: os esquerdistas continuam confinados aos blogues e a direita só pode sonhar com sindicatos adestrados. Mas, sobretudo, convém que primeiro desvendem o mistério da origem dos privilégios comunistas.
Os privilegiados
Mesmo caindo no risco e parecer arrogante, admito que o PCP tem de facto privilégios a que nenhuma outra organização se pode arrogar. Não é que disso façam gala os comunistas, não é que desses privilégios se sirvam para obter algo. O privilégio do PCP radica no facto constatado de ser a maior, mais antiga e mais importante organização de massas em Portugal. Esse facto não depende de qualquer decisão de qualquer Comité Central (era bom se fosse assim tão simples, não era?), nasce da origem de classe: de quem eles são, do que fazem, de onde vivem. Os privilégios dos comunistas são os privilégios dos que ganham quinhentos euros, dos que vivem do seu trabalho, dos que fazem coisas com as mãos, dos que vivem em bairros de trabalhadores e como trabalhadores: o privilégio de levar de arrasto as sociedades e a história, de poder sempre resistir mas não poder ser destruído. Em síntese, quem dá aos comunistas o privilégio de decidir a agenda e a estratégia da luta são os trabalhadores. A justeza da acção dos comunistas expressa-se na força da luta dos trabalhadores. E é dela a sua história.
Perdoem-me se isto cheirar a excepcionalismo americano, mas o PCP é realmente um partido excepcional. Mais uma vez, não é o PCP que se outorga este título, é a História: o PCP é uma organização com mártires. Mártires. Leitor, compreendes bem o que isto quer dizer? Da mesma forma, porque a nossa História passou pelas cadeias, pela tortura e pelo exílio, podemos falar de democracia, luta e revolução com uma autoridade que mais nenhuma organização detém. O próprio facto de o PCP andar nisto desde 1921 constitui um privilégio histórico difícil de disputar, ou, como dizia um amigo, “são muitos anos a virar frangos”.
Os desprivilegiados
E porque raio é que os iluminados dos blogues esquerdistas não conseguem conquistar os privilégios do PCP? E porque é que a direita não consegue fazer mais do que se queixar desses privilégios?
Porque a Raquel Varela está para a historiografia como o Dan Brown para a literatura. Porque o Renato Teixeira está para a coerência como o verbo haver para o plural (no sentido de existir). Porque o Gil Garcia está para a classe operária como os rebeldes sírios para o socialismo. Porque, no fundo, a própria natureza pequeno-burguesa da maioria dos esquerdistas os impede de compreenderem e a única classe que pode transformar o mundo: a classe operária. Vivem de sonhos quando nós vivemos de pão, definem a táctica em função de ideias quando nós só a podemos definir em função da vida.
Por outro lado, a direita ofendida com os “privilégios comunistas”, não consegue fazer mais do que isso mesmo: ofender-se. E têm razão para tal: quando os comunistas decidem parar o país, o povo escuta-os e o país para mesmo, quando os comunistas decidem que se cortam as estradas, se ocupam os ministérios ou se enchem as ruas, os trabalhadores seguem-nos. O PCP não é a vanguarda dos trabalhadores por decreto, é-lo porque é e pelo que é.
Os privilégios
Não creio que os críticos dos privilégios comunistas os quisessem para si mesmos. Os comunistas são, por natureza da guerra entre as classes, os primeiros a ser despedidos, os primeiros a ser presos, os primeiros a ser torturados.
Olha, leitor, vou-te falar do coração. Fui despedido há dias. Quando o manda-chuva se sentou à minha frente, perguntou-me “Mas o antónio é «sócio» de algum partido?” Fiquei surpreendido. Quem me dera poder dizer que não, que sou LIVRE como o Renato Teixeira ou o Rui Tavares. Mas não pude, é o privilégio dos comunistas. Gaguejei. «Sim, sou militante do PCP». Respondi «Pois António, isso não abona nada a seu favor». Eu sei, meu burocrata “sócio” do PS. Neste mundo a dignidade e a coragem não abonam nunca a favor da barriga, do nariz, nem do umbigo, mas abonam a favor dos teus filhos e dos meus netos. Ainda bem para eles que o privilégio é meu.